sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

4678) Minhas Canções: "Carrossel do Destino" (26.2.2021)




Minha parceria musical e teatral com Antonio Nóbrega tem uma longa história, que remonta ainda aos tempos de Campina Grande, de 1972 em diante, quando eu estava lendo pela primeira vez o Romance da Pedra do Reino e vi a primeira “aula espetáculo” de Ariano Suassuna, no Teatro Municipal de Campina Grande, fazendo a Aula Magna de abertura do ano letivo da Universidade Federal da Paraíba, Campus II.

Eu estava embebido de interesse pela música popular do Nordeste, e para isso somou-se o fato de que recentemente o Quinteto Armorial, criado no Recife por Ariano, tinha se transferido para Campina Grande, onde seus integrantes passaram a morar e dar aulas de música. Foi esse modo que virei amigo e companheiro de moderadas carraspanas no “Caldo de Peixe” com Antonio Madureira, Fernando Torres Barbosa, Fernando “Pintassilgo” Farias e Edilson Eulálio.

Pois é: um Quinteto com apenas quatro? Porque razões familiares e profissionais impediram Antonio Nóbrega, o quinto integrante, a ir morar em Campina. Ele continuou no Recife, e foi de todos o que conheci por último. E aquele com quem fiz a parceria mais sólida.

Não lembro quando conversamos a primeira vez, mas pode ter sido quando vi no Teatro Santa Isabel do Recife um dos seus primeiros espetáculos-solo. Ficamos amigos e voltamos a nos encontrar depois, quando já morava eu no Rio de Janeiro e ele em São Paulo.

Nosso trabalho conjunto começou no final de 1989, quando começamos a bolar um espetáculo reunindo Nóbrega, sua esposa e parceira-de-palco Rosane Almeida, e Raul Barretto. Eu ia a São Paulo quase todo mês e passava alguns dias com eles, discutindo piadas, gags visuais, pequenos entremezes, números musicais e de malabarismo...

Esse espetáculo nunca se concretizou; Raul Barretto foi trabalhar no grupo “Parlapatões”, e Nóbrega voltou-se para um espetáculo solo que se tornaria o Figural, um dos seus primeiros grandes sucessos.


(Brincante)

O nosso trabalho de criação prosseguiu, porém, e em 1992 estreou Brincante, onde fiz texto e diálogos, Romero de Andrade Lima fez cenários, figurinos e direção geral, Nóbrega e Rosane fizeram tudo. Em 1994 repetimos a dose com Segundas Estórias, já com uma equipe maior. E desde então, sempre fui chamado a colaborar nos espetáculos “tonhetânicos”, como os chamamos, com canções, pequenos esquetes ou números recitados.

Em 2002 Nóbrega lançou o CD Lunário Perpétuo onde está esta bela ciranda, “Carrossel do Destino”. Estávamos nos falando ao telefone com frequência, e eu recitei para ele umas estrofes que tinha composto. Ele me pediu uma cópia mas já foi compondo a música.

As formas fixas da poesia popular nordestina têm essa vantagem. Se o letrista diz “escrevi uns versos em décima”, basta ao músico “compor uma melodia em décima” e as duas se encaixam, mesmo que cada uma tenha sido feita sem conhecer a outra. São dez linhas, cada uma com dez sílabas de letra (=dez notas de música), com uma cadência específica. Como se diz na Paraíba, “não tem errada”.

Os versos foram escritos no final de 2001, e como outras coisas que fiz nesse período refletiam um pouco a tensão em que vivia o mundo após os atentados do 11 de setembro.

O mote da canção foi tirado, veja só, de Zé Limeira. Folheando o livro de Orlando Tejo sobre o Poeta do Absurdo, encontrei no final do Capítulo 10 esta décima de “despedida”:

Adeus, que já vou rodar

no carrossel do destino.

Eu vou tocar no meu sino

até o guarda apitar.

Barca feita de jucá.

Caminhão de melancia.

Cangaceiro, correria,

bacamarte e lazarina,

rege, regente e Regina,

adeus, até outro dia!

 

Do resto do verso não se aproveita nada, mas essas duas linhas iniciais se cravaram na minha memória. Dei uma leve ajeitada e produzi algumas estrofes. Nóbrega brincava sempre que a vantagem das minhas letras é que eu mandava sempre um caminhão de versos, de onde ele podia escolher os melhores para gravar.

Desde então, essa música tornou-se um número habitual nos shows dele, apareceu em ouros discos e DVDs.

Aqui, o link para uma versão oficial, com Nóbrega e sua banda:

https://www.youtube.com/watch?v=lOdnFlr-BPk&ab_channel=DIRETODOSMANGUEZAIS 

E abaixo a letra completa que fiz; os versos em negrito não foram gravados, mas eu canto às vezes quando a vez é minha.


CARROSSEL DO DESTINO

(Braulio Tavares – Antonio Nóbrega)

(negrito: versos não gravados)

(março 2002)

 

Deixo os versos que escrevi

as cantigas que cantei

cinco ou seis coisas que eu sei

e um milhão que eu esqueci.

Deixo este mundo daqui

selva com lei de cassino;

vou renascer num menino

num país além do mar...

Licença, que eu vou rodar

no carrossel do destino.


Romances e epopéias

me pedindo pra brotar

e eu tangendo devagar

a boiada das idéias.

Sempre em busca das colméias

onde brota o mel mais fino,

e um só verso, pequenino,

mas que mereça ficar...

Licença, que eu vou rodar

no carrossel do destino.

  

Enquanto eu puder sentir

o mundo com a minha mente

o tempo estará presente

passando sem resistir.

Na hora que eu for partir

para as nuvens do Divino,

que a viola seja o sino

tocando pra me guiar...

Licença, que eu vou rodar

no carrossel do destino.

 


Adeus, cadeia do mundo!

Morrer é a liberdade.

Deixo gotas de saudade

cair nesse mar profundo.

Deixo tudo num segundo,

instantâneo, pequenino:

o tempo que um cristal fino

leva para se quebrar...

Licença, que eu vou rodar

no carrossel do destino.

 

Não sou profeta nem louco

mas vejo o que ninguém vê

creio no que ninguém crê

pago e não espero o troco.

O que eu sei é muito pouco

mas o pouco que eu ensino

aprendi desde menino

sem ninguém pra atrapalhar...

Licença, que eu vou rodar

no carrossel do destino.

 

Adeus, carcaça do mundo,

vou procurar vida nova.

Faço a conta e tiro a prova

decifro o x num segundo.

Eu não sou Pedro II

que foi rei mas não menino;

sou barro de Vitalino

um dia serei luar...

Licença, que eu vou rodar

no carrossel do destino.

 

Quero deixar de ser eu

porque ser eu é ser muitos;

eu sou tantos outros juntos

que nenhum prevaleceu.

Eu tenho um lado judeu

tenho um lado palestino;

um lado novaiorquino

e outro de Kandahar...

Licença, que eu vou rodar

no carrossel do destino.

