quarta-feira, 30 de junho de 2021

4719) O Sim contra o Sim (30.6.2021)



 
João Cabral de Melo Neto tem um poema com este título, um título tão precioso que nem de poema precisaria. Mas o poema existe, sim, e é tão bom que a gente percebe que sem o poema este título maravilhoso fica até meio sem graça. 
 
Todo mundo sabe que um dos recursos principais da poesia de Cabral é contemplar duas coisas aleatórias do mundo material e mostrar que elas se parecem em alguns aspectos essenciais. O mar e o canavial, por exemplo. Ou a luz do amanhecer e o som do canto dos galos. Isso vai de poemas inteiros até pequenas imagens, como a que ele nos sugere ao lembrar que uma pessoa que leva um ovo de galinha na mão o faz com cuidados de quem leva uma vela acesa.
 
“O Sim contra o Sim” está no livro Serial (1961). Nele, em grupos sucessivos de quadras, Cabral examina e descreve poeticamente o jeito de escrever de alguns poetas que admira. Ele começa por Marianne Moore, a autora da famosa frase de que a poesia consiste em “jardins imaginários cheios de sapos verdadeiros”:
 
Marianne Moore, em vez de lápis
emprega quando escreve
instrumento cortante:
bisturi, simples canivete.
 
Ela aprendeu que o lado claro
das coisas é o anverso
e por isso as disseca:
para ler textos mais corretos.  (...)

 
(Marianne Moore e Francis Ponge)
 
A essa poética ele justapõe logo a seguir a do francês Francis Ponge:
 
Francis Ponge, outro cirurgião,
adota uma outra técnica:
gira-as nos dedos, gira
ao redor das coisas que opera.
 
Apalpa-as com todos os dez
mil dedos da linguagem:
não tem bisturi reto
mas um que se ramificasse. (...)
 
A comparação seguinte é entre dois pintores, por um lado muito parecidos, por outro muito diferentes:
 
Miró sentia a mão direita
demasiado sábia
e que de saber tanto
já não podia inventar nada.
 
Quis então que desaprendesse
o muito que aprendera,
a fim de reencontrar
a linha ainda fresca da esquerda. (...)

 
(Um Miró e um Mondrian)
 
Mondrian, também, da mão direita
andava desgostado,
não por ser ela sábia:
porque, sendo sábia, era fácil.
 
Assim, não a trocou de braço:
queria-a mais honesta
e por isso enxertou
outras mais sábias dentro dela. (...)
 
E assim ele prossegue, fazendo duplas de falsas oposições: Cesário Verde x Augusto dos Anjos, Juan Gris x Jean Dubuffet.
 
O que faz ele, em síntese? Ele compara artistas de temperamentos diferentes, estilos diferentes, culturas diferentes, que produzem obras bem diferentes umas das outras. E todos estão certos. Não mostra o Sim contra o Não, não mostra essa estética martelada em nossas cabeças em tantas repetições didáticas de que sempre existe em tudo o “Jeito Certo” e os demais são “Jeitos Errados”.

 
(Um Juan Gris e um Jean Dubuffet)
 
Cada poeta ou artista desse grupo pensa, trabalha e produz dentro de uma área totalmente diversa da área dos outros. E todas são áreas delimitadas pelo que cada um deles sabe e pelo que não sabe fazer. Nenhum deles “está errado”. A poesia ou a pintura de um não é desmentida, cancelada ou tornada obsoleta pela poesia e pela pintura do outro.
 
E ao mesmo tempo Cabral não está defendendo nenhuma visão ingênua de “ah, todo mundo é artista, todo poema é bom”. Nem todo artista é bom. Assim como entre esses pares de obras não existe a vitória de um Sim contra um Não, também não existe aí uma infinita plantação de Sins onde todos os poetas e todos os artistas têm o mesmo valor.
 
Existem, nessas parelhas comparadas, vitórias simultâneas de um Sim e de outro Sim que procuram coisas diferentes, por técnicas diferentes. E a descrição que Cabral faz de cada uma dessas técnicas mostra que esse Sim é um Sim duramente conquistado, e que não basta autointitular-se poeta ou artista para receber um Sim como crachá.
 
Claro que no universo dos simples leitores teremos sempre que aceitar a existência de pessoas que adoram os versos minimalistas de Paulo Leminski e detestam os versos quilométricos de Walt Whitman, e vice-versa. Sempre existirão as pessoas que adoram Vieira da Silva e não suportam Remedios Varo, e vice-versa. É o mundo dos leitores. O leitor procura (e está certo em fazê-lo) aquilo com que se identifica, a pintura que lhe mostra o que ele consegue ver, a poesia que lhe diz o que ele consegue escutar.
 
No mundo dos poetas e dos pintores, no entanto, rivalidades assim não fazem sentido. Como na parábola de Kafka, para cada pessoa existe uma porta, e essa porta está ali só para ela. Para penetrar, é preciso trazer algo único, individual, intransferível. No portão desse mundo, há uma placa com a terrível pergunta lembrada no poema de Carlos Drummond: “Trouxeste a chave?”. O mundo dos artistas só pode ser acessado por quem traz a esse mundo um Sim.

 
(Augusto dos Anjos e Cesário Verde)
 





domingo, 27 de junho de 2021

4718) O padre Camilo e o comunista Peppone (27.6.2021)



(Don Camilo e Peppone - estátuas em Brescello, Itália)
 
“Fernandel” era um ator franco-italiano de muito sucesso nos anos 1950. Era um cara grandalhão, magro mas espadaúdo, com uma cara comprida, olhos enormes, rosto feioso mas expressivo, cheio de caretas que lhe fizeram a fama. Não era apenas um careteiro. Era um ator de recursos simples mas bem administrados, e também se saía bem nos momentos emotivos e dramáticos.
 
Fernandel era o astro da série Don Camilo, uma série de meia dúzia de filmes dirigidos por Julien Duvivier, diretor francês daquela faixa que os críticos de cinema qualificam como “um artesão competente”. A série se chamava mesmo “Don Camilo e Peppone”, personagens criados nos anos 1940 por Giovanni Guareschi em livros de contos curtos, bem encadeados, que se tornaram um enorme sucesso de vendas na Itália, sendo traduzidos em vários países e por fim levados ao cinema.


(O escritor Giovanni Guareschi, com Fernandel) 
 
Do que trata a série? É a história de uma cidadezinha fictícia no interior da Itália, Bassa, onde vivem esses dois amigos-inimigos, dois homens parecidos em campos opostos: o padre católico Don Camilo e o prefeito comunista Peppone. (No cinema, são Fernandel e Gino Cervi nesses papéis.) Adversários ideológicos inconciliáveis, cada um faz o que pode para ser a pedra no sapato do outro. Brigam, encolerizam-se, batem boca diante de toda a cidade, mas na hora em que um está em apuros, pode contar com o outro. (Não sem ironia; não sem piadas.)

O filme no YouTube:

Vi agora no YouTube (está lá, com legendas em português) A Volta de Don Camilo (1953), em que Duvivier conta as aventuras e trapalhadas desta dupla de personagens meio ingênuos, meio cínicos, que têm algo de nordestinos embora sejam (como diria um crítico de cinema) “visceralmente peninsulares”.
 
