segunda-feira, 30 de maio de 2016

4120) O mágico Murilo Rubião (30.5.2016)





“Por muito tempo se prolongou em mim o desequilíbrio entre o mundo exterior e os meus olhos, que não se acomodavam ao colorido das paisagens estendidas na minha frente. (“O Pirotécnico Zacarias”, em O Pirotécnico Zacarias, Ed. Ática, 1986.)

Na próxima quarta-feira, dia 1 de junho, completam-se 100 anos do nascimento do grande Murilo Rubião (1916-1991). Vivo comendo mosca com essa história de datas comemorativas, e confesso que só me liguei nesta graças a um artigo-homenagem de Humberto Werneck no Estado de São Paulo no dia 24 passado (aqui: http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,o-eterno-reescrevedor,10000052999). (Macaco velho, Werneck publicou sua homenagem uma semana antes da data, ajudando com isso a pautar o teclado de focas desligados como eu.)

Em algumas décadas de pesquisa sobre literatura fantástica no Brasil, me acostumei a muitos clichês. Um deles é o de quando alguém perguntar “quem são os principais autores de literatura fantástica no Brasil” responder “José J. Veiga e Murilo Rubião”. Quando houve o chamado boom do Realismo Mágico latino-americano nos anos 1970, começou uma procura febril pelo similar nacional. Entre os autores publicados pelas editoras de prestígio, e com existência reconhecida junto aos críticos de prestígio, só havia estes dois. Viraram parâmetro, marco geodésico. (Havia outros, claro – mas aí já é outra história.)

“Sou um sujeito que acredita no que está além da rotina. Nunca me espanto com o sobrenatural, com o mágico. E isso tudo aliado a uma sedução profunda pelo sonho, pela atmosfera onírica das coisas. Quem não acredita no mistério não faz literatura fantástica.” (entrevista em O Pirotécnico Zacarias, Ed. Ática, 1986)

Murilo teve algumas ocupações passageiras mas basicamente foi funcionário público a vida toda. Pertencia a uma época e uma classe social em que tornar-se funcionário público é algo tão natural quanto deixar crescer um bigode. Seus contos foram criados à sombra desta nobre ocupação, e o adjetivo não é irônico. Quando era Diretor de Publicações e Divulgação da Imprensa Oficial, ele foi o fundador, em 1966, do Suplemento Literário Minas Gerais, um dos melhores que já houve em nosso país (e que continua sendo editado, pelo que sei), responsável por um imenso avanço da prosa, da poesia e da ilustração mineira.

Os contos iam sendo criados devagarinho, nas possíveis horas vagas. Murilo produziu pouco. Suas coletâneas de contos misturam-se umas às outras, com os mesmos contos sendo repetidos (às vezes em versões modificadas, sem que se saiba ao certo qual a mais recente, ou a definitiva). Diz Humberto Werneck:

Murilo menos escreveu do que reescreveu. Quem mais levaria 26 anos ruminando as poucas páginas de “O Convidado”? O verbo era “murilar”, dizia eu da obsessão desse burilador impenitente. Em 75 anos de vida, publicou 51 histórias, das quais descartou 18. Toda a sua obra consiste, pois, em 33 contos, magro volume no entanto capaz de parar de pé com mais aprumo do que muita obra caudalosa. (Estado de São Paulo, 24.5.2016)

Nunca foi um grande divulgador de si próprio. Seu primeiro livro passou quase em branco: O Ex-Mágico, publicado em 1947 (por influência de Marques Rebelo) pela Editora Universal, que entrou assim para a História como lançadora de pelo menos dois marcos da literatura brasileira. (O outro tinha sido um ano antes: Sagarana, de Guimarães Rosa). Seu sucesso popular, que o transformou num nome obrigatório em antologias, vestibulares e verbetes, veio apenas em 1974, quando Jiro Takahashi lançou pela Editora Ática O Pirotécnico Zacarias, com capa e ilustrações de Elifas Andreato, e que não demorou a bater os 100 mil exemplares vendidos.

O pessoal compara Murilo Rubião a Kafka, mas ele vai bem além disso. Há contos que têm sem dúvida o que Borges chamava “a idiossincrasia de Kafka” (a sujeição a tarefas infinitas e inexplicáveis), que nos faz ver por toda parte precursores e seguidores do escritor tcheco. Rubião é kafkeano em contos como “O Edifício”, onde descreve um prédio gigantesco, administrado por uma Fundação misteriosa, do qual se dizia que mergulharia no caos quando ultrapassasse o octingentésimo andar. Mas no mesmo conto o segmento “O Baile”, que descreve as comemorações violentas dessa data, me remeteu de imediato ao futurismo brutalista de J. G. Ballard em High Rise (1975), sobre um condomínio da classe alta londrina que reverte à barbárie.

O conto “Os Dragões” mantém uma ambiguidade constante, pois os dragões que aparecem de repente numa cidade (num efeito narrativo semelhante ao de alguns romances de José J. Veiga) nunca são fisicamente descritos, e às vezes são tratados na história como animais (“serviu de pretexto uma sugestão do aproveitamento dos dragões na tração de veículos”), ora como jovens rebeldes (“desastradamente simpático e malicioso, alvoroçava-se todo à presença de saias. Por causa delas, e principalmente por uma vagabundagem inata, fugia às aulas”), ora como índios semi-aculturados (“tinham contraído moléstias desconhecidas e, em consequência, diversos vieram a falecer... fugiam à noite do casarão e iam se embriagar no botequim... Para satisfazerem o vício, viram-se forçados a recorrer a pequenos furtos”).

O autor tinha o hábito de afixar pequenas citações da Bíblia como epígrafes aos seus contos; a presença dessas citações parece revestir de um certo verniz eclesiástico sua visão do mundo, mas se lermos os contos e ignorarmos as epígrafes o absurdo sem centro avulta em cada um deles. Terá o mistério do mundo uma resposta espiritual, ou não passa de um granizo de estilhaços sem sentido, sem Idéia que os unifique e resolva? Murilo dizia:

“Jamais consegui me livrar do problema da eternidade, chegando mesmo, na infância, a ser religioso e um tanto místico. O ateísmo, mais tarde substituído pelo agnosticismo, provocou em mim uma ruptura violenta.” (entrevista em O Pirotécnico Zacarias, Ed. Ática, 1986)

Alguns dos seus melhores contos produzem a sensação do estranho ao descrever algum tipo de processo fantástico fora de controle, aleatório, imprevisível. São assim as metamorfoses de “Teleco, o coelhinho”, criaturinha falante e cheia de vontades capaz de virar uma pulga, um bode, um porco do mato ou um canguru chamado Antonio Barbosa. São assim as mágicas surpreendentes do seu conto talvez mais emblemático, “O ex-mágico da Taberna Minhota”, cujo protagonista tira dos lugares mais inesperados os objetos ou seres mais surpreendentes.

“A platéia, em geral, me recebia com frieza, talvez por não me exibir de casaca e cartola. Mas quando, sem querer, começava a extrair do chapéu coelhos, cobras, lagartos, os assistentes vibravam. Sobretudo no último número em que eu fazia surgir, por entre os dedos, um jacaré. Em seguida, comprimindo o animal pelas extremidades, transformava-o numa sanfona. E encerrava o espetáculo tocando o Hino Nacional da Cochinchina. (em O Pirotécnico Zacarias, Ed. Ática, 1986)

Atribui-se a Picasso a frase “on ne cherche pas, on trouve” (“a gente não procura; a gente acha”). O mágico de Rubião, ao fazer pequenos gestos casuais, achava em si mesmo prodígios, sustos, maravilhas. Torna-se “ex” depois que se emprega numa Secretaria de Estado (“1930, ano amargo... 1931 entrou triste”), se burocratiza, vira um Clark Kent sem super-poderes.

“Hoje, sem os antigos e miraculosos dons de mago, não consigo abandonar a pior das ocupações humanas. Falta-me o amor da companheira de trabalho, a presença dos amigos, o que me obriga a andar por lugares solitários. Sou visto muitas vezes procurando retirar com os dedos, do interior da roupa, qualquer coisa que ninguém enxerga.” (idem)

Com uma obra relativamente pequena, ele criou na literatura brasileira um nicho onde não imagino que caiba muito mais gente. Sua obra tem um pendor para os mistérios inexplicados, os prodígios assimilados pela banalidade cotidiana, um olhar compassivo sobre as pequenas fraquezas das pessoas comuns.








sexta-feira, 27 de maio de 2016

4119) A arte de pensar como um português (27.5.2016)



Num filme de John Schlesinger, Billy Liar (1963), o protagonista vai entrando em casa e sua avó, ao ouvir o ruído da porta, ergue a voz: “Se for Billy que está chegando, seu almoço está no fogão.” O rapaz retruca, também alto: “E se não fosse Billy, onde estaria o almoço?”.

