Publiquei certa vez um artigo sobre “A ficção científica
na música popular brasileira”, na saudosa revista Isaac Asimov Magazine (Ed. Record), onde fazia um balanço das
temáticas da FC (alienígenas, viagens espaciais, computadores, astronautas, etc.)
nas letras de nossa música. Lembro que Gilberto Gil era o compositor com mais
exemplos.
Era uma questão que já nessa época eu conversava muito
com Lenine, também fã de FC, e tínhamos a toda hora uma idéia de como usar a FC
numa letra de canção.
Pelo que me lembro, estávamos falando alguma vez sobre os
morros cariocas, o fato do samba vir do morro e não “do asfalto”, a alegria
espontânea de quem tem uma vida difícil... Pensando nisso, agora, me vem à
mente um trecho de Avram Davidson, num dos seus contos de folk-FC:
Raramente vi uma mulher das classes altas, ou classes médias altas, que
não trouxesse linhas de desagrado em volta da boca, e raramente vi uma mulher
das classes trabalhadoras que não parecesse estar feliz e sorrindo e dando
gargalhadas.
(“El Vilvoy de Las Islas”, Isaac Asimov SF Magazine, agosto 1988,
trad. BT)
Barracão de zinco, sem telhado, sem pintura...
Lá no morro, barracão é bangalô.
Lá não existe felicidade de arranha-céu;
pois quem mora lá no morro já vive pertinho do céu...
Daí foi um passo para a faísca inicial da canção:
Pois quem mora lá no morro
já vive perto do espaço sideral.
E a idéia foi imaginar alienígenas que, ao descerem na
Terra, desciam no morro – e se deixavam contagiar por essa alegria que nós
mesmos, aqui da Terra, achávamos fascinante e não sabíamos direito como
explicar.
Isto vinha também ao encontro de muitas antigas mangações
nossas (e não só nossas) sobre os filmes norte-americanos que fazem as naves
alienígenas desceram sempre nos EUA, e mais do que isto, em Washington, e mais
do que isto, em frente à Casa Branca.
("A Invasão dos Discos Voadores", 1956)
("O Dia em que a Terra Parou", 1951)
De acordo com a nossa premissa, então, os alienígenas não
desembarcariam em São Paulo (sede do poder econômico), em Brasília (sede do
poder político) ou em Natal (referência à Barreira do Inferno). Desceriam nos
morros do Rio de Janeiro, porque é lá que estaria o que eles vêm buscar.
E aí encaramos outro clichê da ficção científica de
língua inglesa: a Terra como um planeta militarizado, belicoso. Não são poucas
as histórias da pulp fiction
norte-americana em que o Primeiro Contato com outras civilizações nos revela
que somos uma espécie de párias do universo, por causa da guerra, da bomba
atômica, etc., e que por isso a Terra está excluída das “federações galácticas”,
ou coisa parecida.
É a má fé, a consciência pesada dos EUA, não é mesmo? O
maior orçamento militar do mundo sabe o quando deve a Deus e ao mundo.
Nossa premissa foi o inverso disto: a galáxia inteira
estaria em guerra, as diferentes raças não saberiam mais o que fazer para
interromper esse ciclo de destruição... E de repente encontram um planeta onde
há guerra, sim, como em todo lugar – mas existe paz, existe festa, existe
alegria, existe carnaval...
Não deve ter passado despercebida a muita gente a nossa
citação do “Ziriguidum 2001”. Foi este o enredo criado pelo carnavalesco
Fernando Pinto (com quem eu havia trabalhado em shows de Elba Ramalho, no
Canecão), e que deu à Mocidade Independente de Padre Miguel o troféu do carnaval
de 1985.
(Fernando Pinto)
Fernando era um leitor de FC; talvez não fosse um fã-colecionador
como eu ou Lenine, mas era antenado com a época, e depois da vitória na Sapucaí
publicou na revista Veja um artigo
justificando brilhantemente seu enredo, com as baianas vestidas de extraterrestre.
“O Dia Em Que Faremos Contato” tem outra curiosidade, que
é uma capa pescada por Lenine num volume da antiga Coleção Futurâmica, das
Edições de Ouro. É do livro O Homem
Eterno (“Bang!”), de F.
Richard-Bessière, uma das divertidas aventuras transtemporais do repórter
Sidney Gordon. É uma capa rara (eu tenho o livro, mas com a capa mais comum).
Ao que parece, veio da versão original francesa, da Éditions Fleuve Noir.
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O Dia em Que
Faremos Contato
(Lenine & BT)
A nave quando desceu, desceu no morro.
Ficou da meia-noite ao meio-dia.
Saiu deixou uma gente tão igual e diferente:
falava e todo mundo entendia.
Os homens se perguntaram:
por que não desembarcaram
em São Paulo, em Brasília ou em Natal?
Vieram pedir socorro, pois quem mora lá no morro
vive perto do espaço sideral.
Pois em toda a Via Látea não existe um só planeta
Igual a esse daqui...
A galáxia tá em guerra; paz só existe na Terra,
a paz começou aqui...
Sete artes e dez mandamentos – só tem aqui...
Cinco sentidos, terra, mar, firmamento – só tem aqui...
Essa coisa de riso e de festa – só tem aqui...
Baticum, ziriguidum 2001... – só tem aqui...
A nave estremeceu, subiu de novo
Deixou um rastro de luz no meio dia
Entrou de volta nas trevas, foi buscar futuras levas
pra conhecer o amor e a alegria.
A nave quando desceu, desceu no morro
cheia de ET vestido de orixá...
Vieram pedir socorro, e se derem vez ao morro
todo o universo vai sambar.
Quando derem vez ao morro
todo o universo vai sambar...
4 comentários:
Maravilha!
Bacana!
Que maravilha esse post. Amo essa letra!
Postagem esplendorosa um talento essa canção.
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