 


 








terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

4677) O "exame final" de Julio Cortázar (23.2.2021)


Julio Cortázar escreveu este romance ainda na Argentina, pouco antes de se mudar em definitivo para a França, e o deixou inédito, embora não por desmerecê-lo. Tanto é assim que a edição que li agora (Buenos Aires: Alfaguara, 1996) reproduz esta apresentação feita pelo autor:
 
Escrevi O Exame Final (El Examen) em meados dos anos 1950, em uma Buenos Aires onde a imaginação pouco tinha o que agregar à história para obter os resultados que o leitor verá.
 
Como a publicação do livro era impossível então, somente alguns amigos o leram. Depois, e já distante, soube que esses amigos acreditaram ver em certos episódios uma premonição de acontecimentos que ilustraram nossos anais em 1952 e 1953. Não me senti feliz por ter acertado essas loterias necrológicas e edilícias. No fundo, era demasiado fácil: o futuro argentino se obstina de tal maneira em calcar-se sobre o presente que os exercícios de antecipação carecem de qualquer mérito.
 
Publico hoje este velho relato porque me agrada irremediavelmente sua linguagem livre, sua fábula sem moral-da-história, sua melancolia portenha, e também porque o pesadelo de onde nasceu continua desperto e anda pelas ruas.
 
O livro saiu aqui como O Exame Final, Civilização Brasileira, 1996. Em mais de quinze saites que consultei, não se informa o nome do tradutor, como aliás é de praxe no Brasil. Desculpa aí, colega – se alguém tiver o livro em casa, agradecerei a informação. (Recebo agora o recado de que a tradução é de Fausto Wolff.)  



A história transcorre ao longo de um dia e meio, e conta as perambulações e as conversas de cinco personagens, que discutem principalmente literatura. Cortázar sempre gostou desses romances sobre grupos de pessoas que convivem e que discorrem longamente sobre livros, música, algo de política ou filosofia. É o formato, com variações, encontrado em Divertimento (1949), O Jogo da Amarelinha (1963), 62: Modelo Para Armar (1968), Libro de Manuel (1973).
 
Os personagens são dois casais (Juan e Clara, Andrés Fava e Stella) e um amigo chamado de O Cronista, que os acompanha nos passeios e nas discussões.
 
A narrativa é linear, sem complicações. Começa no ambiente de uma espécie de universidade , “A Casa”, onde professores leem obras clássicas para estudantes. No dia seguinte, Juan e sua mulher Clara devem prestar ali o exame final. Os dois se encontram ao anoitecer, e logo depois encontram-se com o casal Andrés e Stella, caminham, pegam ônibus, começam a fazer paradas por uma sucessão de bares e cafés. Num deles, encontram O Cronista, um jornalista amigo dos quatro, que se junta ao grupo.
 
Parece tudo muito normal e muito mainstream, mas a verdade é que os personagens se queixam o tempo todo de uma névoa misteriosa que está tomando conta da cidade, uma névoa úmida, pegajosa, que às vezes cheira a fumaça, ou a outras coisas. “Mas não é névoa. Ninguém sabe o que é. Estão averiguando no laboratório”. Todo mundo reclama. Todo mundo se conforma.
 
Se fosse um romance de Stephen King ou mesmo de Neil Gaiman não passaria batida a ninguém a profusão de comentários sempre inconclusivos, que mais aprofundam a dúvida do que a esclarecem.
 
A névoa cheirava a castanha assada, a cloro. “Incrível que possa ser tão densa.”
 
Ainda não têm a análise da névoa, mas já houve dois comunicados da polícia, e uma velha armou um escândalo horrível na esquina de Diagonal e Suipacha, isto faz meia hora. Histeria a baldes, querido.
 
À medida que a noite avança e entra pela madrugada, a discussão literária é permeada por comunicados de que em algumas partes da cidade o asfalto está cedendo e afundando com automóveis; que a polícia interditou algumas ruas; que pessoas estão sendo hospitalizadas; postos de atendimento estão sendo instalados em pontos-chave dos calçadões do centro.
 
A certa altura, os cinco amigos se dirigem para a Plaza de Mayo onde uma multidão enorme comparece para ver a exibição de uma relíquia misteriosa, “o Osso”. É nesse momento que uma parte da crítica identifica a má-vontade de Cortázar para com o peronismo ascendente dessa época, movimento que arrebanhou “descamisados” e proletários de todos os lados. Os cinco jovens intelectuais comentam o mau gosto, a grosseria, a vulgaridade daquela multidão que montou na praça uma mistura de quermesse, vigília política e manifestação.
 
Eles entram na fila quilométrica e acabam vendo o tal osso:
 
Havia um algodão, e o osso em cima. A lanterna produzia umas pequenas centelhas, como no açúcar. Todos o observaram, e dava para vê-lo muito bem, apesar de que era quase tão branco quanto o algodão, mas de encontro a ele parecia quase rosado, com as pontas de um amarelo muito claro. (p. 77, trad. BT)
 
Essa surrealista cerimônia popular, para alguns leitores, prefigurou a vigília do velório de Evita Perón, evento cuja foto ilustra a capa desta edição, a que li.



Os amigos saem dali, vão para outra praça, compram bebida e ficam conversando até o amanhecer, quando pegam táxis e voltam para suas casas. Dormem um sono rápido e no outro dia já estão de pé, sendo que Juan e Clara continuam preocupados com o exame final que terão de prestar logo mais à noite.
 
Vão visitar o pai de Clara, que os convida para assistir um concerto de música erudita no Teatro Colón. Juan e Clara o acompanham; a certa altura, no banheiro repleto de homens respeitáveis, encasacados, irrompe uma briga tremenda, de socos, por causa de um pente preso a uma correntinha, usado na pia de lavar o rosto; e vão parar na polícia, que logo os dispensa.
 
Esta pequena aventura de Juan e Clara tem paralelo em outra peripécia insólita vivida por Andrés na famosa livraria El Ateneo¸onde ele passeia lembrando com nostalgia seus tempos de estudante “liso”, amontoando moedas para poder comprar “O’Neill, Vinte Poemas de Amor, Filhos e Amantes...”



Ali ele encontra um balconista conhecido, e comentam a névoa, que durante o dia não arrefeceu nem um pouco, está “mais pegajosa do que Rachmaninoff”, e aliás o governo adverte, nas páginas de La Nación:
 
Previne-se a população que, à espera do resultado das análises que neste momento estão sendo conduzidas pelo Ministério da Saúde, não se deve utilizar como alimento os fungos aparecidos durante a noite passada, em muito pequena quantidade, nesta capital. (p. 200)
 
Nos andares superiores da livraria, Andrés banca o espião e acaba presenciando uma cena em que um grupo vigia um homem morto há poucos minutos, enquanto outros, naquele calor espantoso, lavam o rosto de um em um na água acumulada numa banheira. Uma cena que não deixa de lembrar a claustrofobia pouco higiênica dos burgueses aprisionados na Rua da Providência, em O Anjo Exterminador (1962) de Luís Buñuel.
 