É uma crítica dele à linguagem da avó, que parece sugerir uma inferência lógica do tipo “se x é verdade, então y é verdade”, mas trata de dois fatos independentes. O que a avó está querendo dizer é algo como “se for Billy que está chegando, saiba que, etc etc.”

O cantador Geraldo Amâncio conta em suas palestras e cantorias uma história acontecida com Biu Doido, uma figura folclórica de São José do Egito, no Pajeú pernambucano. Alguém perguntou: “Biu, você sabe me dizer se Seu Fulano está em casa?”, e Biu respondeu: “Saber eu sei, só não sei se ele está.”

Biu Doido também fez uma crítica à linguagem do outro. Quando a gente escolhe uma maneira indireta de se exprimir, parece que está fazendo uma pergunta diferente da que de fato queria fazer.  O outro pode retrucar que o “sabe me dizer” não é para ser respondido. É uma “pergunta retórica”, uma maneira mais cortês, menos brusca, de fazer a pergunta direta, que seria: “Biu, Seu Fulano está em casa?”  Mas Biu, levando aquele apêndice meramente suavizador ao pé da letra, mostra que metade da pergunta é supérflua.

Isso que Billy Liar e Biu Doido fazem é uma distorção crítico-cômica do discurso cotidiano. Não é para ser levada muito a sério, porque a fala faz parte de uma longa lista de produtos humanos que a todo instante desobedecem à lógica. Quando temos filhos pequenos, às vezes é difícil convencê-los de que a língua conjuga os verbos de uma maneira que eles acham errada, mas o jeito é dizer que é assim mesmo, não cabe a nós mudar. “Você sabe e eu também sabo”, diz o moleque, diz a pirralha, a gente conserta: “Não, se diz eu sei.”  E vem a verruma na mente: “Por que?”.

Por isso, talvez, por este excesso de atenção que algumas mentes inquietas têm para com a lógica do que se diz, mesmo na mais banal das situações. São pessoas que nos ouvem dizer algo formalmente (retoricamente) contraditório, com lacunas, sei lá o que, e nos dão na maior cara de pau uma resposta absurda.

O sujeito está saindo de um hotel de Lisboa, assina o último papel na recepção, aponta para a rua através das grandes vidraças e pergunta: “Aquele ônibus ali passa no aeroporto?”. O recepcionista responde: “Não. Passa em frente.”

Qualquer um de nós tem dezenas de exemplos dos nossos irmãos lusitanos, essa lógica implacável que os faz considerar cada fala nossa como um silogismo filosófico, cuja lógica tem que ser de ferro.

O turista em Lisboa se interessa por um livro mas está sem dinheiro ou cartão, e pergunta ao livreiro: “O senhor fecha no sábado?”, e este diz: “Não.” Ele volta lá no sábado, e encontra a loja fechada. Ao se queixar na segunda-feira, o lojista diz: “Ó pá, eu fecho na sexta. No sábado eu nem abro, como posso fechar?”

Dizem que os portugueses são burros. Pois digo-lhes eu que os portugueses (pelo menos os do animê mítico da nossa cultura oral) têm mente ciberneticamente precisa, e usam a língua que é sua com uma precisão que jamais alcançaremos. Nós falamos na verdade um fuzzy-português, uma língua fora de foco, toda raiada de exceções, nuances, subentendidos.

O português pensa como o programador de sistemas. Tem toda uma deep web de piadas sobre programadores, até porque os computadores foram inventados por eles, e devem ser o grupo que ri de si próprio há mais tempo no ciberespaço. Uma piada deles diz que o programador achou em casa um bilhete da esposa: “Querido, vá à padaria e traga um litro de leite. Se eles tiverem pão, traga seis.”  Uma hora depois a mulher entra na cozinha e encontra seis litros de leite, e nada mais.

É errado pensar assim? Eu acho que não, e se algum erro pode ser imputado a quem fala desse jeito é a fantasia utópica de querer falar certo. Não é burrice, é na pior das hipóteses uma maneira exasperantemente direta de pensar. O português e o programador parecem se ater à formulação verbal como se só ela existisse.

Uma biografia de Alan Turing, o criptógrafo inglês da II Guerra Mundial (O homem que sabia demais - Alan Turing e a invenção do computador, David Leavitt, Ribeirão Preto. Ed. Novo Conceito, 2011), cita alguns episódios em que ele, já fascinado pela ciência, pensava como cientista. No exército, foi criticado porque seu cartão de identidade estava sem a sua assinatura, e ele respondeu que fora instruído “a não escrever nada nele”.

Leavitt comenta:

Claro que do ponto de vista da lógica matemática, em cada uma dessas circunstâncias Turing estava se comportando com a máxima exatidão. A lógica matemática é distinta do discurso humano normal, no sentido de que suas afirmações são exatamente o que elas declaram, e declaram o que querem significar; de modo que uma sentença como “não se preocupe em me apanhar, eu vou andar até minha casa pela chuva e pela neve com minha perna doente” provavelmente não encontrará lugar em um livro-texto de lógica. O Dr. Spock, do seriado Jornada nas Estrelas era notoriamente insensível às inferências, ao duplo sentido e à agressividade passiva, e havia mais do que um toque de Dr. Spock em Turing, que muitas vezes se via em apuros por sua incapacidade de ‘ler nas entrelinhas’”. (p. 21)

Isto me lembra outro cientista excêntrico e de pensamento rebelde, nosso amigo Richard Feynman, cuja biografia daria uma série de TV. Feynman envolvia-se costumeiramente em episódios cômicos pela sua capacidade de dizer a verdade sabendo que ninguém acreditaria nele. (Aqui: http://tinyurl.com/gm5jk2f). “Ninguém lembrava textualmente do que ele dissera. Ele tinha dito a verdade, mas o tom de voz empregado, e a sua fama de gozador, tornaram invisível a verdade que ele dizia.”

Nossa conversa é feita de frases, mas essas frases são reforçadas, comentadas ou contraditas por mensagens complementares, de natureza não-verbal: gestos, atitudes, expressões faciais, que contaminam de sentido e de comentários a frase. Existe também o “contexto social”, uma enorme quantidade de “modos de dizer” que não fazem muito sentido mas todo-mundo-sempre-disse-assim, e ninguém para pra examinar com uma lupa.

E há pessoas que nada percebem disso, percebem apenas a letra, o texto, o sentido direto das palavras, e que ouvem uma pessoa falar aquilo como se fosse um texto num cartaz lambe-lambe pregado num poste.

Alguns tipos de autismo, ao que se diz, deixam o indivíduo incapaz, por exemplo, de jogar pôquer, onde é preciso blefar e entender o que é um blefe. Nuances, piscadelas de olho, “aspas” colocadas com uma torção cômica da voz... tudo isso passa despercebido por eles, que no entanto serão capazes de alvejar uma incoerência lógica sua com a precisão de um luso cirurgião.

Ficamos incomodados ao conversar com alguém que sempre leva ao pé da letra tudo que dissemos.  “– Pô, faz horas que a gente está nessa fila”. – Não, são menos de cinquenta minutos”. Ou então: “-- OK, pessoal, então a gente se reúne de novo amanhã. – Amanhã não, hoje, porque já passou de meia-noite.”

A crítica que se pode fazer ao estilo luso-programador-cibernético de falar é que ele, por seu excesso de fidelidade à letra, se recusa a captar o espírito. Por um apego à palavra, perde a chance de se apegar a outras formas humanas de significar (gestos, expressões, atitude, contexto). Mas os portugueses não são burros, e se um dia chegarmos de fato a produzir uma Inteligência Artificial, ela pensará exatamente como pensa um português. (O português mítico desses exemplos, bem entendido.)









quarta-feira, 25 de maio de 2016

4118) Os detalhes da narrativa (25.5.2016)



Li há muitos anos um conto italiano ou francês, ambientado no tempo antigo, em que o protagonista pega um cabriolé para ir a tal lugar. Ele desce, pede ao cocheiro que fique esperando, há um contratempo, ele foge, é perseguido, viaja, passam-se semanas ou meses, não lembro mais. O conto é cheio de coisas que não lembro mais. Só lembro (olha as ironias da literatura!) o parágrafo final, onde ele diz algo como: “Tudo resolvido, voltei à minha cidade e fui até a estação. O homem do cabriolé continuava à espera. Perguntei quanto era, ele disse que eram 900 mil francos. Dei-lhe uma nota de um milhão e falei que ficasse com o troco.”