Há um aspecto das aventuras de Don Camilo que sempre achei simpático. Ele conversa com Jesus Cristo, o Jesus que está no crucifixo do altar principal de sua igrejinha. Ele pergunta, e Jesus responde, ou vice-versa. Sempre quando estão a sós, é claro, para que ninguém pense que o padre da cidade está ficando doido.


E uma coisa que sempre simpatizei quando comecei a ler os livros de Guareschi foi que nesses livros Jesus Cristo falava como uma pessoa. Já li (já tentei ler) muito livro religioso. Toda vez que Jesus abre a boca, vem um sermão, vem uma retórica de seminário propedêutico, vem uma lição de moral. O Jesus de Guareschi era (pelo menos aos meus dez ou doze anos) um raio de coloquialismo e de bom senso no meio daquele dôminos-vobisco todo.
 
No primeiro conto-capítulo de O Regresso de Don Camilo (Difel/Bertrand, 1953, trad. A. Dias da Costa), a gente já vê esse diálogo:
 
Don Camilo ergueu os olhos para o Cristo do Altar-Mor e disse:
– Quanta coisa há no mundo fora dos eixos!
– Não concordo – respondeu Jesus. – No mundo, à parte os homens, tudo está perfeitamente certo.
Don Camilo deu uns passos para baixo e para cima e parou em frente do altar.
– Jesus, se eu contar um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, e continuar contando sempre durante um milhão de anos, chegarei ao fim?
– Não – respondeu Jesus. – Procedendo assim, serias como um homem que, tendo traçado na terra um círculo, começasse a andar em volta dele, dizendo: “sempre quero ver quando chego ao fim”. Claro que nunca chegaria.
 
Essa conversa desse Cristo não tinha nada a ver com as conversas religiosas que eu ouvia na época. Simpatizei com ele porque era na linha de O Livro da Natureza de Fritz Kahn ou O Universo e o dr. Einstein de Lincoln Barnett, onde eu lia: “O universo, apesar de finito, não tem limites.” Como os números. Como o círculo. 


(Gino Cervi, como Peppone) 
 
Do lado oposto desse pequeno mundo, está o prefeito Peppone e seu bigodão stalinista, parecido com o de certos coronéis sertanejos que eu conheço. Peppone se esforça para ser um obediente operário do Partido, mas as complicações de administrar uma cidade de verdade sabotam suas teorias o tempo todo. Ele é uma dessas figuras meio trapalhonas, meio solenes, que tendo chegado ao poder descobre o quanto é bom ser oposição e não ter que resolver um milhão de pepinos trabalhistas, sanitários, financeiros, policiais e meteorológicos.
 
Os dois esbravejam um contra o outro, mas volta e meia Peppone chega na igreja à sorrelfa, agarrando o chapéu com as mãos, pedindo a Don Camilo que quebre um galho com um paroquiano qualquer. Volta e meia Don Camilo vai à casa do prefeito, cumprimenta a esposa, toma um café e pede ao comunista que “pegue leve” em tal ou tal assunto que está lhe trazendo problemas.
 
Uma coisa interessante na literatura (na narrativa, em geral) é quando temos dois personagens amigos-inimigos. Não é qualquer dupla dialética que se encaixa nessa condição. Duplas famosas como Sherlock Holmes & Watson, Don Quixote & Sancho Pança, têm a sua dinâmica de aproximações e repulsas, mas não pertencem a grupos antagônicos.
 
As comédias despretensiosas de Don Camilo e Peppone podem parecer um pouco ingênuas e datadas, numa época em que religião e política vivem mais uma vez na base do risca-faca. As mil e uma trapalhadas em que cada um dos dois se mete por causa do outro mostram esse jogo de atrações e repulsões. Nessas histórias, dois indivíduos simples, sem grandes sofisticações teóricas, vindos basicamente do povo, e cheios de boas intenções, precisam manter fidelidade aos princípios de uma ideologia que defendem, e ao mesmo tempo manter-se fiéis aos próprios valores pessoais.
 
Quem quiser um nível mais aprofundado dessa discussão pode consultar o livro Em que creem os que não creem?, onde em vez de Don Camilo e Peppone temos a erudita discussão entre o Cardeal Carlo Maria Martini e o romancista Umberto Eco. E que comentei aqui:
 
https://mundofantasmo.blogspot.com/2009/08/1212-crenca-de-quem-nao-cre-3112007.html





quinta-feira, 24 de junho de 2021

4717) Meu gosto não se discute (24.6.2021)




“Meu gosto não se discute” é a fórmula cômoda que encontrei para encerrar essas eternas discussões sobre “gostei” e “não gostei”, “você tem (ou não tem) o direito de gostar de algo”, “seu gosto não pode servir de mandamento para os outros”.
 
Nenhuma afirmação estética é universal. A estética tem uma forma ramificada que se espalha por toda a variedade de contextos humanos, de experiências humanas, as diferentes sensibilidades de tempos, de espaços. A estética é condicionada pela História, pela Geografia, por tudo que influi na mente individual e coletiva.
 
A experiência humana é rica, variada, divergente.
 
Eu tenho uma fórmula pessoal para avaliar o “Gostei Ou Não Gostei” de todo mundo, inclusive o meu. É uma fórmula simples, que tenta conciliar gostos coletivos e gostos individuais.
 
Digo assim porque todos nós, mesmos os mais individualistas, os mais independentes, os mais personalistas, acabamos obedecendo aos gostos coletivos da nossa época, da nossa classe social, da geração de que fazemos parte, de algum grupo com aspirações a ser diferente e contestador.
 
Como já disse alguém: “tem certas coisas que nós gostamos para que as outras pessoas gostem de nós.” 
 
A fórmula de gosto pessoal que criei é simples:
 
Gosto = parâmetros + prioridades + preferências.
 
Uma grande parte das pessoas defende as próprias preferências (“Eu não assisto filme de terror por nada nesse mundo”, “Meu negócio é comédia e musical”, “Filme pra mim tem que ter crítica social, senão é alienado”, etc.) mas não costuma refletir sobre seus parâmetros e suas prioridades.
 
O que são parâmetros? São os pares de conceitos que nos fazem acolher certas obras e descartar outras. Têm a ver com essa coisa indefinível chamada “qualidade artística”, mas não só com ela. São os nossos conceitos (muitas vezes pouco claros, mal verbalizados) sobre o que é bom e o que é ruim. O certo e o errado. O bem feito e o mal feito. O ético e o antiético. O importante e o irrelevante. O precioso e o banal. O agradável e o incômodo.
 
Vou pegar essa última parelha. Eu vejo as comédias mudas de Buster Keaton ou Chaplin, em primeiro lugar, porque são agradáveis (me fazem rir), e só em segundo lugar pela sua importância na História do Cinema. Vejo as piadas bobas de Chaves e Chapolin pela mesma razão: me fazem rir, me agradam. Mas se eu aplico o critério “importante / irrelevante”, reconheço que Keaton e Chaplin saem ganhando, e que os comediantes mexicanos, que acho simpáticos, não criaram muito, em geral estão apenas desfiando o frango alheio pra fazer estrogonofe.
 