Existe algo de buñuelesco nesta novela em que a “câmera” acompanha um grupo de personagens que faz o que pode para manter as aparências mesmo quando estão envoltos numa situação ameaçadora, incompreensível, sem escapatória.
 
Acho que não mencionei dois detalhes importantes. Primeiro, que rola um clima entre Andrés Fava e Clara, a mulher de Juan, que a leva inclusive a lamentar-se: “No fundo o que me magoa é que você e ele não sejam um só, ou que eu não possa ser duas”. Outro detalhe enigmático é a presença sorrateira e constante, nas pegadas do grupo, de um amigo deles, Abel, que lhes causa um certo medo, nunca explicado. Fica a suspeita de que seja um “dedo duro” da polícia, ou um ex-pretendente de Clara querendo assediá-la.
 
Os cinco amigos voltam a se reunir, trocam impressões, vão à Casa para que Juan e Clara prestem o seu exame. Anoitece; um novo episódio insólito acontece, porque a inquietação nas ruas aumenta, o exame demora a começar, professores e bedéis entram e saem, conferenciando em voz baixa, os alunos não aguentam mais de tanta expectativa, e por fim... chegam funcionários, distribuem a todos eles diplomas de aprovação e os mandam embora.
 
E o grupo recomeça, exatamente vinte e quatro horas depois, a peregrinação pelos bares e cafés, sem entender o que está se passando. Todos, menos Andrés, que chega à conclusão de que é preciso ir embora de Buenos Aires, e os capítulos restantes do livro envolvem manobras secretas e clandestinas para uma fuga de barco pelo Rio da Prata, que não deixa de lembrar aqueles filmes policiais sobre a Resistência Francesa.
 
Leitores de Cortázar reconhecerão a atmosfera ao mesmo tempo descontraída e tensa de Os Prêmios (1960), onde os passageiros de um cruzeiro marítimo estão todos se divertindo à pampa até descobrirem que não podem passar para a popa do navio. Mas por que não podem? Ninguém diz, ninguém sabe, ninguém explica. Começa aí uma tensão que vai desembocar num desfecho violento.
 
Cortázar comenta, em algumas entrevistas, que não lhe faz muita diferença “saber” por que os passageiros não podem ir para aquele ponto do navio. É aquilo que Hitchcock chama um “MacGuffin”, um mero pretexto, com um mínimo de explicação, cuja função é gerar a tensão e o desenlace.
 
Este romance não desmerece em nada os outros livros de Júlio. Há um volume extraído dele, o Diário de Andrés Fava (que não li ainda). Foi encontrado nos papéis do escritor após sua morte. Parece que ele havia recheado El Examen com reflexões literárias de Andrés mas depois achou mais conveniente transpor esses capítulos para outro suporte. Em Rayuela, ele decidiria ao contrário: misturar os dois, dando ao leitor a opção de acompanhar cada um linearmente ou de misturar as leituras.













sábado, 20 de fevereiro de 2021

4676) "Trapézio" (20.2.2021)

 

Graças às prodigalidades da Internet, assisti estes dias a um filme da minha remota infância, do qual lembrava muito pouco: Trapézio, com Burt Lancaster, Tony Curtis e Gina Lollobrigida. Fiquei sabendo agora que o diretor é o competente Carol Reed, e o ano é 1956.
 
Trapézio é um dos clássicos do circo no cinema. É aquele filme que faz parte do currículo mínimo obrigatório para quem quiser mergulhar no assunto. Tem uma história de amor um tanto previsível, o triângulo amoroso de sempre, e por trás dela, dando-lhe sustentação, uma história de auto-ajuda igualmente previsível: o indivíduo que vê frustrados seus sonhos de juventude e que à entrada da velhice se resigna a ser o mestre de um aprendiz a quem caberá vencer onde ele foi derrotado.
 
Mike Ribble (Burt Lancaster) é o trapezista que se acidentou ao tentar o dificílimo salto mortal triplo, e que agora trabalha consertando coisas no circo onde já foi estrela, e onde é querido por todos. Um dia surge-lhe na frente o jovem Tino Orsini (Tony Curtis), talentoso, impetuoso, ousado, que quer-porque-quer aprender o salto triplo, e exige que Mike lhe ensine o que sabe.
 
Começa uma tensão entre os dois, a tensão gera amizade e confiança, e Mike se dispõe a ensinar tudo ao jovem. Os dois passam a executar números no espetáculo, para satisfação do rotundo Monsieur Bouglione, dono do circo.

Nesse momento intromete-se entre os dois Lola (Gina Lollobrigida), carreirista e ambiciosa, que também é habilidosa no trapézio e quer transformar a dupla em trio.
 
É o cinemão de Hollywood, circulando com segurança pelos caminhos desbravados na década anterior. Carol Reed tem a vantagem de contar com atores com boa presença física na imagem, porque é uma história de atrações físicas, confrontos sensuais, e façanhas atléticas. A energia pessoal dos atores dá credibilidade a situações românticas bastante clichê.
 
Burt Lancaster (que revi há poucos meses em dois filmes de Luchino Visconti) faz lembrar neste espetáculo circense a descrição que dele faz David Thomson no Biographical Dictionary of Film, quando o ator (nascido em 1913) já tinha mais de 60 anos: “Lancaster continua a ser um atleta robusto, de sorriso penetrante, mão estendida, mas sempre dando a impressão de que pode nos esmagar os dedos ou nos produzir um choque elétrico”.
 
O melhor do filme é quando a câmera passeia pelo interior do ambiente circense, mostrando as rebarbas do espetáculo (pois tudo o mais acontece ao fundo dos dramas do trio principal): os números equestres, o encantador de cobras, os balés, os elefantes, os leões... Curiosamente, é um filme de circo sem palhaços.



A locação externa é o Cirque d’Hiver em Paris, aquela construção semi-arredondada que já serviu de sede a muitos grupos da história do espetáculo. As partes mais impressionantes são, é claro, os números de trapézio, uma conjugação impecável de efeitos. A música nesses momentos é geralmente Danúbio Azul, o que me fez lembrar do 2001 de Kubrick e matutar no que há de circense naquela longa sequência do acoplamento entre espaçonave e estação espacial: é quase um número de trapézio em que o “catcher” pega no ar o “flyer”.
 
A fotografia de Robert Krasker é excelente, inclusive pelo uso hábil da câmera vertical, seja de cima para baixo ou de baixo para cima. Os enquadramentos em Cinemascope, à distância, estabelecem toda a noção de espaço necessária para se ter suspense – já vi cenas de trapézio no cinema em que não existe suspense algum porque a fotografia toda torta e a montagem picotada não permitem o espectador compreender o que está acontecendo. O cinema, em casos específicos assim, precisa dar a idéia intuitiva de distância, movimento, velocidade. Sem isso não tem suspense em função de ação física.
 