Não é um conto propriamente realista, é de algum autor como Papini ou Apollinaire. Mas o fato do autor lembrar do cocheiro que ficou à espera aquele tempo todo traz de volta uma questão crucial da narrativa. Até que ponto um autor deve amarrar todas as pontas soltas de uma história? E precisa mesmo, esse rigor todo?

Manuais de escrita nos dão o tempo todo conselhos nessa praia. “Se o personagem pedir alguma coisa no bar, lembre-se de fazer com que o garçon acabe trazendo.” Sim, são dicas úteis. Cada vez que você faz isso a narrativa ganha maior espessura. Dois caras pedem sanduíches e começam a conversar. Se o diálogo é interessante (e afinal de contas é para mostrar esse diálogo que a cena foi concebida e escrita, ou filmada) ninguém lembra mais dos sanduíches. Mas quando eles são trazidos, fumegantes e apetitosos, isto dá ao espectador uma sensação maior de realidade. Ele percebe fugazmente que, durante a conversa, algo (a preparação dos sanduíches) estava acontecendo na cozinha. Ou seja, há coisas acontecendo de verdade em torno daquele diálogo, o mundo não pára, o mundo é de verdade e está funcionando em volta daqueles dois personagens.  Perceber isso dá mais solidez à cena e à história.

O manual diz: “Deixou o táxi esperando, volte e pague. Ou guarde o motorista para aparecer, impaciente e furioso, como elemento resolvedor irrompendo em outra situação qualquer.” Sim, sempre é bom deixar acontecimentos pendurados. No famoso conto de Fernando Sabino “O Homem Nu” o protagonista, de manhã cedinho, avisa a esposa que se baterem na porta não atenda, é o cobrador das prestações da TV. Ele sai, nu, para pegar o jornal que estava no corredor do prédio, e a porta do apartamento bate. Ele chama. A mulher pensa que é o cobrador da TV e não abre. Depois de ser surpreendido e passar por mil peripécias, perseguido pelos vizinhos, ele consegue voltar para o apartamento, arrasado. Quando está explicando tudo à mulher, batem na porta. “É a polícia!” diz ele, e vai abrir. “Não era. Era o cobrador de televisão.”  Li isso com 11 anos e lembro até hoje.

Vem daí talvez o velho conselho de Raymond Chandler para a narrativa de pulp fiction: “Quando não souber o que fazer com a cena, faça alguém entrar na sala de arma em punho.” Em histórias de crime há sempre alguém perseguindo alguém, alguém querendo silenciar uma testemunha, querendo recuperar um objeto roubado, querendo se vingar de uma chantagem, etc.  A narrativa policial hardboiled é sempre uma história de ação em que as ações dos personagens tendem mais a ser interrompidas do que a chegar ao fim sem sobressaltos.

Essa “amarração de pontas” precisa ser feita se o autor acha que o leitor vai lembrar do taxista que ficou esperando, ou do fone deixado fora do gancho, ou da chaleira com água posta a ferver, ou de Fulano que foi ao banheiro e não voltou a participar da reunião. Às vezes o autor indica cada um desses pequenos fatos com tanta ênfase que o leitor, inconscientemente, anota: “Ôpa, tem coisa aí.”  Quando depois o autor passa em branco, ele se sente meio desacorçoado. A melhor solução talvez seja dizer esses detalhes (se não são significativos) meio “en passant”, sem lhes dar muita importância.

Veja-se este exemplo:

“Quando acordei, desci para tomar o café da manhã na lanchonete. Sentei numa mesa, pedi café e sanduíche e comecei a ler o jornal. Nenhuma novidade, mas na página policial havia uma notícia sobre um carro igual ao meu encontrado pela polícia. Paguei e saí às pressas, fui direto para a delegacia.”

No trecho acima, o autor não diz que o café chegou, não diz que chegou a comer alguma coisa. Mas quando ele diz “paguei”, vemos que tudo isso aconteceu, e que esse minúsculo episódio foi encerrado. Se ele dissesse apenas “Saí às pressas...” daria a impressão de que o café não foi trazido, ou foi consumido mas não foi pago. Escrever, mesmo sem pretender grandes voos literários, é escolher o tempo todo o que precisa ser dito e o que não precisa.




domingo, 22 de maio de 2016

4117) O pensamento artístico de Einstein (22.5.2016)



Circulou por estes dias nas redes sociais um documento “fake” que fingia reproduzir uma carta endereçada a Albert Einstein, em 1907, pela Universidade de Berna, negando sua candidatura a um Doutorado. Desconfiei um pouco porque a carta (em suposto fac-símile) estava em inglês, quando o mais natural era que estivesse em alemão, mas o que me interessou mesmo foi o que ela dizia no último parágrafo:

“Mesmo tendo em conta que o senhor propõe uma interessante teoria no seu artigo publicado nos Annalen der Physik, achamos que as suas conclusões sobre a natureza da luz e a conexão fundamental entre o espaço e o tempo são um tanto radicais. De um modo geral, consideramos que suas suposições são mais de ordem artística do que de uma Física verdadeira."

O debate Ciências x Artes é uma hidra de mil cabeças.  Sempre que ela espicha uma dessas cabeças no meio da discussão eu me lembro do artigo clássico de C. P. Snow, “As Duas Culturas” (1959), no qual ele lamenta a distância entre o que hoje em dia a gente chama “a galera de Exatas e a galera de Humanas”. Snow lamenta que cada uma dessas turmas entenda tão pouco do que faz a outra, e livra um pouco a cara dos cientistas; segundo ele é mais fácil um cientista conhecer música, pintura e literatura do que um artista conhecer ciências. (Aqui: http://www.newstatesman.com/cultural-capital/2013/01/c-p-snow-two-cultures)

Pra mim, a melhor formulação desse impasse é a de Arthur C. Clarke: 

“Uma pessoa que conheça tudo sobre as comédias de Aristófanes e nada sobre a Segunda Lei da Termodinâmica é tão inculta quanto aquela que dominou a teoria quântica mas pensa que Van Gogh pintou a Capela Sistina”. 

Nas regiões mais elevadas do pensamento criativo, ali onde ocorrem as grandes idéias que revolucionam todo o pensamento de uma época, não há muita distinção entre o pensamento criador artístico e o pensamento criador científico.

O insight criativo, a associação inesperada de idéias, a ruptura conceitual, o momento do Eureka!, tudo isso são resultados de um longo e cansativo processo. É uma concentração mental alimentada por tensão emocional e por um grande número de informações sendo manipuladas incessantemente de todas as formas pelo raciocínio e pela memória associativa, até que se dá o “clique”.

Isso é particularmente visível no caso de Einstein, que como cientista era uma figura um tanto heterodoxa. Num depoimento a Jacques Hadamard (citado em A Experiência Matemática, David & Hersh, Ed. Francisco Alves, 1985, trad. João Bosco Pitombeira), o cientista falou:

“As palavras ou a linguagem, como são escritas ou faladas, não parecem desempenhar qualquer papel em meus mecanismos de pensamento... as entidades físicas que parecem servir como elementos no pensamento são certos sinais e imagens mais ou menos claras que podem ser ‘voluntariamente’ reproduzidos e combinados... Os elementos mencionados acima são, em meu caso, visuais e alguns do tipo muscular. Palavras convencionais ou outros sinais devem ser procurados laboriosamente somente em um estágio secundário.” (Davis & Hersh, p. 347)

As intuições visuais e musculares de Einstein explicam suas analogias através de imagens, capazes de deflagrar um curto-circuito conceitual nas idéias aceites.

Ele sugeria: Se um indivíduo pudesse viajar pelo espaço montado num raio de luz, e segurando diante de si um espelho, ele se veria refletido nesse espelho? Einstein usa um detalhe ínfimo (o ir-e-vir da luz no espaço de 1 metro, num contexto-limite) para questionar todo o fundamento de uma “lei” abstrata e mostrar que ela não tem um valor absoluto.

