domingo, 31 de agosto de 2014
3592) A hipótese Tunguska (31.8.2014)
Foi um risco incendiário e chispante, que cruzou o céu noturno, explodiu em estilhaços de fagulhas amarelo-rubras no meio de uma floresta ou tundra nevada, e desde esse dia o mundo não foi mais o mesmo. Ninguém percebeu a princípio, porque a escala da propagação foi orçada por volta de um século. Pois bem. Já mais de um século se passou.
Até então o mundo era determinista, era o que um cientista chamaria de mecânico e newtoniano. A explosão que teve ali não era uma bomba de nêutrons, que mata os seres vivos e deixa a propriedade intacta, nem uma bomba radioativa, que fulmina venenosamente o corpo vivo. Era uma bomba probabilística. Ia direto alterar o menu do possível. O mundo tornou-se probabilisticamente instável. Em termos macrocósmicos um nerd poderia dizer que era um patch para fazer um upgrade de dificuldade no universo.
A causalidade de tudo, que era só dividida por dois, em infinitos múltiplos pares, se viu estilhaçar em dízimas periódicas irresolvíveis, com mais dígitos do que existem quarks no universo físico. O mundo tornou-se um produto de causa-e-efeito não-simétrico, sabotando a simplicidade das tabelas periódicas. O software básico do mundo tornou-se errático, cheio de exceções, de numeradores primos, de denominadores infinitos.
O choque da semicolisão entre o artefato e a Terra foi se alastrando anos afora. Onze anos depois, Charles Fort publicava seu primeiro volume de anomalias, e Robert L. Ripley começava a colecionar o estranho, o bizarro, o inesperado. O que antes eram franjas da mais remota improbabilidade pareciam de repente tomar conta do mundo. Metaforicamente falando, as telhas estavam subindo sozinhas para o teto. Tudo que era improvável mas não cientificamente impossível começou a ser um lugar comum. Mundo mais instável.
A parafernália astronômica e cosmológica é para distrair os humanos da verdadeira natureza do Universo e da Terra (com os dados da Terra, a situação real). O Universo não está em expansão, e sim em contração. Como uma esfera cheia de gás, estreitando-se, comprimindo o frevo de movimentos brownianos das moléculas que a habitam. O polarizador de probabilidades está zunindo a mil por hora. Pós-Tunguska, o mundo ficou mais acelerado, o tempo mais rápido, os anos mais curtos. O auge do surrealismo, o surgimento da mecânica quântica, de Tesla, de James Joyce, uma procissão de sintomas, filosóficos ou estéticos, registrando esse mundo de probabilidades que se estilhaçam em infinitos. Ficou como uma HQ de Moebius. Nada é tão comum que não possa ficar extraordinário, e nada é tão improvável que não haja um fiapo de história onde ele faça sentido.
sábado, 30 de agosto de 2014
3591) As listas do escritor (30.8.2014)
(ilustração: Hamish Hamilton websaite)
Já me aconteceu mais de uma vez. Tenho uma boa idéia para uma história, sento no teclado e começo a escrever. A certa altura surge uma frase tipo: “Depois de um dia inteiro de cavalgada, ao entardecer chegaram ao Castelo de...”
E aí pronto. Como vai
ser o nome do castelo? Tem que ser um
nome imponente, significativo... Começo a pensar, vou na janela, vou fazer um
café, vou folhear livros de História Antiga, e o conto vai pro espaço, porque
encalhei naquele ponto e estou ali até hoje.
Muitos escritores, para evitar essas indecisões, fazem listas. Listas de nomes de personagens, divididas por idade, classe social, país, época... Listas de nomes de lugares: cidades, castelos, casas comerciais, tudo que tiver importância na história e tenha que ser mencionado mais cedo ou mais tarde. E assim por diante.
Muitos escritores, para evitar essas indecisões, fazem listas. Listas de nomes de personagens, divididas por idade, classe social, país, época... Listas de nomes de lugares: cidades, castelos, casas comerciais, tudo que tiver importância na história e tenha que ser mencionado mais cedo ou mais tarde. E assim por diante.
Fazer
essas listas ajuda o autor a não perder o pique quando precisar citar um grupo
de pessoas, por exemplo, mesmo que depois resolva que o personagem “Juliano”
tem mais cara de se chamar “Tarcísio”. O importante é não quebrar o embalo
narrativo só porque precisa matutar num detalhe.
Raymond Chandler fazia listas de tudo, e muitas estão reproduzidas em The Notebooks of Raymond Chandler (Ecco Press, 1976). Listas de títulos de histórias, de termos de gíria, de “wisecracks” (aquelas frases irônicas e demolidoras que ele usava nos diálogos), etc.
Raymond Chandler fazia listas de tudo, e muitas estão reproduzidas em The Notebooks of Raymond Chandler (Ecco Press, 1976). Listas de títulos de histórias, de termos de gíria, de “wisecracks” (aquelas frases irônicas e demolidoras que ele usava nos diálogos), etc.
Muitas acabam não sendo usadas, mas não há
problema. O importante é que o autor fica com bala na agulha, para o momento em
que precisar.