E nesse aspecto, a montagem de Bert Bates é perfeita. E tem também a edição sonora. Após a pirueta aérea o “catcher” pega no ar o “flyer” e a gente ouve o som da batida das mãos se agarrando. Detalhe psicologicamente reconfortante, e dramaturgicamente esclarecedor.
 
Há detalhes que às vezes batem no ouvido da gente e dão o que pensar. O personagem de Lancaster é Mike Ribble, e seu grande sonho é o “triple” (talvez a palavra mais repetida nos diálogos); as duas palavras me trouxeram ao ouvido, o tempo todo, a sugestão subliminar de “cripple” (aleijado), pois é isso que ele se tornou após a queda.
 
É interessante, aliás, o modo como o personagem somatiza seus problemas. Quando está otimista, ele nem parece que tem uma perna defeituosa. Quando está abatido, não dá dois passos sem a bengala.
 
Uma das cenas mais bem concebidas do filme é justamente quando Tino está perplexo com a ausência de Mike e Lola. O público já deduz que os dois passaram o dia juntos. Monsieur Bouglione, impaciente, lhe diz: “Quer saber onde está Mike? É só seguir aquela velhinha que está levando a bengala dele.”  E de fato há alguns minutos uma velhinha de preto, toda corcovada, estava passando pra lá e pra cá diante da câmera. Tino vai atrás dela, e chega ao hotel onde Mike e Lola, apaixonados, passaram sua primeira noite de amor. (Tarde, na verdade.)
 
É um roteiro convencional, com pequenos momentos de sutileza.
 
É interessante como nossa memória guarda umas coisas, e outras não. Vi esse filme quando tinha oito ou dez anos, e só uma vez. Tinha uma lembrança vaga das cenas de trapézio, da queda, da mão que escorrega, da mão que larga. Tinha a memória (reforçada depois com outros exemplos, certamente) da diferença entre um salto mortal com rede e um salto sem rede. Mas eram lembranças certamente contaminadas pelos vários filmes de circo que vi ao longo da vida.
 
Há uma cena na parte inicial, quando Mike e Tino começam a se conhecer, em que depois de bate-bocas os dois se veem com simpatia e saem andando à noite, na rua parisiense quase deserta. E Tino planta uma bananeira; Mike se vê de repente conversando com dois pés à altura do seu rosto. Ele dá uma gargalhada, pendura a bengala no pé de Tino, e planta bananeira também; e assim os dois se afastam, caminhando sobre as mãos.
 
No filme todo, foi a única cena que reconheci instantaneamente, aquela reação imediata de “Eita, isso aqui eu me lembro”.  Coisa que menino não esquece.
 


 







quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

4675) "Bravo Mundo Novo" (17.2.2021)




 A obra de George Orwell entrou recentemente em domínio público, e está havendo uma enxurrada de reedições de seus livros sempre necessários, sempre atuais.
 
Um caso interessante se deu com Animal Farm (1945), que diferentes editoras têm publicado no Brasil como A Revolução dos Bichos (nas traduções mais antigas) e como A Fazenda dos Animais (na versão mais recente, de Denise Bottmann).
 
Circula uma comprida polêmica, na imprensa e nas redes sociais, a respeito dessas duas opções de tradução. O que nem sempre é bom, porque tem gente que aproveita uma simples discussão de título para sair chamando os outros de idiotas e analfabetos. Mas sempre é bom, porque ao debater toda a rede de significados que se espalha em torno das palavras e das frases que usamos deixamos de obedecer cegamente a elas, e começamos a conversar com elas, e até a comandá-las, lucidamente.

 
O exemplo de Orwell me trouxe à mente o de uma obra que na minha lembrança está sempre pertinho da obra dele, e que é o Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley, cujo título faz uma citação de A Tempestade, de Shakespeare:
 
“Ó, maravilha! Que criaturas adoráveis estão aqui! Como é belo o gênero humano! Ó admirável mundo novo que possui gente assim!”
(William Shakespeare, A Tempestade, Ato V)
 
Huxley era um grande escritor também, e estava muito em voga na época de minha adolescência, via Editora Civilização Brasileira. Além do Admirável Mundo Novo, me marcaram muito O Gênio e a Deusa, O Macaco e a Essência e principalmente o díptico As Portas da Percepção / O Céu e o Inferno, livro que me fascinou desde pequeno por causa da ilustração da capa, que acabou me inspirando uma das minhas pragas favoritas quando estou com raiva de alguém: “Quero que ele vá pro inferno de cabeça pra baixo!”.



 
Huxley (nascido em 1894) foi professor de Orwell (nascido em 1903) a certa altura da vida, e os dois se respeitavam. Quando 1984 fez sucesso, o autor mandou enviar ao ex-mestre uma cópia do livro, a que Huxley respondeu com uma carta elogiosa e cordial. Na mesma carta, contudo, ele reafirmava (o ano era 1949) um princípio já declarado em seu próprio livro: que as ditaduras do futuro seriam menos baseadas na repressão policial e na tortura, e mais dependentes da propaganda, das drogas e de outras formas de controle. Ou seja, é mais prático, ao invés de oprimir uma população infeliz, dar a essa população uma ilusão qualquer de felicidade, e fazer com que ela colabore com o regime voluntariamente.
 
Os dois sistemas coexistem no mundo de hoje, onde podemos ver as ditaduras do chicote e as ditaduras do chiclete.
 
Ninguém é dono da verdade; cada um de nós se debate sozinho num nevoeiro, e o máximo que consegue é gritar de longe as experiências que está tendo e escutar de volta os gritos de quem está próximo. Nada mais.
 
Huxley, na carta a Orwell, pensava nas formas de controle mental (que ele considerava uma técnica superior à da “botina-no-rosto”), e dizia:
 
Na próxima geração, acredito que os governantes mundiais irão descobrir que o condicionamento ainda na infância e a narco-hipnose [combinação do uso de drogas e hipnose] são mais eficazes, como instrumento de exercício do poder, do que cassetetes e prisões, e que a cobiça pelo poder pode ser plenamente satisfeita ao se fazer com que as pessoas amem a sua escravidão; é melhor do que chicoteá-las e dar-lhes pontapés para que obedeçam. (trad. BT)




Acho que nesse ponto Huxley foi mais longe que Orwell, embora o método brutal descrito por este tenha sido dolorosamente realista. E o fato é que do ponto de vista da imaginação e do talento literário as duas obras se equivalem, e provavelmente será assim por muito tempo.
 
Voltando à questão da tradução dos títulos, fiquei pensando sobre a forma como algumas traduções de títulos se tornam clássicas, quase obrigatórias, e chegam até a impedir que alguém tente uma tradução alternativa. 

Não me refiro a traduções literais (The Time Machine será sempre A Máquina do Tempo, acho, e The Glass Key será sempre A Chave de Vidro). Mas às fórmulas que, no idioma de chegada, envolvem uma certa maneira criativa de expressão, que acaba se impondo, e eu diria até acabam intimidando um tradutor mais cauteloso.
 
Penso num dos mais célebres entre nós, O Morro dos Ventos Uivantes, que é o nome quase obrigatório de todas as traduções do Wuthering Heights (1847) de Emily Brontë, com variações para o singular, em algumas edições.