Por outro lado, o princípio relativístico de que à medida que a velocidade aumenta os corpos materiais “se achatam” na direção para onde se deslocam é uma intuição muscular que, no caso de Einstein (talvez pensando na sensação de achatamento-por-aceleração que sofremos horizontalmente num trem ou verticalmente num elevador), acabou fornecendo uma indicação utilizável. (Link: https://en.wikipedia.org/wiki/Length_contraction). (Mas é bom lembrar que são incontáveis os exemplos de analogias aparentemente corretas mas que não levam a nada.)

O que os apócrifos burocratas de Berna chamam de “suposições de ordem artística” é justamente um dos caminhos mais trilhados pelos cientistas para atingirem, de um salto, verdades universais a que seria talvez impossível chegar através do método pedestre (embora também legítimo) de cálculos miúdos, onde são grandes as chances de andar em círculos, voltar ao ponto de partida, pegar mil veredas que só levam a becos sem saída.  

Matemáticos e cientistas em geral costumam louvar certas formulações por sua “beleza estética” ou “elegância”, critérios que têm muito pouco a ver com os volúveis conceitos de beleza e elegância no dia-a-dia, mas indicam o quanto uma síntese é compacta, simples, coerente, e ao mesmo tempo capaz de ser constantemente testada e funcionar.

Nem tudo que Einstein supôs era a melhor resposta para as questões que ele abordava; muito da sua obra foi superado (até agora) pela Física Quântica, cujo espírito probabilístico lhe desagradava. Mas as suas intuições “artísticas” continuam valendo. Thomas S. Kuhn, no seu essencial A Estrutura das Revoluções Científicas (1962; Ed. Perspectiva, 1982) lembra:

“Se um novo candidato a paradigma tivesse que ser julgado desde o início por pessoas práticas, que examinassem tão-somente sua habilidade relativa para resolver problemas, as ciências experimentariam muito poucas revoluções de importância. (...) Mesmo hoje a teoria geral de Einstein atrai adeptos principalmente por razões estéticas, atração essa que poucas pessoas estranhas à Matemática foram capazes de sentir.” (p. 198-199)









sexta-feira, 20 de maio de 2016

4116) Os momentos philipkdickianos (20.5.2016)



(ilustração: Jeff Drew)

É uma espécie de gíria interna entre nós, leitores, tradutores, críticos, que curtimos a obra do criador de Blade Runner e do Homem do Castelo Alto.  “Momentos Philip K. Dick” ou philipkdickianos são aqueles momentos de flagrantes quebras da realidade. Momentos em que a pessoa imagina ter cruzado um portal, uma zona de transição entre dois universos que coexistem à revelia um do outro, mas sob certas circunstâncias podem se tocar, podem permitir a passagem de alguém numa direção ou na outra.

Ou duas narrativas conflitantes, dois grupos de pessoas que, mesmo misturadas umas às outras, afirmam pertencer a universos diferentes. Cada qual explica as coisas e os fatos à sua volta com uma narrativa histórica totalmente coesa em si, mas irredutível à narrativa do outro. As duas se excluem mutuamente. Alguém ali está num universo a que não pertence. É assim com as pessoas que um acidente nuclear transporta para dentro do mundo mental de cada uma delas, sucessivamente, em Eye in the Sky, ou o solteirão desocupado de Time Out of Joint (1959), que vive de favor na casa da irmã e do cunhado, e que um belo dia tem uma revelação maior e mais apocalíptica do que a de Truman Burbank em The Truman Show, se bem que de natureza semelhante.

Momento Philip K. Dick é quando você chega numa esquina onde não passa há um mês e vê que a costumeira calçada escura e esquisitona está agora coberta de mesas sob o resplendor de luzes fluorescentes e vidraças de bares cheios de uma rapaziada bebedora que parece ter nascido ali. Rupturas inesperadas do continuum espaçotempo a que a gente estava domesticado.

Nada porém, caracteriza melhor esses momentos do que os pequenos detalhes que não batem, as coisas insignificantes, adereços de cenário, props, mas que para nós exprimem o que o mundo real tem de mais sólido, opaco, desinteressante, confiabilíssimo. O cara mora naquela casa há anos, entra no banheiro, às escuras, estende a mão para pegar o cordãozinho de fio pendurado junto à lâmpada, para acendê-la, aí se detém e pensa: “Peraí! A luz daqui sempre acendeu com interruptor! Por que eu lembrei tão vividamente que era um cordão com uma ‘pera’ pendurada?”

Que importa se a Terra está em guerra com a Lua, ou com mais alguém. Afinal de contas, é mais fácil se acabar o bar da esquina do que um país inteiro, mas o mundo está cheio de bares com mais longevidade do que algumas grandes potências ou impérios. O país pode se dissolver no ácido da ambição alheia, mas o interruptor da luz precisa ser o mesmo, o degrau quebrado da escada ainda é o terceiro do segundo lance, o meu botão de elevador é o penúltimo, a bandeira esportiva na parede da sala é aquela e não outra. Esse mundo é meu. Mas se mexem nesses detalhes tão banais, tão pessoais, aí sim, nosso senso do real fica prejudicado. Sentimos que “o próprio tecido do espaçotempo” está se esgarçando pelo forçar da nossa passagem.

Louis Pauwels, co-autor do clássico O Despertar dos Mágicos, onde propõe o conceito de Realismo Fantástico, exemplificou uma vez (creio que na antiga revista Senhor) como o Fantástico surge muitas vezes por uma diferença de percepção. Vemos algo impossível e segundos depois nossa mente corrige nosso olho: “Não, não é isso, é isto aqui”, e às vezes basta mudar um pouco de posição para ver que sim. Pauwels conta que num dia de nevoeiro cerrado ele caminhava ao ar livre, numa neblina que só permitia enxergar no raio de um metro ou pouco mais. De súbito emerge um corvo voando lento, à altura do seu rosto. Ao se deparar com ele, o corvo solta um grito aterrorizado e desaparece num voo pânico numa direção qualquer. Pauwels diz que o corvo achou que estava voando na camada alta que lhe era costumeira, de modo que, do ponto de vista dele, surgiu no ar um homem caminhando a vinte metros de altura. Daí o terror. “Ele viveu um momento de Realismo Fantástico”, dizia o autor.

Dick usava isto extensivamente, mas era um assunto tão importante para ele que ele nunca deixava de imaginar novas circunstâncias num enredo. Momentos philipkdickianos são o transe zen do personagem de O Homem do Castelo Alto, segurando um objeto e através dele sendo transportado para um mundo paralelo. É também um leit-motif recorrente de suas histórias: o instante em que alguém enxerga a si mesmo (corpo, comportamento, evidência externa) e percebe ser um andróide ou equivalente. Há um momento clássico em Time Out of Joint, quando o personagem, na piscina de um clube num dia de sol, dirige-se para uma barraca de refrigerantes e ao fazer o pedido tem uma espécie de vertigem, fica tonto, e quando se recompõe vê-se diante de um espaço vazio, e no chão está pregada uma folha de papel dizendo “Barraca de Refrigerantes”.

Momento Philip K. Dick mesmo vai ser quando eu um dia pensar: sim, mas me diga uma coisa, o que é que eu estou fazendo aqui neste lugar, a esta hora, com esta roupa, e por falar nisso, quem sou eu?





terça-feira, 17 de maio de 2016

4115) "Doze Contos Peregrinos" (17.5.2016)



Doze Contos Peregrinos (Record, 2007, 17ª. Edição, trad. Eric Nepomuceno; edição original, 1992), de Gabriel Garcia Márquez, reúne histórias cuja gênese e execução ele comenta num curioso prefácio. Os contos são, pela ordem:

Boa Viagem, Senhor Presidente (1979)

A Santa (1981)

O Avião da Bela Adormecida (1982)

Me Alugo Para Sonhar (1980)

“Só Vim Telefonar”(1978)

Assombrações de Agosto (1980)

Maria dos Prazeres (1979)

Dezessete Ingleses Envenenados (1980)

Tramontana (1982)

O Verão Feliz da Senhora Forbes (1976)

A Luz é como a Água (1978)

O Rastro do teu Sangue na Neve (1976)


Algumas das histórias do livro acompanham personagens idosos em jornadas sofridas, meio sem sentido, mas que são o que a vida lhes deixou: um homem conduz por toda parte um ataúde com a filha pequena morta e preservada, para que o Papa a santifique; uma mulher quer apenas ver o Papa e depois morrer; uma mulher idosa ensina seu cão a ir sozinho visitar o túmulo onde ela um dia será enterrada; um ex-presidente caribenho, agora na obscuridade, é paparicado por um casal interesseiro de jovens conterrâneos. As pessoas sonham com futuros improváveis que acabam acontecendo, só que de uma maneira mais improvável ainda. Sonham umas com as outras, como os personagens de “Olhos de Cão Azul” (1947), um dos meus preferidos entre seus contos mais antigos.

