“Por muito tempo se prolongou em mim o desequilíbrio entre o mundo exterior e os meus olhos, que não se acomodavam ao colorido das paisagens estendidas na minha frente. (“O Pirotécnico Zacarias”, em O Pirotécnico Zacarias, Ed. Ática, 1986.)
Na próxima quarta-feira, dia 1 de junho, completam-se 100
anos do nascimento do grande Murilo Rubião (1916-1991). Vivo comendo mosca com
essa história de datas comemorativas, e confesso que só me liguei nesta graças
a um artigo-homenagem de Humberto Werneck no Estado de São Paulo no dia 24 passado (aqui: http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,o-eterno-reescrevedor,10000052999).
(Macaco velho, Werneck publicou sua homenagem uma semana antes da data, ajudando
com isso a pautar o teclado de focas desligados como eu.)
Em algumas décadas de pesquisa sobre literatura
fantástica no Brasil, me acostumei a muitos clichês. Um deles é o de quando
alguém perguntar “quem são os principais autores de literatura fantástica no
Brasil” responder “José J. Veiga e Murilo Rubião”. Quando houve o chamado boom
do Realismo Mágico latino-americano nos anos 1970, começou uma procura febril
pelo similar nacional. Entre os autores publicados pelas editoras de prestígio,
e com existência reconhecida junto aos críticos de prestígio, só havia estes
dois. Viraram parâmetro, marco geodésico. (Havia outros, claro – mas aí já é
outra história.)
“Sou um sujeito que acredita no que está além da rotina. Nunca me espanto com o sobrenatural, com o mágico. E isso tudo aliado a uma sedução profunda pelo sonho, pela atmosfera onírica das coisas. Quem não acredita no mistério não faz literatura fantástica.” (entrevista em O Pirotécnico Zacarias, Ed. Ática, 1986)
Murilo teve algumas ocupações passageiras mas basicamente
foi funcionário público a vida toda. Pertencia a uma época e uma classe social
em que tornar-se funcionário público é algo tão natural quanto deixar crescer
um bigode. Seus contos foram criados à sombra desta nobre ocupação, e o
adjetivo não é irônico. Quando era Diretor
de Publicações e Divulgação da Imprensa Oficial, ele foi o fundador, em
1966, do Suplemento Literário Minas
Gerais, um dos melhores que já houve em nosso país (e que continua sendo
editado, pelo que sei), responsável por um imenso avanço da prosa, da poesia e
da ilustração mineira.
Os contos iam sendo criados devagarinho, nas possíveis
horas vagas. Murilo produziu pouco. Suas coletâneas de contos misturam-se umas
às outras, com os mesmos contos sendo repetidos (às vezes em versões
modificadas, sem que se saiba ao certo qual a mais recente, ou a definitiva).
Diz Humberto Werneck:
Murilo menos escreveu do que reescreveu. Quem mais levaria 26 anos ruminando as poucas páginas de “O Convidado”? O verbo era “murilar”, dizia eu da obsessão desse burilador impenitente. Em 75 anos de vida, publicou 51 histórias, das quais descartou 18. Toda a sua obra consiste, pois, em 33 contos, magro volume no entanto capaz de parar de pé com mais aprumo do que muita obra caudalosa. (Estado de São Paulo, 24.5.2016)
Nunca foi um grande divulgador de si próprio. Seu
primeiro livro passou quase em branco: O
Ex-Mágico, publicado em 1947 (por influência de Marques Rebelo) pela
Editora Universal, que entrou assim para a História como lançadora de pelo
menos dois marcos da literatura brasileira. (O outro tinha sido um ano antes: Sagarana, de Guimarães Rosa). Seu
sucesso popular, que o transformou num nome obrigatório em antologias,
vestibulares e verbetes, veio apenas em 1974, quando Jiro Takahashi lançou pela
Editora Ática O Pirotécnico Zacarias,
com capa e ilustrações de Elifas Andreato, e que não demorou a bater os 100 mil
exemplares vendidos.