 
A expressão foi formulada (no singular) num poema de Tasso da Silveira (1895-1968), e já aparece na primeira tradução do livro entre nós, que Denise Bottmann em seu precioso saite Não Gosto de Plágio, identifica como sendo a de Oscar Mendes para a Ed. Globo de Porto Alegre, em 1938.
 
Não sei se alguém (nem mesmo Denise Bottmann!) teria coragem hoje de propor uma tradução diferente para esse título. O Morro dos Ventos Uivantes corresponde com bastante fidelidade ao original, tem uma cadência sonora impecável, e, mais que tudo, já se entranhou no inconsciente coletivo de nossa memória escrita. Imagino a hesitação de um leitor a quem aconselharam esse romance e ele recebe, no balcão da livraria, um belo volume de aparência gótica mas com o título Cumes Tempestuosos.
 
Não é totalmente absurdo, porque Cumbres Borrascosas é a versão em espanhol da mesma obra, embora a de Tasso da Silveira tenha se aproximado um pouco mais da versão em francês, que é tradicionalmente Les Hauts de Hurle-Vent, usado na tradução de Frédéric Delebecque em 1925 (não sei se tem alguma anterior a esta). O Alto do Uiva-Vento. Alguém se habilita? Quem já morou no Alto Branco não irá estranhar muito. 
 
“Antiguidade é posto,” já diziam os antigos em sua sabedoria, forma de esperteza. As versões mais antigas dos títulos literários acabam se associando à obra, mesmo quando não traduzem de forma precisa o título dado pelo autor, como foi o caso do livro de Orwell citado no início. 

Nos EUA, o clássico de Marcel Proust À La Recherche du Temps Perdu tem duas traduções vigentes: In Search of Lost Time, mais próxima do original, e Remembrance of Things Past, que para muitos leitores de lá ficou indissoluvelmente ligado à experiência da leitura e da lembrança.
 
Todo este cerca-lourenço até aqui é para chegar no título do livro de Huxley, que é Brave New World e no Brasil tornou-se, com toda razão, Admirável Mundo Novo. Em algum ponto do meu percurso eu já quis checar essa correspondência, para saber se uma eventual tradução Bravo Mundo Novo seria correta – porque sempre me acostumei a ver “bravo” como mero sinônimo de “corajoso”, ou, em sua versão paraibana “brabo”, sinônimo de “enraivecido”.
 
Mas de fato, o Dicionário Houaiss assinala que bravo, em sua acepção 11, corresponde a “digno de admiração; notável”.
 
Caso alguém optasse por essa maneira de traduzir, estaria errado? Certo que não. Mas logo a Falange Lacradora se ergueria empunhando chuços e trinchetes, bradando que o tradutor foi preguiçoso e usou um "falso cognato". Estariam errados? Totalmente, não, porque em última análise estariam falando em nome de uma tradução que é consagrada pelo tempo e pela memória, além de ser um octossílabo perfeito e (penso eu) uma expressão mais clara e eloquente do que a nova forma proposta.
 

(Aldous Huxley)
 
 
 
 
 
 
 
 





segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

4674) "Imbiribeira" (14.2.2021)




Nem todo mundo que mora na mesma cidade vive na mesma cidade. “Viver em” é colecionar ambientes, deslocar-se com regularidade de A para B, para C, para D...  Numa cidade, principalmente uma cidade grande, tem gente que se desloca de M para N, de N para O, de O para P... A cidade é a mesma, e as pessoas criam seus mundos paralelos, e se cruzam nas ruas, enquanto se encaminham para os segmentos do universo de cada um.
 
Como no romance A Cidade e a Cidade de China Miéville, onde duas cidades rivais ocupam as mesmas ruas e bairros, e seus habitantes são proibidos de reconhecer a presença uns dos outros.
 
O livro de crônicas de Toinho Castro, Imbiribeira (São Paulo, Ed. Areia Dourada, 2020) recupera a memória pessoal de um bairro do Recife que não me lembro de ter visto cantado em prosa e verso como acontece com Boa Viagem ou Casa Forte.
 
É aquele Recife rigorosamente suburbano e invisível, mero espaço de passagem entre um lugar importante e outro, entre o aeroporto e o manguezal.
 
São aqueles bairros populares que toda cidade tem, e que não entram para a História porque não têm sítios históricos, o que os mergulha num círculo vicioso de anonimato. O que têm? Para mim, que de vez em quando passo de carro voltando do aeroporto, a Imbiribeira tem aqueles enormes conjuntos habitacionais de cinco ou seis andares, com janelas e terraços protegidos por grades, e nas paredes as manchas das infiltrações, das chuvas, das pichações. Varais de roupas estendidas, meninos brincando, mulheres atarefadas, homens entrando e saindo. Poucos espaços de lazer. Muitas antenas de televisão.
 
São aqueles bairros emendados uns nos outros, que me evocam endereços antigos de tios e primos da minha infância: Ibura, Ipsep, Imbiribeira... Como o Fundão ou a Água Fria onde morava minha avó Clotilde, ou o Hipódromo de minha tia Petró.
 
Essa paisagem se espalha pelo Brasil inteiro como um papel-de-parede repetitivo, e não há quem a cante, porque suas belezas são poucas e estão todas na memória afetiva de quem ali viveu.

 
Toinho Castro, editor (com Aderaldo Luciano) da revista eletrônica Kuruma’tá, e meu parceiro em outros projetos (como o Lendário Livro¸2018), juntou suas memórias num livro que mistura crônicas e poemas com esse tema em comum. A infância passada num bairro pobre, sem lazer, sem paisagem, sem alternativas. E sem segurança, porque ali é região tomada ao mar:
 
E lembrando disso penso no quanto estávamos ao sabor das marés, por causa da conjunção das chuvas, com a lua cheia e a preamar, era fatal nossa rua transbordar e a água ameaçar entrar em nosso apartamento térreo; a água barrenta, escura, da rua sem calçamento misturada às águas negras do canal logo adiante, subindo, atraídas pela força da lua acima de nós, para além das nuvens carregadas. E eu ali no mar límpido, sabia que ele era parte do sistema de coisas que deixava minha mãe aperreada. Tudo era uma água só, entranhada no subsolo, por baixo do calçamento, minando na rua Pampulha. A água, a grande narradora da cidade onde vivíamos.
(“O cheiro dos sargaços”, p. 36-37)
 
É um espaço onde a civilização é precária, e de vez em quando uma criança sente aquele arrepio atávico no inconsciente coletivo, sabendo que a Humanidade mal chegou e talvez já tenha que ir embora:
 
Assistíamos TV
e o caranguejo
atravessou a sala,
deixando em todos a sensação
de que estávamos errados,
que ocupávamos
um espaço indevido,
que éramos bandidos,
ladrões, saqueadores de mundo.
(“Poema V”, p. 34)
 
A transição entre crônicas e poemas é meramente formal, porque o tom emotivo-distanciado é o mesmo, a dicção literária é a mesma. Em textos com esse perfil, com esse tipo de voz, a distinção entre a prosa e o verso ocorre apenas (acho eu) porque o livro não é composto de uma assentada. Cada texto foi escrito em seu próprio momento. O momento pedia, num caso, um jorro contínuo de palavras e imagens, e em outro momento pedia um dizer mais compassado, mais medido. Mal comparando, escrever prosa é como andar numa rua, e escrever poesia é como subir (ou descer) uma escada. São dois tipos de deslocamento no tempo e no espaço.
 