Escritos todos após os 50 anos do autor, não admira que a velhice esteja presente em muitos deles. A velhice que faz um homem perder o poder total, faz uma mulher perder (ou julgar perder) o poder de despertar desejo num homem, faz um homem se satisfazer em sonhar com uma mulher linda enquanto ela dorme ao seu lado. “O Avião da Bela Adormecida”, cujo protagonista passa a longa noite de um voo transcontinental junto da “mulher mais bela da minha vida”, prefigura a adoração platônica que Márquez exploraria em Memória das Minhas Putas Tristes (2004), até mesmo a epígrafe japonesa desse livro, quando ele diz: “Na primavera anterior havia lido um bonito romance de Yasumari Kawabata sobre os anciões burgueses de Kyoto que pagavam somas enormes para passar a noite contemplando as moças mais bonitas da cidade, nuas e narcotizadas, enquanto eles agonizavam de amor na mesma cama.”

Garcia Márquez tem seu nome sempre ligado ao realismo mágico, mas talvez o único conto no livro que lembre este gênero seja o belo e delicado (mas sem grandes peripécias) “A Luz é como a Água”, que lembra alguns contos de Ray Bradbury, um autor com quem Márquez tem numerosas afinidades. Há um conto fantástico da velha estirpe, “Assombrações de Agosto”, uma história de castelo assombrado por fantasma, que se desenrola meio mecanicamente até a surpresa no último parágrafo, capaz de fazer empertigar-se o leitor mais sonolento.

Um tema notável, não lembro se muito frequente nos contos de Márquez, é o da morte violenta, inexplicável, deflagrada como que pela queda aleatória de um raio. Márquez, como todo amante do melodrama, adora projetar seus personagens em situações-limite das quais muitas vezes eles não escapam. Não se trata porém de tragédias convencionais: há um mistério inquietante na ausência de pistas com que ficamos após a morte brutal de certas pessoas em “Me Alugo Para Sonhar”, “Dezessete ingleses envenenados”, “Tramontana”, “O verão feliz da senhora Forbes”, “O Rastro do Teu Sangue na Neve”.

“Só vim Telefonar” é um conto kafkeano capaz de provocar risadas nervosas; eu chamo a este subgênero “Histórias de Pessoas Que Tentam Ir Embora de Um  Lugar e Não Conseguem”. Analisei esse subgênero no capítulo “Os Infortúnios da Vontade”, em minha antologia Contos Fantásticos no Labirinto de Borges (Casa da Palavra, 2005), se bem que no conto de Márquez há circunstâncias concretas bastante explicáveis infernizando o destino da protagonista.

No prefácio, Garcia Márquez fala da dificuldade que sente em escrever contos curtos (com um argumento usado, sem muita mudança, por Tim Powers, para explicar porque escreve romances enormes e produz poucos contos):

“O esforço de escrever um conto curto é tão intenso como o de começar um romance. Pois no primeiro parágrafo de um romance é preciso definir tudo: estrutura, tom, estilo, longitude, e às vezes até o caráter de um personagem. O resto é o prazer de escrever, o mais íntimo e solitário que se possa imaginar.”

O autor diz que os contos ficaram muitos anos em estado de anotações num caderno, e que depois trabalhou em todos quase simultaneamente.

“A escrita tornou-se então fluida, e tanto que às vezes me sentia escrevendo pelo puro prazer de narrar, que é talvez o estado humano que mais se parece à levitação.”

Fala quem sabe. Escrever é como andar de monociclo numa corda-bamba. Parece impossível, porque depende da conjugação de variáveis muito delicadas, e qualquer soprozinho pode fazer tudo vir abaixo. Mas existe aquele momento extraordinário onde as idéias geram formatos-de-frases e nesses formatos-de-frases as palavras se encaixam como que por encanto e a mente do escritor vira uma linha de montagem onde trabalham, num só ritmo e numa só excitação, várias mentes contíguas e comunicantes: a mente que concebe o fato, a mente que intui a forma necessária de contar o fato, e as palavras certas, para não falar nos dedos que digitam. “Levitação”. Fala quem sabe.









segunda-feira, 16 de maio de 2016

4114) O ídolo Cauby Peixoto (16.5.2016)



Quando eu era menino e comecei a ouvir música no rádio, ele era um dos maiores cantores do Brasil, um equivalente ao que Roberto Carlos seria anos mais tarde. Eram ele, Nelson Gonçalves, Orlando Silva... Quem mais? Falo do ano de mais-ou-menos 1960, quando Cauby se apresentou em Campina Grande, na Rádio Borborema, e eu o vi em pessoa, de relance, pela primeira e última vez.

(Digressão: a Rádio Borborema nessa época era um pé de escada no Calçadão da Rua Cardoso Vieira, entre a Sorveteria Flórida, que ficava na esquina, e o Café São Braz, que valorosamente continua no mesmo lugar. Ou pelo menos estava, da última vez que passei por lá. Pelo andar da carruagem, pode ser sido substituído por uma farmácia, porque em Campina tem “bem pouquinha” farmácia.)

Cauby era nosso maior cantor porque vivíamos ainda o auge da Música Radiofônica Brasileira, que foi substituída pela Música Televisiva Brasileira, para o bem e para o mal. O rádio continua tocando, mas não é mais ele que impõe os grandes sucessos. A TV chancela e carimba quem vai tocar, e as rádios vão atrás.

Era um grande artista, sem dúvida, no quesito vocal, no quesito histriônico (o que modernamente chamamos “presença de palco”), na diplomacia, no trato carinhoso com os fãs, na simpatia meio artificial mas provavelmente sincera, porque ele adorava o showbiz, adorava os aplausos, o sucesso. Mais que o sucesso das manchetes e das paradas: adorava o sucesso do recinto, de estar naquele instante entusiasmando com sua interpretação um auditório cheio de pessoas. O sucesso visceral, epidérmico, aqui-e-agora, que o palco proporciona a quem sabe driblar suas armadilhas e usar bem suas alavancas. O sucesso de Cauby corresponde ao espírito da canção de Chico Buarque, “Bastidores”, que ele adotou para si. A carreira de Cauby está inteira naqueles versos e naquela ondulação melódica. Seu destino era cantar junto à estridência triunfal de uma Big Band ou no aconchego etílico de um piano-bar.

Visto de perto percebia-se que ele era moreno, “pele cor de oliva” como se diz na literatura, uma figura latina ou cabocla, moreno claro na linha de Castro Alves ou Gonçalves Dias. Usou por muito tempo um bigodinho fino, e somente agora, em retrospecto, percebo que se parecia bastante com Prince, o jeito meio andrógino, a firmeza inabalável, a pose imperial equilibrada pelo sorriso perpétuo e radiante. Um Prince bem comportado, é claro, um Prince que só usava black-tie e impecáveis sapatos pretos. Somente após a idade madura aderiu aos babados, aos frufrus, aos paetês, e acho que a “fase Las Vegas” de Elvis Presley o ajudou nessa transição.

Sua música foi sempre a música romântica, e era ele o modelo permanente para os que surgiram ao longo da minha adolescência: Agnaldo Rayol, Agnaldo Timóteo, Altemar Dutra, Nelson Ned, Jessé. A música de amor cantada com arrebatamento stanislavskiano, sem pudor, sem peias, “emoção à flor da pele”, como prometem os cartazes desses shows. A grande maioria das chamadas “duplas sertanejas” de hoje não faz música do sertão. Faz esse tipo de música, música romântico-urbana em clima de opereta ou de chá dançante. Apesar dos chapéus de cowboy, aqui e ali uma bota ou camisa xadrez, apesar do figurino e da atitude que lembra mais Tin Pan Alley do que Vegas, essas duplas todas são herdeiras de Cauby e não de Tonico e Tinoco. 