Damon Knight, em seu precioso manual Creating Short Fiction (St. Martins’s Press, 1997) sugere que o autor anote nomes próprios interessantes sempre que encontrar um, e vá montando uma lista variada. Se um personagem é estrangeiro, diz ele, consulte numa enciclopédia o verbete sobre aquele país, mas não use os nomes dos personagens famosos e históricos. Melhor recorrer aos nomes das pessoas que prepararam o verbete, e que vêm no final, na bibliografia. (Um leitor brasileiro acharia estranho uma história norte-americana ambientada no Brasil onde os personagens, gente comum, se chamassem Kubitschek, Collor, Sarney, Roussef...)
Em último caso (sugere Knight) se um nome qualquer não lhe ocorrer na hora, e os nomes da lista não servirem, vale a pena guardar o lugar com um sinal gráfico qualquer e seguir em frente. Ele sugere barras inclinadas, //. Nos meus textos eu prefiro usar alguma coisa entre colchetes: [.....].
Damon Knight, em seu precioso manual Creating Short Fiction (St. Martins’s Press, 1997) sugere que o autor anote nomes próprios interessantes sempre que encontrar um, e vá montando uma lista variada. Se um personagem é estrangeiro, diz ele, consulte numa enciclopédia o verbete sobre aquele país, mas não use os nomes dos personagens famosos e históricos. Melhor recorrer aos nomes das pessoas que prepararam o verbete, e que vêm no final, na bibliografia. (Um leitor brasileiro acharia estranho uma história norte-americana ambientada no Brasil onde os personagens, gente comum, se chamassem Kubitschek, Collor, Sarney, Roussef...)
Em último caso (sugere Knight) se um nome qualquer não lhe ocorrer na hora, e os nomes da lista não servirem, vale a pena guardar o lugar com um sinal gráfico qualquer e seguir em frente. Ele sugere barras inclinadas, //. Nos meus textos eu prefiro usar alguma coisa entre colchetes: [.....].
“Nove vezes
em dez,” diz ele, “um detalhe assim, que pode imobilizar você durante meia hora
diante do teclado, será resolvido em um ou dois minutos na próxima vez que você
estiver revisando o texto”.
sexta-feira, 29 de agosto de 2014
3590) Meu pequeno crime (29.8.2014)
Eu tinha pegado um daqueles voos que saem da Paraíba de madrugada e aterrissam no Galeão ao amanhecer, um voo cansativo, e a coluna me incomodando. Desci apressado, cruzei o saguão e entrei na fila do táxi, na calçada do desembarque. Tinha umas oito ou dez pessoas na minha frente. Os carros vinham chegando de um em um, enchendo e partindo. Quase no começo da fila tinha um gringo. Um cara de 30-e-poucos anos, rosto sério de gringo, roupas desajeitadas de gringo, duas malas enormes e algumas sacolas. Quando o táxi foi se aproximando, ele moveu a posição das sacolas e eu vi alguma coisa cair no chão.
Era um pacotezinho de plástico com algumas coisas dentro, parecia um saquinho com cartões, um ou outro documento, a ponta de plástico enrolada e dada um nó. Quando aquilo caiu no chão o cara estava preocupado com o equilíbrio das sacolas em cima da mala enorme (nisso o táxi dele já vinha encostando no meio-fio), e não viu. Esperei que as pessoas atrás dele, mais próximas, mostrassem a queda do objeto. Ninguém se mexeu. Eu podia ter mostrado. Nem precisaria conversar, arriscar meu inglês. Bastaria fazer “Ei!” bem alto, erguendo o braço, e, quando ele olhasse, apontar o pacotinho no chão.
Não o fiz. Fiquei somente olhando enquanto ele e o motorista botavam a bagagem na mala do carro, ele se acomodava com suas sacolas no banco traseiro e o táxi ia embora. O pacotinho ficou no chão. Ninguém viu. As pessoas seguintes passaram as rodinhas de suas malas por cima dele. Quando chegou minha vez, embarquei também e fui embora.
Por que não ajudei o cara? Não me custava nada. “Ei!” – e apontar o chão. Podia não ser nada, podia ser algum comprimido para enjoo, sem maior valor. E podia ser um documento, um cartão, algo essencial quando se está em terra estranha. Não avisei porque fiquei esperando que as pessoas mais próximas o fizessem. E depois não o fiz porque estava cansado, impaciente, doido pra meu táxi chegar logo. O cara foi embora com o problema dele, e eu vim embora com os meus.
A pior coisa, quando a gente faz uma desatenção assim, é que o mundo não se acaba. E você começa a achar que já que o mundo não se acabou, nunca mais vai se acabar. E aí tome a fazer o que dá na telha; tudo é permitido. Era bom que, cada vez que a gente praticasse uma maldade omissa ou forçosa sobre alguém, pelo menos alguma pequena catástrofe ocorresse em seguida, para se saber que aquilo ali incomodava o Universo, era uma desarmonia, desequilibrava tudo em volta e requeria compensação. Todo pequeno gesto conta. Toda pequena gentileza casual conta. Toda chance que fez vapt e depois fez vupt, os quatrocentos golpes de cada dia. Tudo conta.
quinta-feira, 28 de agosto de 2014
3589) A Vida e os Tempos de Cabrocha Divã (28.8.2014)
Cap. 1 – De como Cabrocha Divã tornou-se logo aos 16 anos a bailarina mais notada no corpo de dança do Colégio Paulo VI.