(O que é uma profissão honesta como qualquer outra, e que exerço com satisfação, quando preciso.)
 
Um espectador comum de cinema não precisa pensar nessas parelhas de conceitos, mas um jornalista precisa, sim, porque ele se vê forçado a produzir julgamentos de vez em quando, e precisa justificar seus vereditos.
 
O filme “X” ou “Y” pode ser chato, para o meu gosto, mas pelo parâmetro de “precioso x banal” talvez ele ganhe pontos. Digamos que foi um filme feito em condições precaríssimas, sob censura, registra fatos ou aspectos importantes lá do seu país (Ucrânia, Guatemala, Laos, não importa onde) – e por conta disso eu posso proclamar sua importância e defender sua preservação, mesmo não tendo gostado de vê-lo. Que importância tem o meu gosto? O filme não foi feito para me agradar. Foi feito para ser visto pela humanidade, e há de agradar a alguém. É chato mas é precioso, sim. Para o Cinema.
 
Do mesmo modo, o espectador que vai ao cinema no domingo à noite, para se divertir, tem todo o direito de não gostar de Fellini Oito e Meio ou de They Live! – mas não tem o direito de erigir o prazer dominical dele em critério absoluto e dizer que os filmes são “umas porcarias” e as pessoas que gostam deles são “pseudo intelectuais”.
 
Para ter em mente esses parâmetros, é preciso deixar de ser egoísta e não ver o cinema apenas como um passatempo feito para dar prazer a mim, o reizinho do mercado, de ingresso-comprado em punho. Quanto mais a gente entende os bastidores do cinema, o que é produção, o que é direção, o que é o comércio, a publicidade, as ramificações financeiras e ideológicas dessa indústria bilionária, a gente vai expandindo esse leque de parâmetros.
 
O mero consumidor, é claro, nem liga para isso.
 
Vem então o critério seguinte – prioridades. Em alguns momentos da vida alguns tipos de filmes são mais importantes do que outros. Nas minhas décadas formadoras (1960-1970), filmes de ficção científica, mesmo dos EUA, eram muito raros. Na minha coluna de jornal, eu só faltava implorar: “Pessoal, por favor, vamos dar uma força aos filmes de FC! Todos ao cinema!...”
 
Depois da geração Lucas (Star Wars), Spielberg (E.T., Contatos Imediatos) e outros, esses filmes transformaram a indústria. Nos anos 2000, os filmes de Super-Heróis se transformaram nos grandes blockbusters atuais. Já estão fazendo mais mal do que bem ao cinema. É um cinema de clichês em todo volume, tecnicamente e financeiramente hipertrofiado. Filmes à base de esteróides anabolizantes, concentrados energéticos, e que estão fazendo mais mal do que bem à ficção científica.
 
Ver e comentar filmes de FC deixaram de ser prioridade para mim. Talvez na próxima década o sejam novamente.
 
As prioridades mudam. Eu já fui um defensor do cinema brasileiro na linha do “compre o ingresso, e se não gostar, saia, mas compre pra ajudar”. Já combati as chanchadas da Atlântida, e depois passei a gostar delas. Já detestei o “western spaghetti” italiano, e hoje gosto. Por que? Porque entendi melhor certas coisas, alterei meus parâmetros. E algumas coisas que eram prioritárias deixaram de sê-lo.
 
Finalmente, vêm as preferências, e é nesse território que a maioria das pessoas navega: é o território do “gosto disso, não gosto daquilo”. Curiosamente, as nossas preferências são os nossos critérios mais óbvios, mais evidentes – e mais obscuros. Gosto porque gosto, dizem as pessoas, e a auto-análise se detém aí. Quando não encalha em tautologias do tipo “gosto porque é bom”.
 
Eu admiro o realismo literário e cinematográfico, mas tenho uma preferência pelas histórias que a todo instante estão botando o pé no impossível, no bizarro, no estranho, no fantástico. Por que? Não sei. Vem desde a infância. Mesmo no auge da minha admiração pelo Neo-Realismo italiano, quando vi muita coisa de Vittorio de Sicca, Rossellini, os primeiros filmes de Fellini, Antonioni, Pasolini, etc., me dava uma certa impaciência quando tudo se resumia àquela “vidinha besta”, como dizia Carlos Drummond. Os melhores filmes dessa turma, para mim, são os mais fantasiosos. Por que? Não sei. É a qualidade da imaginação, do aparecimento de algo improvável, imprevisto, impossível.
 
Quem escreve na imprensa tem a mania de colocar suas preferências como parâmetro geral. “Eu não gosto de musicais. Esse filme é um musical. Portanto, não deveria ter sido feito, nem exibido, nem assistido.” Críticos de cinema fazem isso o tempo todo.
 
Tudo isso vale não apenas para o cinema, é claro. Vale para literatura, para música, para qualquer tipo de arte, porque na arte existe justamente esse entrançamento entre critério pessoal e critérios coletivos. Nunca poderíamos ler tudo, assistir tudo, então somos forçados a escolher, e escolhemos o que achamos agradável, ou importante, ou enriquecedor...
 
Ou então escolhemos na base da boiada, do impulso coletivo, vamos ao cinema porque é com nossa turma, lemos um livro para conversar nas festas com os amigos.
 
O que também não está errado, pois é assim que nos alimentamos de outras opiniões, outros conceitos, vemos como é que pessoas diferentes de nós reagem diante disso ou daquilo. Nunca existe um “gosto pessoal” 100% individualista. Somos sempre um reflexo do nosso mundinho, que por maior que seja é sempre pequeno, porque é do tamanho do que conhecemos.
 






segunda-feira, 21 de junho de 2021

4716) Eu me lembro 22 – Minas (21.6.2021)



 
1
Quando fui estudar em Belo Horizonte as aulas na escola de cinema eram à noite, e tínhamos todo o resto da madrugada para bater pernas pela cidade deserta. A turma era grande, mas o grupo mais constante com quem eu saía era formado por Lincoln e Régis (que vinham de fora, como eu), e mais Elizeu, Paulo Sérgio e Geraldo (que eram de BH). Andávamos à toa pelas ruas, como os personagens de Fernando Sabino.
 
Um dos nossos pontos de conversa preferidos ficava naqueles trechos estreitos de pracinha em frente do tradicional Hotel Del Rey. Ainda hoje vê-se ali um busto com quem a gente fazia gozação, um figurão histórico em cuja placa de bronze lê-se o versinho: “Da vida social na porfiada liça / ao lado do dever, e ao lado da justiça”. Numa prova de roteiro na Escola, escrevi um negócio totalmente cão-andaluz e dei o título “A Porfiada Liça”.
 