Quando veio a Campina Grande, não havia ainda grandes shows em teatros, praças, ginásios, estádios. O maior cantor do Brasil cantou no auditório da Rádio Borborema, onde cabiam cento e poucas pessoas. Ele, também, subiu aqueles gastos degraus de pedra que eu tanto subi, garoto, levando o envelopezinho com a resposta do teste semanal do programa “Falando de Cinema” de Humberto de Campos.

Meu pai trabalhou anos como redator naquela rádio, e quando Cauby veio cantar ele levou a mim e a minha irmã Clotilde. A platéia estava repleta, e ouvimos o show num salão ao lado do auditório. Era o salão da diretoria da rádio, acho, apinhado de pessoas. A certa altura da noite o astro adentrou o recinto, cumprimentou um por um, apertou todas as mãos. Não lembro se apertou a minha. Alguém lhe disse: “Cauby, a rua está cheia de gente que não pôde entrar. Claro que você não vai poder cantar para elas, mas podia pelo menos vir até a sacada, dar um aceno?...”  “Claro,” disse ele.

Foi até a sacada, e quando a multidão o viu elevou-se um clamor de aparecimento do Papa na Praça de São Pedro. Ele ergueu os braços, teatral, pedindo silêncio. Fez-se um silêncio de alfinete caindo em paralelepípedo. E ele encheu a rua com o vozeirão belo e potente: “Conceição.... eu me lembro muito bem...”

Todos lembrarão.

Links:
“Bastidores”








sábado, 14 de maio de 2016

4113) A arte de improvisar histórias (14.5.2016)



(ilustração: Julie Paschkis)

Um velho clichê diz que violão é o instrumento mais fácil de tocar e mais difícil de tocar bem. (Violão porque é o que eu toco; imagino que qualquer músico já ouviu dizer isso a respeito do seu instrumento.) Eu diria que inventar histórias de improviso é a coisa mais fácil de fazer e a mais difícil de fazer bem. Em rodas de conversa com amigos já pratiquei a nobre arte de começar uma história meio sem pé nem cabeça, depois de dois minutos dizer para o cara ao lado: “Agora vai tu”, e cada um ir adicionando seu trecho e passando adiante.

(Digressão: esse sistema é o que em inglês chamam de “round robin”, uma criação coletiva com cada autor pegando a história onde o outro larga. Existe na FC e no romance policial, por escrito, não improvisado. Os surrealistas franceses gostavam de improvisar histórias, poemas ou narrativas de sonhos em voz alta. Um dos meus contos preferidos de Conan Doyle é “Cipriano Overbeck Wells, mosaico literário”, onde numa alucinação meio machadiana o narrador vê-se cercado de autores como Jonathan Swift, Bulwer-Lytton, Walter Scott, Daniel Defoe e outros, improvisando em “round robin” uma história para ele.)

Fazer de improviso é mais difícil se o cara for se preocupar com aspectos que já são complicados no texto escrito: coerência do enredo, originalidade da idéia, riqueza de descrições, profundidade psicológica... 

Não, uma história inventada em voz alta deve ir se jogando para a frente sem saber o que vem depois, e a imagem que me vem à cabeça é um macaco saltando de galho em galho, largando-se de um galho forte que se enverga e o arremessa como uma catapulta bem no meio da copa de outra árvore onde por certo não faltará com o quê se pegar. Assim vai o narrador de improviso.

Já improvisei muita historinha para meus filhos na hora de dormir, a única regra era que não podia ficar bolando sinopse meia hora antes. Eu só me permitia pensar na história depois de pronunciada a fórmula mágica do Era uma vez. Depois disso eu olhava em torno, via a janela aberta e dizia: “Um dia, o Macaco vinha andando pela floresta de noite e viu de longe uma janela acesa, num lugar onde ele nunca tinha visto casa nenhuma”. O que vem depois não sei, mas qualquer coisa pode se encaixar aí.

Escrever assim (porque isso faz parte de escrever) requer certas precauções. Me lembro muito das histórias que Tia Adiza contava para a gente, mais de meio século atrás, nesse mesmo ritual de botar pra dormir. Ela vinha com umas histórias bem concatenadas, que eu acho que eram menos improvisadas do que exumadas da memória. E de vez em quando aparecia algo como:

“Aí o Rei mandou prender o rapaz no calabouço, os guardas jogaram ele no porão, fecharam o alçapão lá no alto e botaram uma pedra em cima. O rapaz ficou preso. Mas certa hora ele ouviu um barulho na grade.” 

“Que grade, tia?”  

“Oi, não falei na grade não? Num canto do porão tinha uma portinha baixa, gradeada, que dava pro lado de fora!”

Elementos narrativos brotavam assim, do-nada, de acordo com as conveniências do herói, e dela. Eu já ficava com medo de imaginar a cena, porque podia haver uma porção de elementos deus ex machina que ela estava vendo e eu não. 

“Aí o rapaz ia caminhando pelo descampado, aí se deitou pra descansar. Foi quando ele ouviu um tropel, lá vinha um touro furioso, imenso, correndo pra cima dele!...”  

“Eita, tia, e o que foi que o rapaz fez?” 

“Ele subiu correndo na árvore! Oi, não falei na árvore não? Era uma mangueira bem alta...”

Quem está inventando em voz alta precisa dessa cara de pau. Quem escreve, não. Quando ele perceber que faltou informação prévia ao leitor (que não aceita ouvir falar pela primeira vez em algo quando nesse algo repousa todo o peso de uma cena), ele pode voltar atrás quanto espaço for necessário para “plantar” a informação sobre a gradezinha ou a mangueira. De preferência, dando-lhe um contexto que não sugira de que maneira será utilizada a seguir.

Se o fluxo principal da história for atraente, o ouvinte perdoa muita coisa, perdoa que a moça seja loura numa cena e morena na outra, como as mulheres fatais de Buñuel. Perdoa que um táxi ou uma carruagem que o herói deixou esperando por ele estejam à sua espera até hoje após o fim do livro. Perdoa que o herói tente alcançar seus objetivos da maneira mais tortuosa quando com duas manobras poderia resolver tudo. 

O ouvinte-leitor sabe e sente que, se fosse assim, não haveria história. Ele aceita as maiores inverossimilhanças, desde que estas tornem a história mais vívida, e não menos. Os melhores filmes de Hitchcock se baseiam nesse tobogã narrativo onde cenas implausíveis se sucedem da maneira mais emocionalmente plausível que se possa imaginar.






quinta-feira, 12 de maio de 2016

4112) Ilha Nula, o lugar que não existe (12.5.2016)




Escrevi dias atrás aqui no blog (“O Kafka da era digital”, 12 de abril, https://t.co/caAUYpuVoH) sobre certos resultados meio surrealistas do mapeamento digital via satélite. Naquele caso, era o modo como os rastreamentos de endereços IP de computadores, quando não têm sua localização geográfica corretamente identificada, são todos “jogados” para o ponto central dos EUA, uma região pouco povoada do Kansas.

Fiquei sabendo agora da existência de um ponto parecido como esse, que os profissionais do ramo chamam “A Ilha Nula” (“Null Island”).  É um lugar virtual, ou seja, não tem existência material mas é útil para a organização do espaço em nossos mapeamentos; algo como a Linha do Equador, também fictícia.

(Digressão: Conta-se que nas Copas do Mundo disputadas na Europa em 1934 e 1938, os jogadores da Seleção Brasileira iam de navio, e ao se aproximarem da Linha do Equador algum espertinho pregava um fio de cabelo horizontalmente nas lentes de um binóculo e ficava mostrando a Linha, para o deslumbramento dos marinheiros-de-primeira-viagem.)

Null Island fica no ponto cartográfico chamado de 0°N 0°E, ou seja, zero grau de latitude e zero grau de longitude, o local onde a Linha do Equador cruza o Primeiro Meridiano. É o “zero cartesiano” do mapa-múndi, o centro de tudo. Este ponto fica no Oceano Atlântico, no Golfo da Guiné. Como o mapeamento cartográfico serve para orientar inclusive o mapeamento satélite-digital do GPS, é um ponto importante. Precisa ser registrado. E como ali nada existe, é mar alto, colocou-se no local uma bóia meteorológica, ancorada ao fundo.