Cap. 2 – De todos os tortuosos caminhos que
Cabrocha Divã teve que trilhar até poder ocultar o nome horroroso de Anilstina
Ferreira da Silva, e tornar-se uma criatura feita de fogo e marketing, uma
força da Natureza.
Cap. 3 – De como sucessivos empresários e sucessivos
ininteligíveis contratos ensinaram a Cabrocha Divã a obediência à letra-da-lei,
fazer sempre o que se comprometera a fazer, para inicial susto seu, mas um
certo alívio por ter finalmente confirmado serem aquelas as regras do
show-business, e dando graças aos céus pelo fato de os testemunhos de
boa-vontade que lhe eram solicitados eram tão de acordo com sua própria índole
que ela bem de gosto pagaria, se lhe fosse exigido, e se tivesse com quê, para
adquirir todas aquelas experiências.
Cap. 4 – De como ela acabou se organizando, graças a Nossa
Senhora da Conceição, aos comprimidos de Maracugina que se lhe tornaram
indispensáveis, e a Fernando Adolfo, um rapaz que entendia de contabilidade e
era um doce de pessoa.
Cap. 5 – De como ela, cada vez mais dependente das
prestidigitações contábeis de Fernando Adolfo, hesitava entre casar com ele e
mandar matá-lo por um pistoleiro.
Cap. 6 – De como ela entrevistou meia dúzia
de pistoleiros tentando achar um em que pudesse confiar, e vejam só o que é o
destino, aparece-lhe pela frente Zé de Crisaldo, assassino regulamentar e frio,
pelo qual ela se apaixona.
Cap. 8 – De como um dia uma bala chapa-branca cruza o cérebro de Zé de Crisaldo e a liberta, ficando ela boquiaberta e devastada diante da extensão do que tinha feito.
Cap. 9 – De como é testemunho do amadurecimento de nossas instituições penais o fato de que Cabrocha Divã foi rapidamente inocentada daquela enfieira de crimes, que na verdade não tinha cometido, meramente inspirado, e conseguiu bons contratos no Casino do Leblon, namorou um vice-presidenciável, ganhou memes impublicáveis, brilhou nos principais talk-shows daquele semestre.
Cap. 10 – De como no auge de sua forma física, aos 28 anos, Cabrocha Divã sucumbiu a uma psicose irreprimível por chocolates, que deflataram sua auto-estima e inflacionaram sua forma física, transformaram-na num espectro regurgitante de si mesma, a tal ponto que ela jogou a toalha e realizou seu verdadeiro sonho, que não lembro mais qual era.
quarta-feira, 27 de agosto de 2014
3588) A gravidade e o poder (27.8.2014)
(foto: Jacob Sutton)
O Poder político e econômico exerce uma espécie de atração
gravitacional sobre as pessoas. Umas parecem mais sensíveis a essa atração do
que outras. Onde quer que estejam, aquilo começa a puxá-las irresistivelmente
para cima, na direção dos postos de comando. Uma força irracional,
inconsciente, que em muitos momentos chega a parecer involuntária. A pessoa
parece pedindo socorro, veladamente. Ela não quer o Poder, mas é como se
estivesse sendo empurrada para ele (que é na verdade o Abismo) por tudo que a
cerca. Percebe-se isto naquele velho discurso com que alguns políticos anunciam
uma candidatura: “Eu não queria ser candidato, porque não me sinto à altura de
uma missão tão espinhosa, de um compromisso que exige alguém mais preparado do
que eu, mas é uma exigência do meu partido, dos meus eleitores, dos meus
companheiros de luta, e não possso me furtar a esse chamamento, não posso fugir
a esse grande desafio...” Parece
jogador de futebol recitando aquela fala sobre objetivo e resultado.
No romance Os Portais de Anúbis, de Tim Powers, há um
feiticeiro magicamente ligado à Lua por uma série de encantamentos e rituais.
Isto faz com que ele seja fisicamente atraído para ela, e precise andar
amarrado a um peso qualquer. Se saísse
solto ao ar livre, a atração o faria subir pelo ar rumo à estratosfera, e de lá
“cair para cima” na direção da Lua. Tem
gente que é assim: parece estar sendo atraída pelo Poder, e sobe rumo a ele,
esperneando, pedindo licença, pedindo desculpa, dizendo que não quer, dizendo:
“É algo mais forte do que eu.” E é mesmo. Não é uma virtude que essas pessoas
têm. É antes uma fraqueza. O Poder
precisa de pessoas como elas, pessoas que não têm forças para resistir a ele,
que não têm um peso a que possam se amarrar para escapar à sua atração.