2
Havia uns bancos de praça onde a gente revezava sentando, enquanto os outros conversavam em pé, se agasalhando contra o vento mineiro. De vez em quando o frio apertava, a fome também (éramos todos estudantes lisos e subalimentados) e a gente pegava aquela rua lateral do Del Rey indo até o prédio do Estado de Minas, onde a madrugada era uma vigília permanente, cheia de vozerio, agitação, cafés quentes e botequins abertos, entregadores amarrando pacotes gigantescos de jornais recém-impressos cheirando a tinta. Pedíamos média de café com leite, pão-com-manteiga, doce de leite cortado em losangos. A poucos metros dali ficava o Cine Metrópole, íamos às vezes olhar os cartazes e falar mal dos filmes. “Filme bom” eram os que a gente via nas sessões do subsolo da escola, a tradicional “Cinematoca”. Dr. Caligari. Metropolis. Stagecoach. Ladrões de Bicicleta. Big City Blues. E o Mar Já Não Era. Pantha Rei.
 
Havia um personagem com quem de vez em quando a gente cruzava. Era um hippie com cara magra de índio, cabelão blequipau, sempre com um violão. Ele cantava uma música dele que a gente aprendeu: “Cara ou coroa, palitinho, ou par-ou-ímpar? / Meus pés ‘tão sujos, mas a consciência limpa.” Darlan Richard era o nome dele. A segunda parte da música terminava assim: “Meus pés ‘tão sujos, minha gente / alvura de detergente / bolinhas no ar de sabão / cachaça só com limão!”.
 
 
3
Algum pensador já disse que o único lado bom das ditaduras é que as ruas ficam mais seguras à noite. Durante as centenas de noites em que conversávamos naquela pracinha (sobre cinema, rock, literatura, MPB, política) não me lembro de ter parado alguma patrulha de polícia civil ou militar para perguntar o que a gente estava fazendo ali, dar o famoso baculejo, pedir documentos, tomar dinheiro.
 
O fato mais notável que lembro foi que uma vez estávamos agrupados e passou um carro barulhento, com gente cantando dentro, e um cara esticou o braço para fora e jogou na gente um ovo, que se espatifou na calçada. Semanas depois a turma dos amigos de Lincoln veio de Volta Redonda para fazer uma visita surpresa à pensão onde a gente morava. Contamos essa história do ovo, e Vicente perguntou: “Sim, jogaram de um carro que ia passando, mas o que estava escrito no ovo?”
 
 
4
Em junho não teve conversa, todo mundo arrumou a mochila, dobrou uma manta, e partiu para Ouro Preto, para um mês de festival. Era uma aventura, porque Ouro Preto à noite era uma Sibéria (eu ia dizer “uma Areia”, mas só os paraibanos entenderiam) e a gente ia sem saber onde ia dormir. Nesse festival e no do ano seguinte eu devo ter dormido nuns 20 lugares diferentes, toda noite era essa batalha.
 
Felicidade que havia muitas “repúblicas” de estudantes. Uma vez fui para uma delas com uma turma, bebemos, tocamos, fumamos, namoramos, e quando acordei na manhã seguinte não conhecia ninguém e me perdi num labirinto escheriano de corredores, escadas, bifurcações, salas com piso de madeira, passagens cheias de teias de aranha, pátios internos de onde só se podia fugir de helicóptero, mais corredores, mais escadas, sótãos, águas-furtadas. Consegui fugir, mas perdi lá a capa do violão.
 
 
5
No festival de 1971, fui de novo e dessa vez nosso amigo Domingos, da Engenharia, conseguiu para mim e Elizeu uma pouso permanente. A farra prosseguia. Descoberta dessa época: uma pessoa que: 1) saiba tocar violão com convicção e cara-de-pau; e 2) se disponha a acompanhar desde Led Zeppelin a João Gilberto, mesmo sem conhecer as músicas... essa pessoa não morre de fome, e principalmente de sede. Desenvolvi a arte de tocar baixinho, pegando de ouvido o tom e a cadência, e interferindo o mínimo possível com o violão (que sempre toquei mal). O violão serve somente pra segurar a cadência, segurar o tom, e indicar os pontos de virada.
 
Uma noite entrei num bar cheio de gente e estava tocando de pé, virado para o balcão (devia ser algo de Vandré ou Sérgio Ricardo, porque lembro que o bar todo estava cantando junto) quando não sei por que cargas dágua a porta imensa e pesada do bar, às minhas costas, soltou-se das dobradiças (alguém esbarrou, etc.) e caiu de prancha na minha cabeça. Num momento eu estava todo te-entrega-Corisco e no momento seguinte estava no chão, olhando para o teto e para uma dúzia de rostos ansiosos, sem saber o que tinha acontecido. Segundo Domingos, minha sorte foi estar de boné, e estar perto da porta, porque se estivesse mais longe (lá vinha explicação de Física Aplicada) a pancada seria maior, etc.
 
6
Foi no ano em que o Living Theatre novaiorquino, liderado por Julian Beck e Judith Malina, estava viajando pelo Brasil, instalou-se em Ouro Preto, e como era mesmo ditadura eles acabaram sendo presos. Numa tarde ensolarada e gélida estávamos como sempre tocando na Praça Tiradentes, o epicentro da cidade, quando circulou o chamado: iríamos todos fazer uma manifestação diante da cadeia onde os atores norte-americanos estavam presos, e exigir sua libertação imediata.
 
Saiu dali uma caravana hirsuta, andrajosa  e psicodélica com umas 200 pessoas, violão, flauta doce, charango, todos os naipes em voga. Descemos a ladeira caminhando e cantando, diante dos olhos entediados da população e dos olhos exultantes dos turistas endinheirados. Paramos em frente da cadeia, fortemente guardada, e ali cantamos o repertório habitual: Chico Buarque, Caetano, Vandré, “Deus e o Diabo” e encerramos com “This is the dawning of the Age of Aquarius, Aquaaariuuuuus...” Ninguém de dentro foi solto, mas ninguém de fora foi preso, e a vida seguiu em frente, roendo a carne e deixando os ossos.
 
 







sexta-feira, 18 de junho de 2021

4715) "Pantagruel e Gargântua" (18.6.2021)



A Editora 34 me enviou há pouco (obrigado Nina, Amanda) a nova edição de um dos clássicos mais divertidos da literatura, Pantagruel e Gargântua (1532-1534), de François Rabelais, com tradução, prefácio e notas (tudo excelente) de Guilherme Gontijo Flores.
 
Como se trata de um livro salpicado de alusões obscuras, fez muito bem o tradutor em botar todas as explicações numa longa nota na abertura de cada capítulo, situando de antemão o festival de nomes, citações, referências indiretas, etc. Lidas as notas, o capítulo flui que é uma beleza. Um exemplo a seguir.
 
Rabelais pertence àquela prateleira não-tão-grande-assim de “clássicos que a gente se diverte lendo”. A mesma prateleira do Dom Quixote de Cervantes, das Mil e Uma Noites orientais, de todos aqueles livros onde há elementos narrativos e pitorescos suficientes para recompensar tanto uma leitura desinformada (de um leitor adolescente, p. ex.) como também de um leitor erudito.
 
O gigante Pantagruel e seu pai Gargântua são personagens fantásticos, bizarros, exagerados, cordelescos, sem a menor pretensão de realismo, e a desproporção dos seus corpos gigantescos (e seus apetites insaciáveis) cria um contraste engraçado com os habitantes de Paris e de outras cidades por onde eles transitam seu tumulto.