Esse tipo de referência é usado em sistemas mapeadores como Google Maps, Mapquest ou outros. É o World Geodetic System 1984 (WGS84), usado pelo Departamento de Defesa dos EUA e pelo GPS. Sempre que um endereço é digitado erradamente ou sofre algum tipo de interferência que o torna inválido, o resultado apresentado aparece assim, “0°N 0°E”, ao invés de um endereço completo tipo: 7o 13’ 50” S 35o 52’ 52” O. (Esta é a localização de Campina Grande, por esse sistema.)  E os geógrafos (ou sei lá quem) decidiram projetar nesse lugar zero-zero essa ilha inexistente. A Wikipedia informa que eles atribuem à Ilha Nula uma área simbólica de 1 metro quadrado, com uma linha costeira de 4 metros lineares.

Tal como ocorria no exemplo do Kansas, a Ilha Nula é considerada “um dos lugares mais visitados da terra”, virtualmente, é claro, pelas centenas de milhões de resultados “0°N 0°E” que milhões de computadores estão obtendo todos os dias.

O artigo que estou consultando (aqui: http://tinyurl.com/z2ptrl9) fala que essa localização se refere apenas aos cálculos geográficos segundo o padrão do WGS84, mas existem muitos outros padrões, e o “ponto zero” de cada um fica num local diferente do globo. Olha só que idéia ótima para cercar de verossimilhança científica um lugar imaginário, daqueles dignos de figurar no The Dictionary of Imaginary Places (1980) de Alberto Manguel & Gianni Guadalupi.

(Digressão: este dicionário, aliás, registra apenas os lugares imaginários da literatura, não os da ciência, de modo que Null Island não figura nele. Existe apenas uma Land of Null, também conhecida como Wisdom Kingdom, proposta no livro infantil The Phantom Tollbooth (1962) de Norton Juster.)

E tudo isto daria um excelente arrazoado técnico para  situar lugares imaginários como o Monte Analogue imaginado por René Daumal, num dos “romances inacabados” mais inquietantes da literatura. Mas isso já é outra história.









domingo, 8 de maio de 2016

4111) A peleja de Romano com Inácio (8.5.2016)





(Patos-PB: o beco ao lado da Igreja da Conceição, construída em 1773, local da famosa peleja)


O primeiro relato que li sobre a famosa cantoria a desafio entre Romano do Teixeira e Inácio da Catingueira foi o de Câmara Cascudo em Vaqueiros e Cantadores (1937), que já li em edição moderna, de bolso, por volta de 1971. Cascudo diz que a peleja aconteceu em 1870, e foi este o ano que me ficou na memória. Fui checar agora em F. Coutinho Filho, Violas e Repentes (1953), e este, num capítulo mais rico de informações do que o de Cascudo, inclusive transcrevendo diferentes versões de várias estrofes, diz que a peleja aconteceu em 1874.

Estive recentemente em Patos, a “Morada do Sol” paraibana, para fazer uma palestra pela Fundação Ernâni Satyro, graças a Geralda Medeiros de Lacerda, Biu do Xadrez e Wandecy Medeiros. Foi em Patos que a famosa peleja aconteceu. Coutinho Filho relata não só a cantoria como a sua grande repercussão. Pessoas já vieram me perguntar se nesse desafio tão famoso eles tinham mesmo cantado sem parar durante três dias, como rezam algumas lendas. Eu penso que o mais provável seria os dois cantadores terem se enfrentado em três noites sucessivas. Seriam três encontros, não um só. Não era uma maratona. Seria mais como certas festas que o cara vai pra casa, dorme um pouco, e quando volta a festa recomeça. Já fui muitas festas assim. (Cantoria não.)

Essa peleja é emblemática por envolver um branco letrado e um negro escravo, que foi depois alforriado. (Outra peleja que tem um perfil ligeiramente diferente, mas também tem semelhanças, é a do Cego Aderaldo com Zé Pretinho, que uns dizem ter sido tão imaginária quando a de Athayde com Raimundo Pelado.) As diferentes versões fazem a balança pender para um ou para o outro. O desfecho mais famoso é aquele em que Romano joga sobre Inácio uma estrofe repleta de mitologia grega, fazendo-o encostar o pandeiro e confessar que não podia acompanhá-lo naquele campo. Há um texto de Graciliano Ramos onde ele conta a história da peleja, irrita-se com o truque de Romano e declara Inácio vencedor.

Romano ganhou a cantoria assim:

Latona, Cibele, Réia, 
Íris, Vulcano, Netuno, 
Minerva, Diana, Juno, 
Anfitrite, Androcéia, 
Vênus, Climene, Amaltéia, 
Plutão, Mercúrio, Teseu, 
Júpiter, Zoilo, Perseu, 
Apolo, Ceres, Pandora! 
Inácio, desata agora 
o nó que Romano deu! 


A mitologia de Romano era mais uma mitologia de charadista e de leitor de almanaques do que a de helenista. O importante nessas estrofes nem é o assunto, é a técnica de usar a cadência e a rima para produzir esquemas mnemônicos de repetição improvisada.

Átila Almeida e José Alves Sobrinho, no seu Dicionário Bio-bibliográfico de Repentistas e Poetas de Bancada (1978) reitera a data de 1874 mas não deixa muito mais coisa inteira: “Das pelejas havida[s] entre os dois grandes cantadores, por volta de 1874, há tantas e tão enfeitadas versões que da variedade só se pode concluir pela falsidade de todas. (...) Catingueira, escravo e analfabeto, devia ser um talento para elevar-se ou ser elevado à altura de disputar com Romano, mas nunca poderia ter levado vantagem nesse embate. Romano além de igualmente talentoso tinha mais recursos para explorar. Nas comparações que têm sido feitas dos dois poetas nunca foi dito que Romano poderia ser, talvez, o maior admirador de Inácio, quem o promovia.”

Mal comparando, uma peleja como essa estaria para a Cantoria assim como o duelo do OK Corral está para o faroeste. Uma cantoria, ou uma lenda, ou uma história de extraordinário enredo, pode sofrer mil versões ou variantes. Confrontar versões sempre foi comum entre pessoas que colecionam versos. Faz parte do ofício. Ninguém decora uma cantoria inteira, com a possível exceção de Zé de Cazuza.

Assim como os próprios mitos, assim como a história dos próprios personagens mitológicos citados por Romano, a peleja acabou tendo numerosas versões esfarrapadas que, superpostas umas às outras, recompõem uma cantoria meio documental, meio fictícia. Na mitologia, cada narrativa do mito cobre alguma área não coberta pelas versões já conhecidas. Todas vão se superpondo.  Seria um desafio interessante fazer um livrinho, uma edição comentada, com um apanhado do maior número possível de versões da peleja entre Inácio e Romano, tentando engastá-las todas numa mesma estrutura. Uma versão de soma e de síntese, por assim dizer.

O verso de mitologia de Romano é meio que um travalíngua voltado contra ele próprio, mas em todo caso é uma bigorna poética na cabeça do contendor. Há quem critique os cantadores enciclopedistas, dessa estirpe que Romano representou em sua época e Ivanildo Vila Nova na minha. Poemas enumerativos podem às vezes não ter muita beleza poética, mas aquelas enormes estrofes enumerativas de peixes ou de bichos que tem nos folhetos de Costa Leite, e de outros, tem menos um propósito estético do que um jogo lúdico de memória e de articulação no canto:

Temos voador, olhete e tunimba 
enxova, corvinho, tabá, sirigado, 
cacholote, robalo, salema e dourado, 
pirapitinga, cangula e sardinha 
sanhauá, camorim, galo e tainha, 
tintureira é um peixe, preciso rimar, 
o peixe canguito não posso deixar 
camurupim, aniquinho, albacora, 
tira-vida, guaiabira e garacimbora 
são peixes que vivem nas águas do mar.

(José Costa Leite, Peleja de José Costa com Poetisa Baiana).

Ou essas estrofes intercaladas de Manoel Camilo dos Santos: 

I – Amaro, Augusto, Adriano, 
Ambrósio, Alonso, Agripino, 
Anastácio, Ageu, Alípio, 
Abel, Aleixo, Avelino, 
Antero, Alfeu, Ananias, 
Abílio, Antonio, Adelino. 

C – Breno, Bruno, Belarmino, 
Bento, Brito, Belisardo, 
Berchior, Braz, Benevides, 
Bertoldo, Belo, Bernardo, 
Bival, Boanerges, Berto, 
Balila, Brandão, Bivardo.
(Manoel Camilo dos Santos, A Grande Peleja de Ivanildo Vila Nova com Manoel Camilo dos Santos).