Tempo e espaço, aliás, são imagens recorrentes nas lembranças de quem lê ficção científica, como é o caso, e busca nessas imagens fantásticas uma porta de fuga para uma realidade encalhada e sem luz.
 
Certa noite, num bar com uma amiga, Lulu, olhamos para a rua à nossa frente e vimos, num sobrado velho, como pareciam todos os sobrados, uma placa: Clube dos Mágicos. Rimos e nos espantamos... era tarde da noite e ficamos imaginando o que poderia estar acontecendo ali dentro, a portas trancadas, janelas cerradas. A reunião dos mágicos sombrios da cidade, aquela cidade assombrada onde éramos fantasmas.
                Teve essa lua cheia, nascendo no horizonte escuro do mar, do Atlântico. Parecia uma explosão nuclear, como uma bolha alaranjada e eu quis que fosse uma explosão nuclear rompendo o tédio daqueles dias, mas era a lua.
(“Recife”, p. 52)
 
Assim como uma parte significativa do rock inglês ou norte-americano cresceu e proliferou no meio dos bairros operários, massacrados, cinzentos e sem vida, onde jovens sem rumo procuravam canalizar energia, criatividade e frustrações, as grandes cidades daqui fazem surgir essas miúdas religiões de uma dúzia de crentes, reunidos em torno de alguma coisa que produz em todos o mesmo efeito, e que só por isso parece humanizá-los.



Tinha na rua Pampulha
um quarto onde rolava um som,
e eu ficava junto ao toca-discos,
a fonte daquele som,
como se aquilo fosse uma fogueira,
como se fosse as estrelas.
(“Poema XIX”, p. 85)
 
Um Recife desaparecido, por definitivamente irrelevante, para além das pequenas vidas que ali se moviam e dali desapareceram. Meus amigos e eu nos reuníamos às vezes em volta de um bueiro na encruzilhada da rua Pampulha com a rua Itamaracá, para falar sobre coisas  que jamais interessariam a mais ninguém; nossas vidas pequenas e sem esperança na escuridão reinante à nossa volta.
(“Meu Recife é outro”, p. 18)


 
(Rua Pampulha, esquina com Itamaracá)
 
Crônicas e poemas vão passeando assim por esse universo invisível das grandes cidades, o universo onde não ocorre nada que não seja a rotina esmagadora do trabalho, do estudo e da sobrevivência sempre ameaçada. E aqui ou ali brotam as pequenas epifanias de garotos e garotas para quem o dia em que a enchente devastou metade da cidade foi um dia feliz, porque naquele dia, por acaso, eles tinham visto dois filmes num dia só.
 
Sem falar nos encontros (sempre preciosos, para os escravos da rotina) com o estranho, o bizarro, o inesperado: a cheia invadido a padaria e fazendo escorrer rua afora uma frota inteira de pães recém-saídos do forno, ou o rio Capibaribe que certa noite começa a produzir, sabe-se lá de onde, envelopes pardos que boiam na água, “como se uma fábrica de envelopes tivesse explodido ou um caminhão carregado de envelopes pardos tivesse jogado sua carga no rio para fugir da polícia dos envelopes!”
 
Manuel Bandeira foi outro que ao evocar seu Recife evocava as coisas pequenas que tinham importância para ele, e não as coisas grandes que têm importância para quem vê a cidade lá de fora. Abespinhava-se quando constatava as modernizações urbanísticas, as invasões do progresso, um progresso de destruição lucrativa do passado: “Diabo leve quem pôs bonita a minha terra!”.
 
É o mesmo tom de Toinho, com a percepção de quem viveu do lado do mangue, dos “caranguejos com cérebro”, da umidade ao mesmo tempo fertilizadora e corrosiva. A cidade vai sendo invadida pelo conceito puritano e financista de “limpeza”: “Impressionante como a idéia de limpeza pode ser poderosa, colonizadora e contaminante.”  A utopia da limpeza vira pretexto suficiente para todo tipo de extermínio, como se o passado fosse um tumor que nos constrange diante de um mundo que diz ser mais sadio, “o mundo enquanto porcelanato”.
 
Hoje os prédios nem têm mais apartamentos no andar térreo. No térreo ficam as portarias, e acima das portarias, dois ou três andares de garagens, e só então as casas, evitando o mundo. Todos na torcida por um mundo límpido, branco, imaculado, revestido, recoberto, sem compreender que o mundo é detrito, resto de uma grande e primordial explosão se dissipando universo afora. O universo é uma onda de choque que desarruma. A mecânica celeste é ilusória.
(“Sonho, lama e caos”, p. 33)
 
São forças históricas e econômicas em choque, ou melhor, numa disputa de atrações e repulsões onde milhões de pessoas são apenas partículas impotentes sendo empurradas hoje numa direção, puxadas amanhã para a direção oposta, como as marés comandadas pela lua. Só nos resta navegar, porque não podemos dizer ao mar o que ele deve fazer.
 
 
 
 







quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

4673) Serendipismo ou serendipidade (11.2.2021)




Para quem ainda não conhece a origem dessa palavra, ela se refere ao conto “Os três príncipes de Serendip” de Horace Walpole, de 1754. O conto se refere à lenda de três príncipes que tinham muita sorte e a toda hora estavam encontrando, de maneira absolutamente casual, coisas das quais tinham grande necessidade.
 
A palavra em inglês para essa tendência afortunada é “serendipity”, que algumas pessoas traduzem como serendipismo, serendipidade, serendiptismo ou serendipitia. É uma palavra ótima, o problema dela é ser pouco sonora.
 
A base do serendipismo é a coincidência, ou seja, a convergência de duas coisas que não têm nada a ver uma com a outra. Você está precisando saber, por exemplo, o nome do autor do conto “Os três príncipes de Serendip”. Está numa casa de praia, sem biblioteca, sem internet, sem telefone. Abre ao acaso uma revista velha, numa pilha enorme. Lá no meio acha uma foto: “Esta é a mansão inglesa onde moraram figuras ilustres como Horace Walpole, autor do conto Os três príncipes de Serendip...”
 
Parece inventado? Comigo acontece com frequência. Vou dar um exemplo recente, tão preciso que anotei.
 