(Ilustrações: Gustave Doré)
 
Ao longo da vida, François Rabelais (1483?-1553) foi padre, foi meio cientista, meteu-se com política, lia vários idiomas, e foi recolhendo esse saber de todas as fontes ao seu alcance, mas em vez de transformar isso em alguma “Summa Philosophica” cheia de pompa e erudição ele escreve as aventuras picarescas e extraordinárias de gigantes que comem e bebem desbragadamente, arrotam, peidam, cagam, metem-se em discussões filosóficas, metem-se em brigas, argumentam nos tribunais, aprontam na rua...
 
Os livros de Rabelais me fazem companhia há muitos anos; já tive a tradução de Davi Jardim Júnior para a Ed. Itatiaia, e li alguma outra na saudosa Biblioteca Pública dos Barris (em Salvador). A única que me acompanhou nesses anos de mudanças pelo Brasil afora foi a tradução portuguesa de Aníbal Fernandes (Ed. & Etc, Lisboa, 1975).
 
Já plagiei e imitei desbragadamente o impávido autor francês, especialmente nas peças que escrevi, desde Trupizupe, o Raio da Silibrina até as que fiz com Antonio Nóbrega, outro admirador das estrepolias rabelesianas (Brincante, Segundas Estórias). No meu recente livro Fanfic incluí o conto “A Demanda do Bosque Sombrio” onde o espírito do trêfego beneditino faz um backing-vocal discreto; e muitas das minhas canções e poemas (“Meu Nome é Trupizupe”, “Coco do Nascimento”, “Saara 2018”, etc.) recorrem ao mesmo arsenal de imagens estapafúrdias e neologismos arrevesados.
 
Porque o tema principal de Rabelais é a linguagem, a verbalização copiosa, excessiva, cachoeirística, irreprimível, de palavras polissilábicas recolhidas do direito, da filosofia, da sofística escolástica, da medicina, da botânica, do escambau e da caixa-prego, tudo isso distorcido com uma informalidade hip-hop pululante de severgonhices, solecismos propositais, barbarismos auto-gozosos, tortografias provocantes, latinidades tatibitates e greco-romanismos contaminados de DNA tupiniquim e sertanejo.
 
Este é o grande trunfo da tradução de Guilherme Gontijo Flores, cuja fidelidade ao original não questiono nem me interessa – vou eu agora catar lêndeas em quem traduz francês medieval?!! Ora bom-basta. Dane-se o francês medieval, e que bem repouse em seu sarcófago. A tradução de Rabelais para hoje tem que reproduzir essa vertigem verborrágica, essa diarréia dialética, e isso ele o faz abundantemente.



Com a vantagem adicional de jogar na correnteza turbilhonante as pedrinhas miúdas do português-BR  de hoje em dia, uma gíria aqui-acolá, um palavrãozinho num lugar que caiba, para nos lembrar que a linguagem do autor, na época do autor, cometia esses mesmos sacrilégios sacripantas; era um juridiquês-bebum destinado a sabotar por dentro o juridiquês pomposo dos rábulas espertalhões a soldo de reis semi-analfabetos.
 
São impagáveis os capítulos 11, 12 e 13, em que Pantagruel posa de juiz substituto para resolver uma pendenga indecifrável entre dois querelantes, os senhores Beijacu e Chuparrabo. Ele manda que Beijacu se explique primeiro, por ser o reclamante. E lá vem a explicação (um capítulo inteiro; darei aqui embaixo uma derramadinha como amostra):
 
(...) Durante a noite inteira, de mão ao pote, apenas despachamos bulas a pé e bulas a cavalo para reter os barcos, porque os alfaiates queriam fazer de retalhos uma zarabatana para cobrir o mar oceano, que então estava grávido de uma panelada de couve, segundo opinião dos palhoceiros; porém os médicos diziam que em sua urina não reconhecia um sinal evidente de que uma abetarda comesse machados com mostarda, a não ser o que senhores da corte dessem por bemol ordens à bexiga de nunca mais surrupiar bichos-da-seda, pois os palermas já tinham um bom começo para saçaricarem o estrindor no tom do diapasão, um pé no fogo e a cabeça no meio, como dizia o bom Ragot. (...)
 
Era essa argumentação que embasbacava os jurisconsultos locais. Pantagruel franze a testa e pede ao outro querelante, o senhor Chuparrabo, que explique seus argumentos E lá vem:
 
(...) E supondo que no cruzamento de cães corredores os pequerruchos tenham soado o corno antes de o notário entregar seu relatório por arte cabalística, não se segue (salvo melhor julgamento da corte) que seis arpentes de prado largamente medido forjem três tonéis de fina tinta sem soprar na bacia, considerando que nos funerais do Rei Carlos era possível comprar em pleno mercado o tosão por quatro mirréis – eu juro, lavro e dou fé – de lã. (...)
 
É uma peleja de Zé Limeira contra Eugene Ionesco e, visto isto, nosso bom Pantagruel pigarreia, coça o saco, e profere seu julgamento no mesmo idioma:
 
(...) Uma vez visto, ouvido e sopesado o diferendo entre os senhores de Beijacu e Chuparrabo, a corte declara que, considerando a horripilação do morcego ao declinar do solstício estival para cortejar baboseiras que sofreram mate de peão pela má vexação dos lucífugos presentes no clima trans-Roma de um maleiro encavalgado portando uma balestra nos rins, o querelante teve justa causa em calafetar o galeão que a governanta inflara, pé calçado e outro nu, reembolsando baixo e firme em sua consciência tantas asneiras quanto a pelagem de dezoito vacas, e basta quanto ao bordador. (...)
 
E assim, falando todos o mesmo dialeto surrealista, todos se entendem e os queixosos se abraçam e o povo dá hurras ao saber do grande Pantagruel.
 
Os livros de Rabelais têm sátira social, têm maledicência política à clef, têm heresias religiosas, têm escatologia gráfica e obscenidade explícita, mas acima de tudo têm a embriaguez da linguagem, da verborragia tonitruante de uma represa que explode e alaga metade dos Países Baixos.
 
Suas marcas estão por todo lado. João Ubaldo Ribeiro é um rabelesiano visível; Ariano Suassuna não poderia ter concebido Quaderna sem consultar essa apostila (o capítulo da “Filosofia do Penetral”, no Romance da Pedra do Reino, é Pantagruel puro); no Catatau de Paulo Leminski vemos pegadas nítidas do mestre; onde quer que haja um traço barroco e vociferante, um turpilóquio fescenino, o uso escrachado da pompa vocabular para mangar da pompa vocabular, aí estarão as indigitadas digitais do mestre gramático e anagramático Alcofribas Nasier.
 

 
O livro:
https://editora34.com.br/detalhe.asp?id=1093&busca=
 
 
 






terça-feira, 15 de junho de 2021

4714) Primeiras Estórias: "Fatalidade" (15.6.2021)



(Ilustração: Luís Jardim)
 
A obra de Guimarães Rosa, onde são tão frequentes os vaqueiros, os jagunços, os duelos, os combates equestres, roça de vez em quando por um imaginário de bravura pessoal e de violência que nos acostumamos a assimilar a partir do filme norte-americano de faroeste.
 
O nono conto de Primeiras Estórias (1962) é “Fatalidade”, um pequeno episódio faroesteiro. Ele não destoa de outros, que já comentei aqui, do mesmo volume: “Famigerado”, “Os irmãos Dagobé”... É aquela narrativa de poucas conversas e muitos exames de parte a parte, entre indivíduos durões de verdade, não os falastrões de saloon. Indivíduos que sabem usar uma arma, que só usam quando é preciso, e usam apenas uma vez.
 
São contos que derivam, direta ou indiretamente, das memórias sertanejas do autor, e em muitos deles, como neste aqui, há um narrador na 1ª. pessoa que veicula os acontecimentos para o leitor. O verdadeiro protagonista de “Fatalidade” é um tal de Meu Amigo. O Eu que narra a estória é um ser irrelevante. Caberia fazer-se uma antologiazinha só desses contos roseanos onde o narrador-Eu quase não faz nada senão assistir, escutar, testemunhar, tão ignorado e invisível quanto uma câmera cinematográfica.
 
Os parágrafos iniciais do conto lembram muito o início do Grande Sertão: Veredas:
 
(...) Na data e hora, estava-se em seu fundo de quintal, exercitando ao alvo, com carabinas e revólveres, revezadamente. Meu Amigo, a bom seguro que, no mundo, ninguém, jamais, atirou quanto ele tão bem – no agudo da pontaria e rapidez em sacar arma; gastava nisso, por dia, caixas de balas.
(“Fatalidade”)
 
Parece até o discurso do Riobaldo aposentado que abre o romance famoso:
 
Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvores no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade.
(GS:V)
 
Esse personagem tem muita coisa compatível com Riobaldo Tatarana:
 
Meu Amigo sendo de vasto saber e pensar, poeta, professor, ex-sargento de cavalaria e delegado de polícia.
(“Fatalidade”)
 
Por outro lado, ele lembra também outro personagem do romance, o meditativo e sábio “Compadre Meu Quelemém”. O Compadre é um personagem curioso do Grande Sertão, pois pelo que me lembro ele não surge em cena nem uma vez sequer, é sempre referido indiretamente por Riobaldo, que o considera um sábio, espírita da doutrina de “Cardéque”. Ele é um desses filósofos de rincão remoto, com leituras poucas e essenciais, e muita meditação. Quelemém certamente foi batizado como “Clemente”. Compadre Meu “Que Lê Mente”.
 
O Meu Amigo deste conto pertence à mesma estirpe samurai, de altas filosofias e derramamentos de sangue precisos e necessários. Ele decreta: “A vida de um ser humano, entre outros seres humanos, é impossível. O que vemos, é apenas milagre; salvo melhor raciocínio.”   Ele comenta: “Só quem entendia tudo eram os gregos. A vida tem poucas possibilidades”. Mais adiante finaliza: “Esta nossa terra é inabitada.”
 
O caso que se dá é que um homenzinho pequeno e tímido vem se aconselhar com o samurai sertanejo. É casado e pacífico, e sua esposa está sendo assediada por um valentão, Herculinão Socó, e toda vez que se mudam de vilarejo o catrapuz reaparece, assediando a moça. O queixoso, que se chama pelo apelido de Zé Centeralfe, vem pedir a Meu Amigo uma solução, de preferência ao abrigo da lei:
 
(...) Viajamos para cá e ele, nos rastros, lastimando a gente. É pêta. Não me perdeu de vistas. Adonde vou, o homem me atravessa... Tenho de tomar sentido, para não entestar com ele. (...) Terá o jus disso, o que passa das marcas? É réu? É para se citar? É um homem de trapaças, eu sei. Aqui é cidade, diz-se que um pode puxar pelos seus direitos. Sou pobre, no particular. Mas eu quero é a lei...
(“Fatalidade”)
 
Constrói-se assim uma situação que na minha terra só se resolve de um jeito. Alguém precisa remover Herculinão Socó do mapa-múndi. Meu Amigo não dá muitas respostas, mas durante a a lamúria do queixoso se levanta, ajeita a posição de uma carabina oblíqua na parede. Volta a sentar, o tempo todo olhando para as armas penduradas em amostra, e para Zé Centeralfe. Depois de muitos olhares, este entende o recado, pede licença e sai.
 
O narrador e Meu Amigo o seguem.
 
Eis senão quando, trazido pela pena providencial do Roteirista do Mundo, surge no matagal o vulto de Herculinão. Um pré-cheiro de pólvora inunda o ar. Há um tiro-tiro rápido,
 
...e o falecido Herculinão, trapuz, já arriado lá, já com algo entre os próprios e infra-humanos olhos, lá nele – tapando o olho-da-rua. Não há como o curso de uma bala, e – como és bela e fugaz, vida! 
(“Fatalidade”)  
 
Eles constatam, no entanto, que Herculinão fora derrubado por dois tiros. A segunda bala o pegou no coração.
 
Uma situação dramática que evoca o duelo clássico de O Homem Que Matou o Facínora (“The Man Who Shot Liberty Valance”, 1962) de John Ford. Neste filme, o pacato e hesitante Ranse Stoddard (James Stewart) precisa da ajuda do calejado e ético pistoleiro Tom Doniphon (John Wayne) para abater o herculinão local, Liberty Valance (Lee Marvin).

  
Quando Stoddard e Valance se confrontam no meio da rua e sacam as armas, é Doniphon que, escondido, abate o bandoleiro, deixando que Stoddard, no meio da confusão, seja dado como o herói, iniciando aí uma carreira política que só trará benefícios para a cidade. É ele quem vira “o homem que matou o facínora”.
 
Durante algum tempo matutei se haveria alguma influência do filme de Ford sobre o conto de Rosa. Parecia que não, porque a grande maioria dos contos de Primeiras Estórias teve publicação prévia, principalmente no jornal O Globo, ao longo de 1961, portanto antes do filme, que foi lançado nos EUA em abril de 1962. (Não pude apurar a data de exibição do filme no Brasil.) 
 
Não é o caso, porém, de “Fatalidade”, que não é mencionado nessa lista de publicações (v. Em Memória de Guimarães Rosa, José Olympio, 1968, pags. 208-210). Haveria, portanto, uma estreita janela temporal para que Rosa, sabendo do argumento do filme pela imprensa ou por outras vias, compusesse sua estória a ponto de ser incluída no livro, pois a primeira edição de Primeiras Estórias foi impressa em agosto de 1962.
 
Não custa lembrar que o filme de John Ford se baseia num conto homônimo de Dorothy M. Johnson, publicado nos EUA em 1953.
 
Bem; isso são passatempos de nerd. O que importa no conto, mais do que influências ou inspirações, é sua mecânica sutil, sua ética rude, seu reconhecimento tácito de que com certas qualidades de brutalismo não há conversa possível. Herculinão merece morrer. (Contra-argumento possível, e bem fundamentado: Augusto Matraga era também um acaba-samba da mesma má qualidade, mas bastou uma surra bem aplicada para encaminhá-lo para o Céu, mesmo a porrete.)








sábado, 12 de junho de 2021

4713) O pantelho do detalhe (12.6.2021)




(foto: Mari Lezhawa)

A gente estava numa mesa de restaurante, eram pessoas amigas entre si, professores de uma Universidade, e eu estava lá meio de convidado. Entraram numa discussão qualquer, e esse cara começou a exclamar:
 
– Pessoal, por favor! La paz, la paz!
 
Houve uma gargalhada geral. O fato de ele dizer em espanhol não me chamou a atenção, era apenas um modo de dizer, né? Como quando alguém nos entrega um objeto e a gente diz: “Gracias!”. Um enfeite verbal pra dizer algo comum.
 
Depois eles me explicaram. Era uma gíria da turma deles, porque anos atrás eles tinham recebido ali na Universidade, para dar uma palestra, um professor latino-americano, com muitas homenagens e salamaleques. No dia seguinte o professor ia embora, rolou um almoço de despedida. Aquelas situações em que uma turma de admiradores “bebe cada palavra” do visitante ilustre. Imagine um grupo de psicanalistas recebendo Jacques Lacan.
 
Alguém fez uma pergunta importante e o ilustre começou a responder algo como:
 
– Esta é uma questão muito grave. Para mim, o fator decisivo disto, para Latinoamérica, encontra-se na Bolívia. Vocês conhecem a Bolívia?
 
– Já estive na capital – disse um professor. – Passei uma semana em La Paz.
 
– Perdão – disse outro professor. – A capital da Bolívia é Sucre.
 
– Como assim? – disse o primeiro. – Todo mundo sabe que é La Paz.
 
– La Paz é apenas a sede do governo – disse um terceiro.
 
– E então? – disse o primeiro. – A sede do governo é a capital. É La Paz, portanto.
 
– Não, é Sucre – disse um quarto. – Chama-se capital constitucional.
 
– O país tem duas capitais, então? – perguntou uma professora. – E como é que faz quando---
 
– De acordo com a Constituição, só tem uma – interrompeu o quarto professor. – Que é Sucre.
 
– Vá resolver alguma coisa com o governo de lá, e vão lhe mandar para La Paz – disse o primeiro, que já tinha visitado a cidade.
 
O resultado (me contaram) é que todos se engalfinharam na discussão desse ponto. O almoço acabou, o visitante ilustre teve que partir porque o carro veio buscá-lo, e ninguém ficou sabendo qual era o fator decisivo para Latinoamérica. Desde essa época, eles criaram a expressão “La Paz” para implorar: “Gente, está-se discutindo uma coisa mais importante, não é preciso esclarecer esse detalhe agora”.


O problema é que existem seres humanos, virginianos em sua maioria, que não permitem o menor erro ou imprecisão passar diante dos seus olhos. Tem que parar o desfile de 7 de setembro inteiro, fazem com que dez mil estudantes fiquem marcando passo à espera, enquanto um inspetor se insinua no meio de um pelotão para ajeitar uma trunfa que o vento assanhou. Proibido qualquer coisa fora do lugar! – eis a palavra de ordem.
 
É uma característica do espírito nerd essa obsessão pelo detalhe. O nerd é o resultado de uma mutação genética destinada a resolver importantíssimos problemas da Humanidade numa era de aceleração tecnológica onde mais e mais coisas atingem um nível inédito de complexidade, em virtude de especificações decididas num micro-nível por força do uso de computadores. Precisamos de mentes humanas capazes de distinguir essas nuances.
 
O nerd é um filtro de exatidão. É como um browser que recusa uma senha ou uma URL de 150 dígitos se um deles estiver errado. A gente não pode convencer o browser de que “é praticamente a mesma coisa”. O browser foi programado por um nerd e lhe dirá: “Na verdade, é teoricamente a mesma coisa, mas na prática há a diferença de um dígito, e isto invalida o comando.”
 
Não duvido de que ainda veremos mesas-redondas em eventos científicos com três ou quatro nerds comparando diante da platéia suas versões conflitantes da dízima de “Pi” ou do algoritmo de frequência dos números primos. O rapaz da mesa de som poderá se perguntar qual é a serventia disso para a espécie humana, mas ele está errando o alvo. A espécie humana surgiu para ser capaz de um dia (século vinte, vinte e um, por aí) produzir esses indivíduos capazes de negar o Oscar a um filme porque na cena tal aparece a sombra de um microfone.


Deus está nos detalhes, diz um velho provérbio, e o Diabo está na percepção deles. Esses indivíduos catadores-de-lêndeas são capazes de perceber o que é invisível a todos. Quando incomodam, não o fazem por mal. Você mostra a um deles a foto de sua mãe vestida de noiva e ele diz: “A manga do vestido está desfiada”. Não é culpa dele. Está em seu DNA.
 
Não esqueço uma discussão que vi a respeito de um filme de faroeste. Chamamos o filme de faroeste, e foi o quanto bastou para que um debatedor erguesse o dedo e nos lembrasse que a história era ambientada num Estado qualquer, que já não lembro, mas que ficava na Costa Leste dos EUA.
 
“Sim,” disse alguém, “mas trata-se da história de bandidos que assaltam uma diligência e se refugiam numa fazenda, sequestrando a família do fazendeiro, até que os vaqueiros vêm em socorro do patrão e o libertam. Fazenda, gado, vaqueiros, revólveres, tiroteios, cavalos: é um faroeste”. “Mas, como, se a história se passa no Leste?” insistia o rapaz. Isso foi há uns 40 anos, e provavelmente ainda estão lá, as barbas brancas arrastando no chão sobre as teias de aranha, e não chegaram a um acordo.


Eles são sensíveis à minima incoerência. São como o canário que os trabalhadores nas minas de carvão levam consigo para dentro do poço. O canário é excessivamente sensível a qualquer emanação de gás, e quando um deles cai duro é sinal de que está na hora de evacuar a mina, antes que o gás comece a afetar os seres humanos.
 
Os indivíduos detalhistas são assim: eles são sensíveis a defeitos, erros, incoerências, imperfeições, inexatidões de todo tipo, e antes que essas coisas cheguem a um ponto de incomodar os seres humanos, eles acusam o golpe, ficam pálidos, com sudorese, apontando a página de um livro: “Faltou a crase, faltou a crase!”.
 
Por isso, quando a gente escreve ou quando fala em público, precisa estar sempre na defensiva. Pode haver um deles na platéia. Qualquer afirmação generalizante, tipo “como sabemos, o brasileiro gosta muito de música”, fará erguer-se um braço no auditório e com ele o brado: “eu não gosto!”. Para prevenir ressalvas desse tipo foram criadas expressões atenuantes como “em geral”, “na maioria dos casos”, “em grande parte dos casos”, “normalmente”, “cerca de “, “aproximadamente”... Servem para exorcizar esses indivíduos prontos a brandir uma exceção toda vez que a gente enunciar impensadamente uma regra.
 
E então o jeito é dizer “La Paz!...” – e ir em frente.
 






quarta-feira, 9 de junho de 2021

4712) Cinco cinéfilos (9.6.2021)


1
O pessoal conta que, no tempo em que Campina Grande tinha cinemas de rua, havia um tal de Dr. Gregório, advogado, que morava na Desembargador Trindade. Ele trabalhava a manhã toda no escritório que dividia com dois sócios, no centro. Voltava para almoçar em casa, dormia a sesta, e por volta das 3 da tarde trocava de roupa e subia devagar a Rua Irineu Joffily, rumo ao centro, o que o faria passar obrigatoriamente pelos dois cinemas locais, o Cine Babilônia e depois o Cine Capitólio. O costume dele era comprar ingresso num dos dois (as sessões da tarde eram às 15:30), entrar e assistir o começo da sessão, o cinejornal, os trailers, em pé junto à cortina da entrada. Depois, assistia cinco minutos do filme. Se o filme fosse interessante ele avançava e ia sentar lá na frente. Se achasse o filme chato saía, subia até o Calçadão e passava a tarde tomando café pequeno no São Braz e falando da vida alheia.
 
2
Trudi Haasse, veterana crítica teatral de Durban, confessou numa entrevista ao programa Nesta Hora, da TV local, que sua paixão pelo teatro começou, curiosamente, na infância. Trudi tinha uma irmã de dezoito anos; a família, muito conservadora, só permitia que o namorado dessa irmã mais velha a levasse ao cinema se levassem Trudi consigo. O casal de jovens ia ao cinema quase todos os dias, apenas para namorar em paz. A garota, a partir dos oito anos, foi submetida a uma dieta constante de filmes de todos os tipos: dramas, comédias, faroestes, policiais, terror, desenhos animados, crítica social... Quando chegou à adolescência, entrou para um grupo de teatro, tornou-se atriz, iluminadora, diretora, autora, e por fim exerceu a crítica teatral, em alto nível, por mais de quatro décadas. Quando um entrevistador lhe perguntou certa vez por que optou pelo teatro, ela confessou: “Não suporto cinema.”
 
3
Quando o Cine Pathé, ali perto da Savassi, funcionava como Cinema de Arte para as platéias belorizontinas, havia um casal que sempre ia nas sessões da tarde. Ele era baixinho mas muito empertigado, vestido sempre de terno preto, chapéu, cavanhaque, uma figura meio anacrônica. Era cego e tinha sempre ao lado a esposa, que o conduzia pelo braço. Ela dirigia o carro, ajudava-o a descer, comprava os ingressos. Uma vez eu estava sentado perto do casal e a ouvi contando o filme a ele. O filme era Tempo de Guerra, de Godard, um filme em preto-e-branco, tela pequena, produção quase artesanal. Ela descrevia paisagens coloridas, em Cinemascope, heroísmos de baioneta em punho, mocinhas tímidas encolhendo-se de susto diante de soldados barbudos, e dava um jeito de encaixar a narrativa com aqueles sons e aqueles diálogos lacônicos em francês. Virei-me disfarçadamente. Ele sorria, de olhos fechados, e a mulher não tirava os olhos da tela, enquanto dizia: “Centenas de soldados marchando num campo nevado... Ah, que céu azul tão belo... agora uma chuva da paraquedas cor-de-laranja...”
 
4
Um amigo meu tinha uma tia idosa, em Cajazeiras, que ia religiosamente ao cinema uma vez por ano. O advérbio se justifica, porque ela era muito católica, e toda Semana Santa ia ver A Paixão de Cristo.  O filme que ela via era uma cópia de propriedade do cinema, e era sempre o mesmo, bem antigo, aquele filme preto-e-branco, granulado, a imagem meio aceleradazinha. Mas o mundo se moderniza, e teve um ano em que o dono do cinema resolveu inovar, e na Sexta-feira Santa exibiu O Rei dos Reis, filmão cinemascope, colorido, com Jeffrey Hunter no papel de Cristo. Dona Fulaninha foi ao cinema meio no piloto automático, comprou o ingresso sem prestar atenção, mas com cinco minutos de filme retirou-se da sala de projeção e saiu bufando de raiva. Chegou em casa indócil, reclamando da heresia. A família quis acalmá-la: “Mas titia, que que tem que eles resolvam mudar de filme?” E ela, escandalizada: “Que que tem? Botaram um filme de mentira, americano, com um ator fingindo que é Jesus! Eu quero ver é o filme de verdade, o do Calvário, com o Jesus verdadeiro!”  Ninguém teve coragem de contar.
 
5
Nos velhos tempos, os cinemas principais de Campina Grande tinham três sessões por dia. A matinê, sempre às 15:30; e duas sessões à noite, sempre às 19:00 e às 21:00, a não ser nos casos daqueles filmes que extrapolavam, como E o Vento Levou. Nesse tempo, também, não havia o costume ditatorial de esvaziar a sala após uma sessão. Terminava o filme, acendia-se a luz, e quem quisesse continuar assistindo podia ficar, ir no banheiro, comprar balas na sala de espera, e depois voltava lá para dentro. Muitas vezes fiz isso apenas por causa do futebol: via a primeira sessão completa, esperava para ver de novo o Canal 100 na segunda, e depois ia embora.
 
Nos tempos de cineclube, não foram poucas as vezes que eu via o filme à tarde, saía do cinema às 17:30, corria para casa, jantava, voltava correndo, via o filme de novo às 19 e às 21. Fiz isso com O Anjo Exterminador, O Homem do Prego, Help, Mickey One, O Ente Querido... A gente sabia que depois daquele dia (as sessões de “Cinema de Arte” eram um dia apenas) nunca mais teria chance de rever o filme.
 
E aqui entra o caso de um conhecido meu, vamos chamá-lo Nestor. Ele trabalhava de balconista no comércio, era casado, tinha filhos pequenos. E gostava de cinema. Só tinha um problema: de tarde não podia ver filme, porque estava trabalhando. A loja fechava sempre por volta de 7, 7 e meia, porque era preciso conferir contas, material, sei lá o que. O fato é que ele só ficava liberado por volta das 8 da noite. E não queria ver a sessão das 9, porque terminava às 11 e ele gostava de botar os filhos pra dormir.
 
Nestor criou um hábito. Fosse qual fosse o filme, ele saía da loja direto pro cinema, comprava ingresso e assistia a segunda metade do filme. Esperava no intervalo, continuava lá na segunda sessão, e via o filme até a parte em que tinha chegado. Aí saía – era sempre por volta de 10 horas, 10 e pouco. Ele ainda chegava em casa (na 4 de Outubro) e pegava as crianças acordadas. E desenvolveu uma ciência da leitura fílmica. Dizia ele:
 
– Rapaz, é só ir pegando as pistas, sacando a história, vendo quem são os personagens, prestando atenção ao fim. No intervalo eu repasso tudo na memória. Quando começa a segunda sessão, é uma beleza, o filme vai começando e cai uma ficha atrás da outra, tudo se explica, tudo se encaixa, tudo é “ah, então era por isso”, “logo vi que tinha sido assim”, “puxa, quem diria”... O cinema é uma grande arte, a toda hora tem um mistério que não se acaba, uma surpresa que ninguém espera.