E um exemplo de um folheto do próprio Ivanildo Vila Nova, um dos expoentes desta técnica: 

Um elogio geral 
aos craques do passado: 
Pavão, Bolão, Juvenal, 
Danilo, Heleno, Machado, 
Ávila, Barbosa, Ademir, 
Zizinho, Chico, Jair, 
Friaça, Biguá e Bria; 
Leônidas, Noronha e Tim 
Patesco, Pedro Amorim, 
Galo e Domingos da Guia. 

(Ivanildo Vila Nova, O futebol através dos tempos)

Os versos enumerativos se tornam um cântico cuja função é de sagrar, salvar os seres registrando-os pela palavra, pelos seus nomes. Como Bispo do Rosário resgatava cada coisa em sua Enciclopédia do Apocalipse envolvendo-a em fio azulado, o poeta resgata cada matinho de beira de estrada ou cada qualidade de caça que ele enumera. Enquanto o nome daquele peixe for repetido por alguém cantando decorado aqueles galopes, é quase como se o peixe mesmo tivesse continuado a existir. 

São poemas que tem uma utilidade etnográfica, também. Como as songlines dos aborígenes da Austrália, poemas geográficos intermináveis descrevendo cada pedra, cada rochedo, cada riacho, cada arvoredo, cada lugar. São usados como mapas verbais, para que as pessoas, repetindo-os, não se percam.

Tudo isso não terá começado com esse verso específico de Romano, é claro. Mesmo ainda àquela altura, já devia haver uma fartura de exemplos. Esse tipo de balaio ou verso pronto está no cerne da poesia popular, não tem nada a ver com ser repente ou não. É como as enumerações bélicas de Homero na Ilíada ou os microcatálogos zoobotânicos de Guimarães Rosa em “Cara de Bronze”, “O Burrinho Pedrês”, etc. A mera repetição de nomes, sem nenhum nexo sintático entre eles, uma mera lista crua nome a nome, acaba ganhando um valor muito mais sonoro do que denotativo. Vira uma litania, uma latomia, um mantra, com uma sonoridade talvez próxima da sonoridade primitiva da língua geral, o nheengatu, que tanta gente neste Brasil véio já falou. 


No meu livro Os Martelos de Trupizupe (Natal, Engenho de Arte, 2004) incluí algumas estrofes de um trabalho meu, um desafio onde os dois cantadores terminam suas estrofes, respectivamente, com os motes: “Cantador tem que ser analfabeto” e “Cantador tem direito a estudar”. São duas correntes sociais poderosas dentro da poesia popular. Poderíamos dizer que Romano, branco, culto, empunhando uma viola, produziu o arquétipo do atual cantador; e que Inácio, negro, humilde, empunhando um pandeiro, tornou-se um arquétipo para os nossos emboladores de coco. O talento é o mesmo. Os caminhos da História é que são diferentes.




terça-feira, 3 de maio de 2016

4110) Fala, Gabí (3.5.2016)



(Gabí e Kátia)

Tem morrido gente que não morrerá nunca. Neste fim de semana foi meu mestre Gabí, Gabimar, irmão de Ogírio Cavalcanti, os dois comandando musicalmente um dos conjuntos de baile mais sólidos e mais longevos do Nordeste. O “Conjunto de Ogírio” tocava qualquer música nova que fosse aparecendo, tocava nas grandes festas, caía em turnê nos meses de festejos. De bailes de debutantes a tertúlias, de manhã-de-sol a jantar-dançante, com guitarras, vocais, sopros, percussão e o teclado de Gabí.

Gabí era instrumentista, compunha, arranjava, tinha curiosidade pela música como um enxadrista tem pelo xadrez. Ele era cego, e Ogírio, no tempo em que os conheci, também já tinha a vista prejudicada. O ouvido de Gabí era uma coisa que espantava a todos nós, violonistas com menos de vinte anos, que íamos pedir-lhe que “tirasse as músicas” pra gente. Gabí botava o disco, pegava o violão, e quando o tom não estava já igualado, ao invés de mexer nas tarraxas ele tinha um mecanismo que ralentava ou acelerava o picape; ele afinava o elepê pelo violão.

Nossa banda era Os Sebomatos, e os dois irmãos, Ogírio principalmente, nos chamavam mangando “Os Sabonetes”. Gabí, inclusive, tocou na banda antes de mim. Na primeira vez em que eu vi os Sebomatos foi antes de uma sessão dos Beatles no Capitólio. Eram Sérgio, Bolívar e Marcelo tocando e cantando, e Gabí acompanhando no teclado. (deveriam ser então Os Sebomagas, para os mais puristas, depois que ele substituiu Toninho, e Sebomabras depois que eu entrei). Não deve ter muitos cantores em Campina Grande que não foram acompanhados por ele num estúdio ou num palco.

Uma vez, durante uma tarde, ela passou quase todas as músicas do Sgt. Pepper’s para a gente. Como ninguém sabia notação nem cifra, a gente se valia da memória visual e da lógica interna da música para lembrar depois os acordes, quando chegava em casa e podia ficar praticando. Era difícil às vezes aprender os acordes dele, porque ele tocando assim descontraidamente fazia com a mão esquerda apenas as notas que ia tocar, não o acorde inteiro, mas aí se lembrava que estava demonstrando para a gente e formava os acordes corretos, chamando a atenção para as passagens.

Anos depois Ogírio me contratou para ensinar o trumpetista Crisaldo, o grande “Galinha”, a cantar em inglês músicas como “25 or 6 to 4” do Chicago Transit Authority. Minha tarefa era tirar as letras, escrever uma versão fonética e passar com ele, o que era sempre uma grande gréia. Lembro da casa deles quase em frente à Catedral, a sala espaçosa sempre com algum instrumento. Gabi estava em todos os palcos. Uma vez, no Encontro da Nova Consciência, fui vê-lo no camarim antes de um show, cheguei perto: “Fala, Gabi.” Ele reconheceu a voz. Fazia uns dez anos que a gente não se encontrava. Eu me admirava às vezes que ele conhecesse a voz de todo mundo e ele dizia algo como “quando a gente reconhece ajuda bastante.”

Eu via ele e Ogírio os dois mais ou menos como bluesmen americanos, que naquela época eu ainda tinha escutado pouco. Gabí tinha algo de Ray Charles, mas acho que muitas vezes tinha que ser um George Martin. A mulher de Gabí, Kátia, dividia com ele palco, discos, arranjos, gravações com artistas de todo gênero musical. O piano dele e a voz dela, imagino, estão espalhados pelo trabalho de muita gente. 

Existe uma história informal das bandas-de-rock e conjuntos-de-baile de Campina Grande, e uma boa parte dela está no saite “Ritmo Melodia” (http://www.ritmomelodia.mus.br/), ao qual muita gente, inclusive eu, já deu depoimento sobre as bandas de sua época. As bandas de jovens roqueiros estavam destinadas a serem desfeitas dali a alguns vestibulares. Todo mundo ia largando, ia estudar, e as bandas sumiam. O conjunto de Ogírio era um projeto profissional a longo prazo, um esteio do circuito musical da região, formou gerações de músicos, era algo com a resistência temporal e a solidez de uma Orquestra Tabajara. 

O tempo passa, o tempo voa, eu duvido que ainda seja capaz de lembrar do dedilhado de “Sun King” nem do solo de “While my guitar gently weeps” (Abbey Road e o Álbum Branco foram-lhe arrancados aos poucos). Acho que quem é músico de verdade não esquece essas coisas. As pessoas para quem a música é a coisa mais importante, e ao mesmo tempo a coisa que mais lhes dá prazer e que elas conhecem melhor, adquirem uma certa nobreza de príncípios. Existe em alguns verdadeiros músicos uma percepção das harmonias e desarmonias que existem no mundo. Artes, crafts, habilidades podem criar uma solidariedade de espírito entre as pessoas, mesmo que sejam de diferentes credos ou persuasões. Um bom músico é alguém que percebe, transcria e reproduz os vais e vens da vida, as ondas, as ascensões e as quedas, a dinâmica da contenção e do estouro, as delicadezas acústicas e o ribombo high-tech. A música pode nos provocar as mais massacrantes emoções, e pode também nos deixar em paz com alguma coisa, sendo paz não importa nem com quê.

O saite Retalhos Históricos de Campina Grande tem neste endereço um material de áudio e fotos sobre a infância de Gabí: (http://cgretalhos.blogspot.com.br/2016/05/memoria-audio-fotografica-gabimar.html#.VyhNbdIrLMo).