O Poder precisa de pessoas de olhar fixo e vidrado, capazes
de sacrificar sua vida pessoal e emocional, seu tempo como pessoa, seu prazer,
seu lazer, seu crescimento íntimo, para servir-lhe 24 horas por dia. “O Poder é
um sacrifício, é um sacerdócio,” suspiram os poderosos, e é mesmo. Um
sacerdócio vampírico que suga algumas almas deixando-as com um vazio central
que alguns tentam preencher com fortunas promissórias, outros com drogas e
orgias, outros com a paranóia exaltatória de que são mais iguais do que os
iguais. Surgem os rituais do poder, as coroas, os tronos, os Versalhes, os
jatinhos, as Swats de assessores. Para que serve isso tudo? Para dar àquela
pessoa a ilusão de que tem poder. Essa pessoa é como aquele parafuso que acha
que é ele quem está girando aquela chave de fenda e que está entrando por
vontade própria naquela rosca.
terça-feira, 26 de agosto de 2014
3587) Cortázar 100 Anos (26.8.2014)
(foto: Sara Facio)
“Você sabia que os índios chirkin, à força de exigirem tesouras aos missionários, possuem tais coleções que, com relação ao seu número, são o grupo humano que mais tesouras possui?” (“O Jogo da Amarelinha”). “Meu jeito malicioso de compreender o mundo me ajudava a rir baixinho” (“Reunião”). “Há uma coisa que se chama tempo, e é como um bicho que anda e anda” (“O Jogo da Amarelinha”). “Um teatro não é mais do que um pacto com o absurdo, seu exercício eficaz e luxuoso” (“Instruções a John Howell). “Compreendíamos cada vez menos o que é um peixe; e por não compreender, íamos ficando cada vez mais próximos deles, que não se compreendem” (“O Jogo da Amarelinha”).
“As passagens e as galerias sempre foram minha pátria secreta” (“O outro céu”). “Doadora do infinito, eu não sei tomar, perdoa-me. Tu pareces oferecer-me uma maçã e eu deixei os dentes sobre a mesa de cabeceira” (“O Jogo da Amarelinha”). “Podem acontecer coisas irrisórias ou terríveis, podemos ter acesso a ciclos que começam na porta de um café e desembocam numa forca na praça central de Bagdá” (“Prosa do Observatório). “Imaginar um repertório de insignificâncias, o enorme trabalho de investigá-las e conhecê-las a fundo” (“O Jogo da Amarelinha”). “Amarrar-se no mastro por medo da música” (“62: modelo para armar”). “Nenhuma namorada minha se suicidou até agora, embora o meu orgulho sangre quando revelo isto” (“O Jogo da Amarelinha”).
“Conheci um cavalheiro que jamais ouvia discos de música clássica porque, segundo ele, o chiado da agulha o impedia de fruir a obra em sua perfeição total; baseado neste exigente critério, era um tal de passar o dia escutando tango e bolero que dava medo” (“Para chegar a Lezama Lima”). “Um cronópio pequenino procurava a chave da porta da rua na mesa de cabeceira, a mesa de cabeceira no quarto de dormir, o quarto de dormir na casa, a casa na rua. Aqui o cronópio se detinha, porque para sair à rua precisava da chave da porta” (“Histórias de cronópios e de famas”). “Ah, deixa-me entrar, deixa-me ver algum dia como veem teus olhos” (“O Jogo da Amarelinha”).
“Tudo em nossa América é o começo do Cão Andaluz, velho, poucas vezes conseguimos olhar alguma coisa de frente sem que a navalha ou o punhal venham furar nossos olhos” (“Fantomas contra os Vampiros Multinacionais”). “É maravilhoso que o conteúdo de um tinteiro possa se transformar em ‘O Mundo Como Vontade e Representação’” (“Os Prêmios”). “A porteira, que gostava muito deles, disse-lhes que ambos tinham cara de desenterrados, de homens do espaço, e foi desta maneira que descobriram que Mme. Bobet lia science-fiction, o que lhes pareceu sensacional” (“O Jogo da Amarelinha”).
domingo, 24 de agosto de 2014
3586) "Missa do Galo" (24.8.2014)
(ilustração: Renato Alarcão)
Já tive muita professora de Português chata, mas nenhuma
mais chata do que uma que tive no Ensino Médio há muitos anos, contando eu
dezessete, ela trinta. Na primeira semana, me mandou ler e comentar uma
história chata sobre uma noite de Natal. Eu morria de medo de ser reprovado, e
faltei no dia. Foi no Educandário PhD, o famoso “Ou Paga ou Dá”. Eu era também do
grupo de teatro, e naquele tempo teatro era pretexto para alguém comer alguém,
como aliás sempre foi.
É verdade que não era tão pentelha feito o resto. Era meio
tristinha, nem bonita nem feia, mas receptiva. O caba tendo quinze anos a mais
estava tudo resolvido. O ano foi se passando, eu fiquei em segunda época ou
recuperação (sei lá como se falava naquele tempo, não sei mais nem em que
década foi), e ela fez comigo a decisiva prova oral.
