sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

4678) Minhas Canções: "Carrossel do Destino" (26.2.2021)




Minha parceria musical e teatral com Antonio Nóbrega tem uma longa história, que remonta ainda aos tempos de Campina Grande, de 1972 em diante, quando eu estava lendo pela primeira vez o Romance da Pedra do Reino e vi a primeira “aula espetáculo” de Ariano Suassuna, no Teatro Municipal de Campina Grande, fazendo a Aula Magna de abertura do ano letivo da Universidade Federal da Paraíba, Campus II.

Eu estava embebido de interesse pela música popular do Nordeste, e para isso somou-se o fato de que recentemente o Quinteto Armorial, criado no Recife por Ariano, tinha se transferido para Campina Grande, onde seus integrantes passaram a morar e dar aulas de música. Foi esse modo que virei amigo e companheiro de moderadas carraspanas no “Caldo de Peixe” com Antonio Madureira, Fernando Torres Barbosa, Fernando “Pintassilgo” Farias e Edilson Eulálio.

Pois é: um Quinteto com apenas quatro? Porque razões familiares e profissionais impediram Antonio Nóbrega, o quinto integrante, a ir morar em Campina. Ele continuou no Recife, e foi de todos o que conheci por último. E aquele com quem fiz a parceria mais sólida.

Não lembro quando conversamos a primeira vez, mas pode ter sido quando vi no Teatro Santa Isabel do Recife um dos seus primeiros espetáculos-solo. Ficamos amigos e voltamos a nos encontrar depois, quando já morava eu no Rio de Janeiro e ele em São Paulo.

Nosso trabalho conjunto começou no final de 1989, quando começamos a bolar um espetáculo reunindo Nóbrega, sua esposa e parceira-de-palco Rosane Almeida, e Raul Barretto. Eu ia a São Paulo quase todo mês e passava alguns dias com eles, discutindo piadas, gags visuais, pequenos entremezes, números musicais e de malabarismo...

Esse espetáculo nunca se concretizou; Raul Barretto foi trabalhar no grupo “Parlapatões”, e Nóbrega voltou-se para um espetáculo solo que se tornaria o Figural, um dos seus primeiros grandes sucessos.


(Brincante)

O nosso trabalho de criação prosseguiu, porém, e em 1992 estreou Brincante, onde fiz texto e diálogos, Romero de Andrade Lima fez cenários, figurinos e direção geral, Nóbrega e Rosane fizeram tudo. Em 1994 repetimos a dose com Segundas Estórias, já com uma equipe maior. E desde então, sempre fui chamado a colaborar nos espetáculos “tonhetânicos”, como os chamamos, com canções, pequenos esquetes ou números recitados.

Em 2002 Nóbrega lançou o CD Lunário Perpétuo onde está esta bela ciranda, “Carrossel do Destino”. Estávamos nos falando ao telefone com frequência, e eu recitei para ele umas estrofes que tinha composto. Ele me pediu uma cópia mas já foi compondo a música.

As formas fixas da poesia popular nordestina têm essa vantagem. Se o letrista diz “escrevi uns versos em décima”, basta ao músico “compor uma melodia em décima” e as duas se encaixam, mesmo que cada uma tenha sido feita sem conhecer a outra. São dez linhas, cada uma com dez sílabas de letra (=dez notas de música), com uma cadência específica. Como se diz na Paraíba, “não tem errada”.

Os versos foram escritos no final de 2001, e como outras coisas que fiz nesse período refletiam um pouco a tensão em que vivia o mundo após os atentados do 11 de setembro.

O mote da canção foi tirado, veja só, de Zé Limeira. Folheando o livro de Orlando Tejo sobre o Poeta do Absurdo, encontrei no final do Capítulo 10 esta décima de “despedida”:

Adeus, que já vou rodar

no carrossel do destino.

Eu vou tocar no meu sino

até o guarda apitar.

Barca feita de jucá.

Caminhão de melancia.

Cangaceiro, correria,

bacamarte e lazarina,

rege, regente e Regina,

adeus, até outro dia!

 

Do resto do verso não se aproveita nada, mas essas duas linhas iniciais se cravaram na minha memória. Dei uma leve ajeitada e produzi algumas estrofes. Nóbrega brincava sempre que a vantagem das minhas letras é que eu mandava sempre um caminhão de versos, de onde ele podia escolher os melhores para gravar.

Desde então, essa música tornou-se um número habitual nos shows dele, apareceu em ouros discos e DVDs.

Aqui, o link para uma versão oficial, com Nóbrega e sua banda:

https://www.youtube.com/watch?v=lOdnFlr-BPk&ab_channel=DIRETODOSMANGUEZAIS 

E abaixo a letra completa que fiz; os versos em negrito não foram gravados, mas eu canto às vezes quando a vez é minha.


CARROSSEL DO DESTINO

(Braulio Tavares – Antonio Nóbrega)

(negrito: versos não gravados)

(março 2002)

 

Deixo os versos que escrevi

as cantigas que cantei

cinco ou seis coisas que eu sei

e um milhão que eu esqueci.

Deixo este mundo daqui

selva com lei de cassino;

vou renascer num menino

num país além do mar...

Licença, que eu vou rodar

no carrossel do destino.


Romances e epopéias

me pedindo pra brotar

e eu tangendo devagar

a boiada das idéias.

Sempre em busca das colméias

onde brota o mel mais fino,

e um só verso, pequenino,

mas que mereça ficar...

Licença, que eu vou rodar

no carrossel do destino.

  

Enquanto eu puder sentir

o mundo com a minha mente

o tempo estará presente

passando sem resistir.

Na hora que eu for partir

para as nuvens do Divino,

que a viola seja o sino

tocando pra me guiar...

Licença, que eu vou rodar

no carrossel do destino.

 


Adeus, cadeia do mundo!

Morrer é a liberdade.

Deixo gotas de saudade

cair nesse mar profundo.

Deixo tudo num segundo,

instantâneo, pequenino:

o tempo que um cristal fino

leva para se quebrar...

Licença, que eu vou rodar

no carrossel do destino.

 

Não sou profeta nem louco

mas vejo o que ninguém vê

creio no que ninguém crê

pago e não espero o troco.

O que eu sei é muito pouco

mas o pouco que eu ensino

aprendi desde menino

sem ninguém pra atrapalhar...

Licença, que eu vou rodar

no carrossel do destino.

 

Adeus, carcaça do mundo,

vou procurar vida nova.

Faço a conta e tiro a prova

decifro o x num segundo.

Eu não sou Pedro II

que foi rei mas não menino;

sou barro de Vitalino

um dia serei luar...

Licença, que eu vou rodar

no carrossel do destino.

 

Quero deixar de ser eu

porque ser eu é ser muitos;

eu sou tantos outros juntos

que nenhum prevaleceu.

Eu tenho um lado judeu

tenho um lado palestino;

um lado novaiorquino

e outro de Kandahar...

Licença, que eu vou rodar

no carrossel do destino.

 


 








Um comentário:

Igor Gregório disse...

Linda história, magníficos versos!