Ano passado, eu estava lendo (pela primeira vez) um conto de Isak Dinesen, no livro Last Tales (Vintage, New York, 1991): “The Cardinal’s First Tale”. Nele, um cardeal e uma dama aristocrata estão conversando sobre a arte de contar histórias, e a certa altura ele exemplifica:
 
(...) A história tem uma heroína; e no momento em que ela ergue sua lamparina para admirar a beleza do seu amante adormecido, isso faz com que uma gota de óleo quente caia no ombro dele.
(pag. 25, trad. BT)
 
Nada mais é dito sobre esta cena, mas assim que a li eu a achei familiar. Um homem jovem adormecido, uma mulher entra com uma daquelas lamparinas de óleo, para observá-lo sem ser vista, mas a gota de óleo acorda o rapaz. É uma história conhecida (e é nesse contexto que o personagem a usa como exemplo), mas, de onde?
 
Imaginei (talvez pela presença da lâmpada a óleo) que fosse algo das Mil e Uma Noites, e deixei pra lá.
 
No fim da tarde (no mesmíssimo dia), pego ao acaso a revista Locus (dezembro de 2007) e estou lendo uma entrevista de Elizabeth Hand, autora de quem já li alguns contos excelentes. E na página 7 da revista ela diz, sobre um livro que acabara de publicar na época (e que eu não conheço: Generation Loss):
 
No início, eu tinha imaginado em escrever uma variante da história de Eros e Psiquê. Psiquê se apaixona por Eros, mas quando a gota de óleo quente pinga sobre ele, ela foge, e volta para junto da mãe dele, Afrodite, a qual lhe impõe uma tarefa que ela terá de cumprir para ter seu amado de volta.
(trad. BT)
 
Ou seja, poucas horas depois de surgir a dúvida, veio a resposta, de maneira absolutamente aleatória. (Quando peguei a revista, eu a puxei do meio de um monte de outras, para ter o que ler depois do jantar. Não tinha idéia do conteúdo da entrevista.)
 
Num artigo (“How To Be Lucky”) na revista online Psyche, Christian Busch argumenta que o serendipismo não é um simples esbarrão casual entre duas coisas parecidas. Há uma estrutura.
 
https://psyche.co/guides/how-to-open-up-to-serendipity-and-create-your-own-luck
 
Ele diz que ao contrário do que costumamos pensar o imprevisto não é tão imprevisto assim, nem o inesperado tão inesperado. Temos mecanismos permanentes de atenção contra qualquer surpresa que possa nos ferir ou prejudicar: são mecanismos de defesa. Quando atravessamos uma rua, muitas vezes não olhamos apenas na direção de onde vêm os carros, mas também na direção da contra-mão... porque nunca se sabe.
 
Busch acha que existe um mecanismo oposto, um mecanismo de atenção para “o inesperado positivo”, que nem todo mundo desenvolve.
 
Minha pesquisa sugere que o serendipismo tem três características essenciais. Ele começa com um gatilho que o deflagra – o momento em que você encontra algo inusitado ou imprevisto. Depois você precisa ligar os pontos – ou seja, observar esse gatilho e fazer a conexão entre ele e algo aparentemente não relacionado, percebendo assim o valor potencial daquele evento aleatório (às vezes este é referido como “o momento Eureka”). Finalmente, são necessárias sagacidade e tenacidade para avançar nessa direção e produzir o resultado positivo inesperado. O encontro casual de uma informação é um mero evento, mas o serendipismo é um processo multifacetado.
 
A dica de Busch, bastante óbvia aliás, é de que não basta estar atento a uma bicicleta na contramão (como eu vivo no Rio de Janeiro, onde já escapei dezenas de vezes de ser atropelado): é preciso estar atento às surpresas positivas, às informações randômicas que o mundo faz chover sobre nós.
 
Temos (diria eu) uma mente-observadora passiva, e uma mente-observadora ativa. A primeira apenas recebe as informações sensoriais, com um mínimo de esforço; é o chamado “piloto automático”. A segunda ataca as informações, cai sobre elas concentradamente, disposta a arrancar o que elas tenham para fornecer.
 
A mente passiva é aquela com que observamos o mundo da janela de um ônibus, cruzando a cidade, uma atenção dispersa, desfocada, desligada. Para alguma coisa nos “acordar” precisa ser um evento fora do comum: uma batida de carro, uma briga na rua, uma pessoa conhecida que avistamos na calçada.
 
A mente ativa é a que botamos para funcionar quando estamos ao volante de um carro, num bairro desconhecido, procurando um endereço.
 
A maioria das pessoas lê livros com a mente passiva, meramente decodificando aquelas palavras em língua portuguesa. (Eu leio assim, com frequência.) Não encara as frases. Não questiona. Não as vira de um lado para o outro. Não interrompe a leitura por meio minuto para pensar naquilo fora do contexto do livro.
 
Alguém há de se queixar que ler assim é muito lento, muito trabalhoso. Ler pensando cansa. É melhor ler sem pensar, ler apenas decifrando o texto e deixando que ele ecoe na mente, como se fosse a voz de uma professora recitando uma lenga-lenga qualquer enquanto a verdadeira atenção da gente está lá fora, no que a gente vai fazer quando conseguir largar aquele livro.
 
Se for para ler assim, melhor largar o livro. A pessoa pode até correr os olhos por algumas verdades profundas, ou pelo segredo fundamental do universo, e não tem serendipismo que a salve, porque ela vê mas não é capaz de perceber o que está vendo.
 
 





segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

4672) Eu me lembro – 21 (futebol) (8.2.2021)



(Na arquibancada coberta do PV, no tarol, com José Umbelino Brasil, Arly Arnaud e outros sofredores)

1
Eu me lembro que no Estádio Presidente Vargas, o famoso “campo do Treze”, havia uma enorme placa de Cinzano por trás do gol que dá para o Quartel dos Bombeiros, à direita de quem está sentado na arquibancada coberta, onde ficam as cadeiras cativas. (O outro gol, que tem uma arquibancada por trás, dá para os portões de entrada do campo, na rua Teixeira de Freitas.) Era uma placa enorme que se elevava a uns dez metros de altura. De vez em quando, algum atacante “isolava” a bola ao tentar o gol e a bola ia direto na placa, provocando um grito unânime de euforia na torcida, mesmo quando era um jogador trezeano o autor de façanha-de-incompetência. Me lembro que o lateral-direito Braga, um negão alto e forte de chute potentíssimo, que veio do Campinense para o Galo por volta de 1964, uma vez cobrou uma falta direto na placa, que quase veio abaixo.
 