Eu tinha lido a história, que era sem pé nem cabeça, não
acontecia nada. Era diferente dos “Três Mosqueteiros”, que era grande, tinha
erro de continuidade até no título, mas era mais tchans. Dia da prova ela
mandou abrir o livro com a história. Sentou na cadeira em frente. Perguntei se
não estava chateada por eu ser o único que ficou para aquela prova, atrasando
as férias dela. Ela disse que tudo bem. Perguntou se eu não estava chateado por
estar fazendo prova, etc., e eu respondi o mesmo. Ela estava com olhos de quem
não tinha dormido, a noite inteira pensando.
Me pediu pra dizer minhas leituras, falei minhas agaquê,
meus mangá. Ela me vigiando, me
espionando pelo meio das pestanas... A certa altura estranhou algumas coisas
que eu disse que tinha lido. Me arrependi no ato, porque estava gostando
daquilo, era uma prova diferente. Ela parecia estar indo e voltando, andou pela
sala, valorizou a saia e os saltos que tinha escolhido. Devia achar muito importante poder controlar o olhar do
cara, ter o poder de reprovar o cara... É sempre assim.
sábado, 23 de agosto de 2014
3585) Gírias (23.8.2014)
Uma gíria é um apelido numa coisa que já tinha nome.
Linguagem para uso interno, que se espalha por ouvidos e bocas de
desconhecidos, chega ao rádio e à TV, vai parar no dicionário. Acho que também
toda família tem gírias internas, tem palavras inventadas ou redefinidas,
termos meio absurdos que só fazem sentido para as pessoas que moram naquela
casa.
Um dos termos mais curiosos que já vi foi, num estúdio de
gravação, um bando de músicos discutindo um arranjo e usando o termo
“carrapateira”, onomatopéia pura, para descrever um riff instrumental.
Muitas gírias musicais têm essa intenção de
onomatopéia, um cascatear de sons. O famoso samba-enredo do Império Serrano,
“Bumbum Paticumbum Prugurundum”, surgiu de uma tentativa de descrever para
alguém como era uma das batidas básicas do samba.
No meio musical circulou durante muito tempo o termo “chacundum”
para designar certo tipo de música dançante e padronizada.
Músicos chamam de “gig” (pronuncia-se GUÍ-gue) qualquer
trabalho, tarefa, contrato, viagem. De
início pensei que era alusão às viagens aéreas, pois a sigla do aeroporto do
Galeão, no Rio, é “GIG”. Depois
descobri que já era usada entre músicos de jazz, quando o Galeão nem existia.
“Terça-feira eu tenho uma gig em Belo Horizonte mas na quarta de tarde estou de
volta.”
Para a turma de teatro, branco é a amnésia súbita que se
sente no palco, diante do público, quando nos foge da memória um texto mil
vezes repetido; bife é um trecho longo a ser dito pelo ator do começo ao fim,
um parágrafo que ocupa grande espaço
semirretangular na página; merda é uma exclamação de “boa sorte!” antes de uma
apresentação qualquer. (Em inglês, atores dizem antes da cortina abrir: “break
a leg, quebrem a perna!”. Uma maneira de exorcizar o azar dizendo o contrário
do que se pretende.)
A gíria de um grupo é um pouco como aqueles segredos
gastronômicos a que só uns poucos têm acesso. Quem vem de fora diz: “não quero
jantar nos lugares para turistas, quero comer onde vocês comem”.
Todo grupo tem
sua linguagem das-internas só conhecida de quem faz parte. O grupo se expande,
sua ação se multiplica, começam a crescer a bolha do conhecimento indireto à
sua volta: histórias, relatos, pistas de seus hábitos e atitudes. O grupo fica
conhecido, começa a ser admirado, cobiçado, endeusado, mal entendido.
Quem vem
de fora do grupo apressa-se a usar, forçoso, as gírias do grupo para mostrar
que está enturmado, sabe das coisas. Certos termos de gíria funcionam como um
“xibolete”, teste de familiaridade com a língua no qual uns passam e outros
não. A ansiedade em se fazer “de casa” indica quem não é bem dela.
sexta-feira, 22 de agosto de 2014
3584) Escravos nas paredes (22.8.2014)
Durante um fim de semana, um grupo de pessoas se reúne numa casa de campo para se divertir, socializar, prevaricar, lavar roupa suja; uma delas é necessariamente assassinada. É a célula narrativa básica do que se chama “country-house murders”, um subgênero do romance policial que Agatha Christie muito contribuiu para aperfeiçoar. Outro subgênero é o dos “locked-room murders”, os crimes em quartos trancados por dentro, onde um assassino não poderia entrar, ou de onde não poderia sair, sem ser visto. O crime de quarto fechado é um caso mais específico dos “crimes impossíveis ou “desaparecimentos impossíveis”, um rótulo mais abrangente. Seu executor mais brilhante e seu hábil legislador é John Dickson Carr.
O romance de Marcelo Ferroni, Das paredes, meu amor, os
escravos nos contemplam (Cia. das Letras, 2014) reúne essas duas fórmulas
britânico-americanas e o resultado é curiosamente brasileiro. A família rica e
decadente, dona da fazenda onde a história acontece ao longo de uma noite de
tempestade, tem cadeira cativa em nossa literatura, em nosso cinema, está
presente por toda parte deste país, de sul a norte. É uma família de memória
nebulosa e história construída a golpes de certidões e de relatos. A banalidade
dos seus diálogos, dos seus assuntos, é cruelmente verossímil. Todos são seguros de si, da inteireza do seu
mundo, todos são rápidos como um reptiliano no instante de reagir ao aguilhão
alheio.
Quase todo o livro transcorre em um pouco mais de vinte e
quatro horas. Durante essa jornada insone noite adentro, cadáveres são
descobertos, vidas são sacrificadas, mistérios são propostos e solvidos,
máscaras caem, teorias são confrontadas. É a impiedosa noite acesa dos
culpados. O mistério policial é
colocado e resolvido com clareza, mas mais importante do que o truque do quarto
fechado é o modo gradual como o mistério vai se aclarando, por não haver um
herói detetive centralizador. Cada um explica
um detalhe e um ou outro sugere uma teoria geral para tudo.
quinta-feira, 21 de agosto de 2014
3583) 9 últimas frases (21.8.2014)
“Vocês dois me dão cobertura enquanto eu rodeio a casa e ataco a porta dos fundos.” (Bradley Coulton, 25 anos, soldado norte-americano, quarterback dos Kalamazoo Bats, para dois companheiros de batalhão que sobreviveram, durante a tomada da vila de Ancozzo, Itália, 1944.)
“Eu sabia que não dava para confiar em nenhum de vocês.”
(François Cuvillier-Dessange, 78 anos, ex-senador da República,
multimilionário, no leito do hospital, na presença dos seis filhos e de quatro
médicos perplexos que não conseguiram conter a inexplicável reação alérgica que
o vitimou de súbito, 1962.)
“Procurem meu filho. Eu tenho um filho chamado Pablo. Nasceu
em 1975, registrado em Vitória da Conquista. Não sei o nome da mãe dele, eu
conhecia ela por Babete. Digam a ele que a culpa não foi minha.” (Denilson
Lucena, 55 anos, baterista, para a camareira do hotel onde se sentiu mal de
repente, São Paulo, 2011.)
“Vamos ter calma, o barco ainda aguenta uma meia hora, já
que vocês não sabem nadar eu vou buscar socorro, é menos de dois quilômetros
daqui até a praia.” (Kim Sin-Nyeng, 31 anos, coreano de nascimento, piloto de
barco, filatelista amador, após uma explosão no motor que os deixou à deriva,
Japão, 1999.)
“Fique de olho no forno, é pra tirar o empadão daqui a dez
minutos. Vou correndo ali na praça, antes que o banco feche, vai dar quatro
horas, é só atravessar a rua.” (Paula Mesquita, 41 anos, dona de casa,
distraída como sempre, apressada como sempre, cheia de coisas para fazer como
sempre, Porto Alegre, 2005.)
“Só mais uns dois, e a gente volta para almoçar.” (Ilya
Rostov, 33 anos, capricorniano, sniper russo, acreditando pela primeira vez que
seria capaz de bater seu próprio recorde de vinte e seis inimigos derrubados
numa semana, Ucrânia, 2014.)
“Eu estava pensando se não era melhor refazer esses exames
todos, as contagens não estão batendo, e cada vez que eu venho aqui preciso me
estressar para ser atendido.” (Pavel Rotski, 55 anos, agricultor, atormentado
por um mal estar que não o deixava em paz,
e cada vez mais irritado com a lentidão e a má vontade do sistema
estatal de saúde, no qual não confiava nem um pouco, Varsóvia, 1953.)
“Que porra é essa ali na frente?...” (Grant Malloy, 31 anos,
caminhoneiro, viajando desarmado numa noite de neblina, porque achava
suficiente ter dois metros e cento e oitenta quilos, avistando um tronco
atravessado na pista, nos arredores de San Diego, Califórnia, 1987)
terça-feira, 19 de agosto de 2014
3582) Histórias absurdas (20.8.2014)
Tem Firricriz, por exemplo. Firricriz era um cão (=um diabrete), numa história que eu ouvi quando era pequeno e acho que nunca vi escrita em lugar nenhum. Ele aprontava traquinagens, era um “trickster” meio gremlin, meio saci. Às folhas tantas, todos o perseguiam e ele entrava pelo ouvido dum cara e se refugiava lá dentro. O cara doido, gritando de agonia com aquele diabrete desorganizando o juízo dele, e ninguém conseguia puxar o diabo pra fora. Aí alguém mandou a família à cozinha, trazer panelas e conchas e percussões de todos os tipos, e mandou todo mundo bater e gritar com toda força. Firricriz lá dentro espantou-se, chegou perto da orelha e perguntou o que era aquilo. Aí gritaram que era o mundo que estava se acabando e que todo mundo ia morrer. Firricriz apavorou-se, saiu do juízo do cara e assim que saiu foi preso.
Esta história, por sua vez, me lembra uma anedota meio ionesca, sobre uma mulher que estava grávida e nada de parir. Nove meses, dez, onze, já estava pra inteirar um ano e nada do menino se manifestar. O médico disse ao casal: “Só tem um jeito de obrigar ele a sair. Vamos apertar o espaço lá de dentro. Pra desalojá-lo. Vamos empurrar pra dentro da barriga da senhora essa poltrona.” Aí empurraram a poltrona do consultório pra dentro da mulher, mas o menino teimou em não sair. O médico disse: “Vamos empurrar aquele violão ali!” Empurraram o violão na mulher, e nada. Em desespero de causa, o médico disse: “Vamos enfiar uma garrafa de cana! Quero ver se ele não sai!” Fizeram, e coisa nenhuma. Aí o médico pediu arrego e disse: “Prepara a cesariana.” Abriram a mulher e o menino estava sentado na poltrona, tomando cana, tocando violão e cantando: “Daqui não saio / daqui ninguém me tira...”
A primeira história (que não é anedota) parece fazer mais sentido do que a segunda, até porque parece ter (e não tem) uma mensagem moral. A segunda não parece significar nada. Numa mesa de bar as pessoas riem, mas se lerem algo assim num livro de contos, p. ex., acham que não entenderam. A anedota, o episodiozinho surreal com “punchline” acachapante, não tem obrigação de fazer sentido, nem tem compromisso com algum código moral, nem intenção de parecer um retrato realista da vida. A anedota é por um lado o mais livre dos gêneros, porque a rigor trata-se apenas do episodiozinho, mas nem todos são capazes de apreciá-lo, e menos ainda são capazes de criar material original dentro duma fórmula tão presa. Porque de uma coisa a anedota jamais pode prescindir: da gargalhada incontível ao ouvir a última linha e ver espoucar o flash do humor rápido, que é como porre de lança, dá um zuín e logo passa.
3581) O que é a vida (19.8.2014)
Reza a lenda que numa certa tarde sombria e invernal, na cidade de Göttingen, o filósofo Arthur Schopenhauer vinha caminhando lentamente pela avenida, mergulhado em metafísicas inquietações. Chuviscava, o chão estava cheio de poças dágua, e o filósofo se deteve perto do meio-fio, esperando que diminuísse um pouco o entrecruzar de cabriolés e tílburis sobre as pedras da rua.
O espetáculo do mundo passava, alheio à sua presença, e o filósofo deixou-se embalar por pensamentos, sem notar sequer, em torno dos seus pés, uma poça dágua, visto que a chuva continuava a cair, molhando seus cabelos e o seu casaco.
Vendo aquela cena, e notando as roupas puídas do transeunte, um policial de cassetete em punho aproximou-se e o interpelou: “Quem é você? De onde vem, para onde vai? O que está fazendo aqui?”
Schopenhauer voltou-se lentamente para ele e respondeu: “Que coisa interessante. Eu estava justamente perguntando a mim mesmo: Quem sou eu? De onde venho, para onde vou? O que estou fazendo aqui?"
Os filósofos e os soldados de polícia fazem as perguntas essenciais da razão de nossa presença na Terra. Todos temos a obrigação de fazer essas perguntas, embora ninguém que seja sensato espere respondê-las em algum momento. São perguntas que não procuram descobrir “a resposta”, como numa charada ou numa adivinhação. O que essas perguntas pretendem é, sendo formuladas a sete bilhões de pessoas, produzir sete bilhões de respostas. Nenhuma delas mais verdadeira ou mais equivocada do que as outras.
Jean-Paul Sartre contava em suas memórias que durante a vida toda se sentiu um fingidor, uma fraude, um cara sem direito de estar no mundo. Ele usava a imagem do sujeito que está viajando num trem mas não tem o bilhete. “Passei a vida escrevendo livros,” dizia ele, “porque se um dia o fiscal do trem viesse me pedir o bilhete, que continuo não tendo, eu lhe mostraria os livros e diria: Estou na Terra com esta função.”
Todo mundo está aqui para fazer alguma coisa. Mesmo o viciado da cracolândia sente que precisa fumar crack todo dia, para justificar sua presença no mundo. Mesmo um monge indiano que vive de jejum e meditação usa os dois como um bilhete para exibir ao fiscal do trem.
Bob Dylan dizia: “You gotta serve somebody”. Não existe almoço grátis, e a vida é um banquete caríssimo e você tem que deixar algo em troca. Vamos ter que fazer alguma coisa para responder aquelas quatro perguntas. Podemos até nos recusar a respondê-las. Mas nenhum ser humano consciente as ignora, nenhuma pessoa capaz de pensar escapou de fazer essas perguntas a si mesmo em algum momento, e elas são perguntas para as quais é preciso inventar respostas.
domingo, 17 de agosto de 2014
3580) Borges e Cortázar (17.8.2014)
(ilustração: Chelo Candia)
Parece que nunca
existiu uma amizade de fato entre esses dois grandes escritores argentinos, que
frequentemente são citados na mesma frase.
Havia quinze anos de diferença etária entre eles, e é natural que o mais
novo visse no outro o seu mestre. Ambos produziram uma literatura fantástica de
matriz urbano, cosmopolita, com inspiração literária e filosófica. Bem diferente da literatura fantástica de
matriz rural ou interiorana (Márquez, Astúrias, Rulfo, Scorza, p. ex.), com
matriz indígena e mitológica. Ambos
livrescos e um tanto tímidos, ainda assim são diferentíssimos. Cortázar um
sujeito afetuoso mas auto-suficiente, que ousou deixar a pátria e viver em
terra estranha. Borges morou com a mãe até que ela morreu, embora depois de
cego e famoso tenha corrido o mundo inteiro. (Talvez um cego se canse menos em
viagens internacionais. Nossa memória visual exige muito do processamento
central.)
Em 1956 Cortázar
estava na Índia e ao conversar sobre Borges veio-lhe a idéia para um poema, que
ele acabou publicando muito tempo depois, em seu “almanaque” A Volta ao Dia Em
Oitenta Mundos. O
título é em inglês: “The smiler with the knife under the cloak”. E diz: “Bem no meio da ensaimada /ele se
plantou e disse: Babilônia. / Muito poucos entenderam / que queria dizer o Rio
da Prata. / Quando se deram conta já era tarde, / quem detém esse potro que
galopa / de Patmos a Gotinga a meia rédea. / Começou-se a falar em vikings / no
Café Tortoni, / e isso curou a alguns de Juan Pedro Calou / e fez os fracos
adoecerem com as runas e David Hume. // Enquanto isto ele lia / romances
policiais.”
Nos comentários
que faz após o poema, Cortázar observa que só viu Borges pessoalmente “duas ou
três vezes na vida”, mas que Borges foi para a geração dele uma lição de
escrita. Mais do que temas e idéias, a literatura de Borges lhes passou a
sensação de uma lâmina afiada até o limite. Uma frase refeita dezenas de vezes,
começando longa e tortuosa, e se limando por dentro até se tornar concisa,
sonora e perfeita. Uma antítese classicista ao derramamento verbal dos
românticos.
sábado, 16 de agosto de 2014
3579) Singularidade Absurda (16.8.2014)
A Singularidade, segundo os cientistas e os escritores de FC, será aquele momento em que todos os processos de inteligência artificial que estamos criando irão convergir para a formação de um estado supra-biológico de consciência humana/cibernética. Como um piloto automático que se apossasse do avião e impedisse os pilotos humanos de entrar na cabine.
O que acontecerá então?
Temos a tendência de projetar um perfil antropomórfico, ou
uma essência semelhante à humana, em todo fenômeno que nos transcende, sem
atentar para essa contradição. Se nos transcende, não é como nós. Não parece
conosco. Não pode ser descrito em nossos termos. Deus não é um homem de barbas brancas
sentado num trono.
A Super Inteligência Artificial do futuro não será um cientista (benigno ou psicótico) dando ordens que não conseguiremos desobedecer.
A Super Inteligência Artificial do futuro não será um cientista (benigno ou psicótico) dando ordens que não conseguiremos desobedecer.
É bastante possível que estejamos criando não uma, mas uma
série de Semi-Inteligências Artificiais, e que a Singularidade, o momento
irreversível em que esse processo escapará das nossas mãos, não tenha uma
consciência central. Não será um computador gigantesco dizendo: “Agora, vocês
vão ter que me obedecer”.
Fico até incomodado quando penso nisto, mas acho que a Singularidade não vai parecer nem com uma Divindade nem com um Super-Cérebro, vai parecer com um Doido.
Fico até incomodado quando penso nisto, mas acho que a Singularidade não vai parecer nem com uma Divindade nem com um Super-Cérebro, vai parecer com um Doido.
Milhares, milhões de processos eletrônico-digitais
controlando nossas finanças, nossas identidades sociais (documentos, senhas,
acesso a tudo), nossos bancos, nossos meios de transporte, nossas formas de
comunicação. Quem me garante que a Singularidade não será capaz de produzir
pastiches perfeitos do meu texto e do meu estilo, postar em redes sociais,
mandar emails para minha família dizendo o que bem entender – e fazer-se
acreditar?
A Singularidade será um universo beckettiano ou douglasadamsiano. A vida no planeta correrá o risco de ser destruída justamente pela falta de um ditador antropomórfico em busca do poder. Serão mil ditadores algorítmicos, conflitantes, contraditórios, tentando se sobrepujar por mero determinismo de programação.
E o mundo se transformará num pesadelo surreal-cubista, numa peça de Ionesco montada pelos loucos do Asilo de Charenton, e a vida humana se tornará finalmente um conto contado por um louco, cheio de som e de fúria e significando rigorosamente nada.
sexta-feira, 15 de agosto de 2014
3578) Robin Williams (15.8.2014)
Tem atores que são capazes de se concentrar num personagem real ou imaginário e recriá-lo com competência: o Hamlet de Laurence Olivier, o Hitler de Bruno Ganz, o Gandhi de Ben Kingsley, o Gonzaguinha de Júlio Andrade, o Aguirre ou o Fitzcarraldo de Klaus Kinski. Ele cria um personagem como quem ergue uma catedral, com tudo que isso envolve de planejamento a longo prazo e de improviso instantâneo, com tudo que isso implica de filigrana milimétrica e de megalomania estrutural.
Não era o caso de Robin Williams, e não porque ele não fosse
um excelente imitador. