5001) Os retratos fantasmas do Recife (12.11.2023)
Retratos Fantasmas
(2023) pode surpreender o espectador que assistiu Bacurau e espera do diretor Kléber Mendonça outro filme tipo
guerrilha-underground misturado com distopia-terceiromundista. Tem todo direito
de esperar – eu também esperava, de certo modo, porque gostei do perfil daquele
thriller B de futuro próximo. E
gostaria de ver outra especulação dele sobre as rebordosas localizadas da
violência global.
Mas Retratos
Fantasmas, meio documentário, meio autoficção, meio álbum de lembranças
afetivas, deixa mais nítido outro veio na obra do diretor. Uma obra rica,
atual, que fala sobre o processo quase fatalista, quase mecanicista, que faz as
cidades crescerem, passando por cima do que estiver na frente.
É um filme de amor ao cinema, de amor aos cinemas de rua,
mas acima de tudo de amor à Cidade. Que no caso de Kléber é o Recife,
inesquecivelmente fotografado, e emocionante para quem, como eu, conheceu na
infância o São Luiz, o Trianon, o Art-Palácio, o Moderno. E que, já
cineclubista e crítico, conheci o Veneza.
(Senti falta do meu querido Cinema de Arte Coliseu, em
Casa Amarela, mas não se pode ter tudo, e o foco do filme é a área central do
Recife. Vida que segue.)
Cinema e Cidade se misturam na memória da gente. Quantas
vezes saíamos de Campina Grande de ônibus, à tarde, e quatro horas depois
desembarcávamos na rodoviária velha do Recife, e assistíamos todas as sessões
possíveis do mesmo filme (acertou quem disse Alphaville, quem disse Blow
Up, quem disse Cléo das 5 às 7).
Dormíamos numa pensão qualquer, voltávamos para Campina na
manhã seguinte, e à noite, nas escadarias do Colégio Estadual da Prata, “tinha
resenha”.
O Cinema era uma cidade desconhecida ao alcance da nossa
carteira, da nossa mesada ou salário-mínimo. Uma cidade que (não importa o nome
que tivesse, Paris, Rio, Roma, Moscou) tornava-se apenas a cidade costurada
pela agulha daquela câmera que a percorria. A cidade construída pelo filme só
tinha existência nesse labirinto, que levava uma hora e meia para ser
percorrido até o fim.
Estas divagações me ajudam a focar a atenção no veio
“cidade canibal” que atravessa praticamente todos os filmes de Kléber Mendonça.
A cidade que cresce sem parar, a cidade que engole a si mesma, alimenta-se destruindo
as melhores partes de si mesma, e com isso produz novas partes – que os
desavisados jovens do futuro considerarão “as melhores” – tal como aconteceu
conosco.
Em O Som Ao Redor (2012),
é o processo que faz a riqueza rural conquistada a poder de porrada adquirir
latifúndios urbanos à beira-mar (Boa Viagem, no caso), e depois vendê-los à
Cidade, deixar-se comer pelas beiras. E se submeter às vendettas da barbárie rural, porque, como diz o ditado, “quem bate,
esquece, quem apanha, não”.
Em Aquarius
(2016), a Cidade está se expandindo em plena euforia corporativa. O cafofo
afetivo onde fomos criados precisa ser desocupado a poder de cheques e tapinhas
nas costas. Sonia Braga representa o exército-Brancaleone dos que dizem (como
eu): “Por que motivo um condomínio de duas torres e 40 andares é mais necessário
do que o oitão onde eu jogava bola?”.
Em Bacurau
(2018), acontece uma inversão, porque aqui não se trata da Cidade Grande, e sim
do seu oposto Tao-Te-King, a Cidade Pequena. A cidade que não luta para
engolir, mas para não ser engolida. Sua violência não é predatória, é
afirmativo-defensiva. Sua maneira de crescer é continuar do tamanho atual, sem permitir
ser diminuída, vitimizada, predada, arrendada pelo Poder inescrupuloso para servir
de feliz-campo-de-caça a sadistas estrangeiros.
A Cidade é essa coisa, um aglomerado que nunca se sabe ao
certo se é benigno ou maligno (falta uma ciência para isto), mas nesse crescer
vai passando por cima de tudo. Ou, como disseram Chico Science e a Nação Zumbi,
“a cidade não pára / a cidade só cresce / o de cima sobe / e o de baixo desce.”
Essas vozes ressoam em mim porque são as vozes do Recife, a primeira metrópole
que conheci, a primeira que me preocupou.
Existem mil instâncias de Poder envolvidas: prefeituras,
câmaras municipais, corpos legislativos, planos diretores, secretarias,
entidades patronais, sindicatos, imprensa, ministério público, representantes
da sociedade civil... Esta mera enumeração já mostra que o processo é coletivo,
um tanto randômico, impulsionado por mil variáveis, influências locais ou
globais. Não há uma mente central (boa ou má) coordenando tudo. É um pouco como
Formigas Carregando Folhas.
Retratos Fantasmas
vira sua câmera para mostrar um pequeno setor desse processo. Mostra como a
vida pessoal e a vida social se contaminam através do Cinema e através do
Crescimento Urbano.
É fascinante a Parte I do filme onde Kleber faz um resumo
da sua história familiar e mostra o apartamento de sua família, onde inúmeras
cenas de seus filmes foram concebidas ou rodadas. Vou ter que ver de novo os
filmes originais para tentar separar uma coisa da outra. Sala, móveis, quadros
nas paredes, janela, paisagem, sons ambientes.
Em certo momento me lembrei de quando assisti La Peau Douce (1964) de François
Truffaut, e soube que havia sido rodado no próprio apartamento onde ele morava
na época. Me senti um voyeur, me
senti um leitor de Caras torcendo o
nariz diante de alguma reportagem sobre casal roqueiro: “Que cafona, esse
sofá... Mas aquela gravura na parede é bonitinha.” É grande a facilidade com
que a ficção nos seduz e o documentarismo nos desencanta.
Por mais que a gente (=espectador) tente separar a vida
do artista e a arte do artista, é o próprio artista o primeiro a fracassar
neste projeto. A arte não é reflexo, cópia ou imitação da vida pessoal – é
consequência, apenas. “Apenas”.
Muita gente deixaria de incluir inúmeras imagens ou
sequências que Kleber coloca neste filme, com um receio prévio de serem taxados
de “narcisistas” ou equivalente. Acho admirável o modo como ele mostra a sala
que serviu de cenário, de ambiente de reuniões, de risca-risca de roteiro e de
corta-corta de montagem. É a vida. Um filme é feito da vida daquelas pessoas
que o estão fazendo. O que passa na tela é apenas a ponta visível desse iceberg
de conversas e discussões infindáveis, telefonemas, café, cigarros, noites em
claro, bate-bocas, correrias, repetições extenuantes, azares, soluções caídas
do céu, namoros que brotam, casamentos que definham.
Quando Truffaut fez A
Noite Americana (1973), filme que descreve a filmagem de outro filme, ele
conseguiu ao mesmo tempo desmistificar o cinema, mostrando o feijão-com-arroz e
o pão-com-manteiga de sua feitura, e torná-lo ainda mais fascinante – porque
para quem gosta de cinema o ato de filmar se transforma numa obra de arte em
si, tanto quanto o filme que resulta dele.
Os velhos projecionistas mostrados junto aos cinemas onde
trabalharam são figuras melancólicas porque de certo modo sobreviveram a si
mesmos. O combustível que os impelia para a frente acabou, e seus últimos anos
de existência serão uma banguela silenciosa até que possam repousar na terra do
acostamento.
Personagens fascinantes, que voltam recorrentemente em
filmes como Kings of the Road (“Im
Lauf Der Zeit”, 1976) de Wim Wenders, Cinema
Paradiso (1988) de Giuseppe Tornatore, até O Homem da Cabine (2008) de Cristiano Burlan. Todos têm alguma
coisa de abandonado, de largado no meio do caminho, como aqueles marinheiros
cujo navio ficou ancorado num porto distante e eles ficaram morando ali,
tomando conta, enquanto o navio enferruja pelos anos afora.
A terceira parte do filme mostra as salas de cinema que
foram transformadas em templos de seitas evangélicas. Virou um lugar-comum dos
cinéfilos comparar o recinto sagrado da experiência cinematográfica com a
exploração profana das seitas caça-níqueis. O próprio filme, porém, mostra que
são ondas alternadas. O cine São Luiz foi construído em 1952, e para isto foi
derrubada uma igreja anglicana que havia no local, no quem-me-quer à beira do
Capibaribe, desde 1838.
O que é afinal um “fantasma”? É alguém cujo corpo cessou
de funcionar e entrou em decomposição, mas cuja alma continua a ser acessada
por nós, continua visível, lembrável. Não importa se essa “alma” pertencia de
fato à entidade que faleceu, ou se é o resíduo, a lembrança, a persistência
retiniana impressa em nós: continua existindo, e estamos conversados.
A última sequência do filme mostra o próprio Kléber, à
noite, pegando um Uber no centro do Recife. Conversa com o motorista, que lhe
diz estar ouvindo Herb Alpert porque é trumpetista, e toca numa orquestra de frevo.
Kleber diz que trabalha com cinema. Nesse instante o motorista diz que tem um
superpoder: consegue ficar invisível. Materialmente presente, mas invisível. E
a câmera adota o ponto de vista do cineasta (que está no banco de trás) e
mostra o volante do carro, sem motorista, mas avançando normalmente pelo centro
da cidade.
É o tipo de conversa-pra-boi-dormir que a gente tem com
taxistas em geral. É o tipo da conversa semi-fantástica que surge a qualquer
instante, nos papos-em-espiral de mesa de bar, que surge sem qualquer
propósito, num filme B de qualquer país, entre pessoas que se encontram na rua.
O carro passa por lojas e farmácias (estas imensas farmácias do mundo de hoje,
latifúndios urbanos fluorescentes, oferecendo milhões de veneninhos milagrosos),
e lembramos a frase (em outro momento do filme): “Filmes futuristas também são
documentários”. E vice-versa. Documentários também são filmes futuristas, e às
vezes quando estamos registrando alguma coisa que passou e sumiu, deixamos
aparecer na tela fragmentos do que estava começando a aparecer, e nem
percebemos.
É mais fácil aceitar as mudanças de uma cidade quando não
nascemos nela, quando não moramos nela. Aceitamos que ela se auto-destrua e se
recomponha às cegas, como as pessoas. Porque assim, à distância, podemos nos
iludir pensando que só quem mudou foi ela, e continuamos intactos. Daí que nos
reencontros nos venha logo à boca o clichê benevolente, “Puxa vida... Você não mudou nada...”, o que nos ajuda a suportar o
choque daquela mudança alheia que revela o abismo embaixo dos nossos pés.
2 comentários:
Cinema é poesia e os magos constroem a eternidade em cada fotograma ... Obrigado
Bom demais, Braulio... Já pensou em fazer uma conta no letterboxd.com?
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