2
O jogo de pelada, quando éramos garotos, era uma das mais curiosas experiências formadoras do conceito de democracia. Pelada não tem juiz. O jogo é apitado por consenso e discussão. Tudo é motivo para divergências aos gritos. A bola saiu, não saiu, a bola entrou, não entrou, esse esbarrão foi falta, não foi, foi bola na mão, foi mão na bola... Cada decisão da “arbitragem” é tomada dessa forma, e o mais interessante é que, como tudo é discutido, a maior parte das coisas acaba sendo aceita sem discussão, a não ser quando existe uma dúvida real e ambas as partes se julgam prejudicadas. Um conceito importante para dirimir dúvidas era a de que quem desistisse primeiro da polêmica dava o impasse por perdido; considerava-se que quem fosse embora primeiro tinha “corrido de campo” e era dado como perdedor. Muitas vezes brigava-se por um gol (“foi gol – não foi”), e o jogo não prosseguia porque nenhum dos times desistia. O jogo parava, todo mundo sentava no chão, o sol se punha, a discussão cessava, depois de minutos de silêncio alguém dizia: “-- E então, aceita?” e vinha a resposta: “-- De jeito nenhum!”. Mais de uma vez, já em plena escuridão, as mães da gente, impacientes com a demora dos que deviam tomar banho e jantar, desciam furiosas até a “graminha” e tangiam os litigantes para casa embaixo de impropérios, e mesmo assim a discussão continuava: “-- Quem saiu de campo primeiro foram vocês!... – Não, foram vocês!...”  Tem jogo que está pendurado até hoje.
 
3
Já gastei muito dinheiro com material de torcedor, comprando “peles” (de plástico) para os taróis e as caixas da charanga “Esporões do Galo”, nos idos de 1974-75-76. Os instrumentos eram alugados, ou melhor, surrupiados da banda marcial de algum colégio de bairro onde a mãe de algum dos integrantes ensinava ou trabalhava. No dia do jogo alguém ia lá de carro, abria-se a sala dos instrumentos, enchia-se o carro, a bateria era levada direta para o Estádio, ou para o bar do esquente. Depois do jogo, revertia-se o trajeto e os instrumentos eram devolvidos. Nosso único compromisso era substituir as peles que nosso furor alvinegro acabava rasgando, de tantos rufos. Gastei muito com bandeira também, e a bandeira que mais gostei foi desenhada por mim mesmo. Era totalmente branca, com a palavra GALO em grandes letras pretas, e foi costurada por Lídia, minha sogra. O G e o O foram riscados a lápis de grafite usando como modelo justamente a pele de um tarol, que forneceu o círculo interno da letra, cujo traço tinha uns cinco dedos de espessura; as outras letras foram traçadas a lápis e régua, na mesma proporção.
 
4
Morei alguns anos na Rua Padre Ibiapina, numa casa que era da família de minha mãe. Moramos ali mais de uma vez; meu irmão Pedro nasceu nessa casa, em 1954, e em 1967 estávamos lá de novo, na época em que entrei para o Cineclube de Campina Grande. Nossa casa ficava em frente ao engarrafamento da cachaça Paturí, e um pouco mais acima, cruzando a Rua João Suassuna, ficavam os armazéns de açúcar de Artur Freire. Em toda aquela vizinhança, dia e noite, perpassava um cheiro doce-azedo de cana de açúcar, um cheiro às vezes acre demais, às vezes enjoativo, mas que até hoje, quando sinto de passagem, me traz boas lembranças. O gerente da Paturí se chamava Dionísio, era torcedor do Campinense. E todo dia aparecia lá, para lavar o carro dele, o famoso Zé Pezinho, um lavador de carros humilde e torcedor do Treze. Bate-bocas intermináveis entre os dois! Eu me postava no terraço para assistir. Ganhasse quem ganhasse, é claro que a discussão rendia, e rendia muito, até porque Zé Pezinho era estourado e boquirroto, e Dionísio ficava se rindo, encostado na porta, provocando. Tempos depois Zé Pezinho faleceu, e minha mãe me disse: “Morreu sem um tostão, coitado, mas Dionísio tomou a frente e custeou o enterro dele, todo”.  Formas de amizade que o futebol conseguia criar.
 
5
Uma das camisas do Treze que eu mais gostava foi uma que herdei de Jakson Agra, “Son”, meu amigo que morreu em 1978 num acidente de carro. Ele nem gostava de futebol, mas por influência minha começou a se abalançar como torcedor do Treze. Convocou o irmão mais novo (eram três – Son, Marcos e Aroldo) para pintar o escudo do Treze numa camisa meramente alvinegra que ele achou na Casa Esporte, com listras verticais. Aroldo era torcedor do Campinense, mas uma coisa é irmão mais velho e outra coisa é irmão mais novo, e ele se aplicou na pintura do escudo à altura do peito, com o requinte de fazer um desenho contínuo, usando tinta preta onde a listra era branca, e tinta branca onde a listra era preta. Finda a pintura, seca a tinta, um raio de terror caiu sobre a casa: na concentração detalhista de pintar, o indigitado tinha pintado o escudo nas costas da camisa, e não na frente!  Única saída possível: deixar aquela pintura como estava, e pintar um novo escudo, seguindo os mesmos princípios, na parte da frente da camisa. Ficou tão massa que acabei ganhando Son no papo e trocando a camisa por alguma besteira, um LP de Chico Buarque ou um livro de Fernando Pessoa; e foi essa camisa trezeana que acompanhou meus périplos até quase os 40 anos de idade, quando eu a vestia antes de ir para o bar comemorar (com cariocas desavisados) os títulos alvinegros que o rádio me informava a distância.
 
6
Lembro de um jogo terrível, traumatizante, uma derrota do Treze para o Campinense quando eu tinha doze ou treze anos. Foi numa decisão de Torneio, no Estádio Presidente Vargas. Zero e zero no primeiro tempo. No segundo tempo, o Campinense fez 1x0 com um gol de Tonho Zeca, um chute a meia-altura da entrada da área, no gol que dava para os bombeiros (o da placa de Cinzano). Bola vai, bola vem, bola vem, bola vai, como dizia Zé Américo Segundo: o Treze empatou ainda na metade do segundo tempo, uma confusão na área (no gol da arquibancada, dos portões de entrada), bola bateu em todo mundo e acabou entrando, parece que a imprensa deu como gol de Géo. Jogo empatado. Aí... faltando pouco para terminar, falta contra o Galo, perto da área. Barreira formada. Araponga bate do jeito que sabia bater: uma folha-seca tipo Didi. Que entra no ângulo. Foi aquele famoso gol (“celebrado em prosa e verso”) em que a bola bateu na juntura dos planos da rede, e ficou três ou quatro segundos presa ali, antes de cair ao chão, dentro do gol. Carnaval rubro-negro, eu saí com o rabo entre as pernas, fumaçando de ódio. Quando cheguei na Praça do Trabalho, quem eu avisto? A caminhonete (repleta) de Frederico Mendes, nosso vizinho de rua, raposeiro de quatro costados, e quando a meninada me viu de longe ergueu-se num grito unânime de gozação. Mas mesmo a humilhação da derrota não me faria abrir mão daquela carona para a porta de casa; e lá fui eu. Quando subi para a carroceria, olhei para meus amigos (todos amigos da pelada, do jogo de botão, da série de TV, todos vergonhosamente rubro-negros) e estavam seríssimos, como se tivesse morrido alguém. Gozação zero. De noite, me contaram: que quando Fred parou o carro pra esperar por mim, abriu a porta e berrou pra trás: “Se mangarem dele eu dou uma surra em cada um!”  Grande Fred.