O pessoal compara Murilo Rubião a Kafka, mas ele vai bem
além disso. Há contos que têm sem dúvida o que Borges chamava “a idiossincrasia
de Kafka” (a sujeição a tarefas infinitas e inexplicáveis), que nos faz ver por
toda parte precursores e seguidores do escritor tcheco. Rubião é kafkeano em
contos como “O Edifício”, onde descreve um prédio gigantesco, administrado por
uma Fundação misteriosa, do qual se dizia que mergulharia no caos quando
ultrapassasse o octingentésimo andar. Mas no mesmo conto o segmento “O Baile”,
que descreve as comemorações violentas dessa data, me remeteu de imediato ao
futurismo brutalista de J. G. Ballard em High
Rise (1975), sobre um condomínio da classe alta londrina que reverte à
barbárie.
O conto “Os Dragões” mantém uma ambiguidade constante, pois
os dragões que aparecem de repente numa cidade (num efeito narrativo semelhante
ao de alguns romances de José J. Veiga) nunca são fisicamente descritos, e às
vezes são tratados na história como animais (“serviu de pretexto uma sugestão
do aproveitamento dos dragões na tração de veículos”), ora como jovens rebeldes
(“desastradamente simpático e malicioso, alvoroçava-se todo à presença de
saias. Por causa delas, e principalmente por uma vagabundagem inata, fugia às
aulas”), ora como índios semi-aculturados (“tinham contraído moléstias
desconhecidas e, em consequência, diversos vieram a falecer... fugiam à noite
do casarão e iam se embriagar no botequim... Para satisfazerem o vício,
viram-se forçados a recorrer a pequenos furtos”).
O autor tinha o hábito de afixar pequenas citações da
Bíblia como epígrafes aos seus contos; a presença dessas citações parece
revestir de um certo verniz eclesiástico sua visão do mundo, mas se lermos os
contos e ignorarmos as epígrafes o absurdo sem centro avulta em cada um deles. Terá
o mistério do mundo uma resposta espiritual, ou não passa de um granizo de
estilhaços sem sentido, sem Idéia que os unifique e resolva? Murilo dizia:
“Jamais consegui me livrar do problema da eternidade, chegando mesmo, na infância, a ser religioso e um tanto místico. O ateísmo, mais tarde substituído pelo agnosticismo, provocou em mim uma ruptura violenta.” (entrevista em O Pirotécnico Zacarias, Ed. Ática, 1986)
Alguns dos seus melhores contos produzem a sensação do
estranho ao descrever algum tipo de processo fantástico fora de controle,
aleatório, imprevisível. São assim as metamorfoses de “Teleco, o coelhinho”,
criaturinha falante e cheia de vontades capaz de virar uma pulga, um bode, um
porco do mato ou um canguru chamado Antonio Barbosa. São assim as mágicas
surpreendentes do seu conto talvez mais emblemático, “O ex-mágico da Taberna
Minhota”, cujo protagonista tira dos lugares mais inesperados os objetos ou
seres mais surpreendentes.
“A platéia, em geral, me recebia com frieza, talvez por não me exibir de casaca e cartola. Mas quando, sem querer, começava a extrair do chapéu coelhos, cobras, lagartos, os assistentes vibravam. Sobretudo no último número em que eu fazia surgir, por entre os dedos, um jacaré. Em seguida, comprimindo o animal pelas extremidades, transformava-o numa sanfona. E encerrava o espetáculo tocando o Hino Nacional da Cochinchina. (em O Pirotécnico Zacarias, Ed. Ática, 1986)
Atribui-se a Picasso a frase “on ne cherche pas, on
trouve” (“a gente não procura; a gente acha”). O mágico de Rubião, ao fazer
pequenos gestos casuais, achava em si mesmo prodígios, sustos, maravilhas.
Torna-se “ex” depois que se emprega numa Secretaria de Estado (“1930, ano
amargo... 1931 entrou triste”), se burocratiza, vira um Clark Kent sem
super-poderes.
“Hoje, sem os antigos e miraculosos dons de mago, não consigo abandonar a pior das ocupações humanas. Falta-me o amor da companheira de trabalho, a presença dos amigos, o que me obriga a andar por lugares solitários. Sou visto muitas vezes procurando retirar com os dedos, do interior da roupa, qualquer coisa que ninguém enxerga.” (idem)
Com uma obra relativamente pequena, ele criou na
literatura brasileira um nicho onde não imagino que caiba muito mais gente. Sua obra
tem um pendor para os mistérios inexplicados, os prodígios assimilados pela
banalidade cotidiana, um olhar compassivo sobre as pequenas fraquezas das
pessoas comuns.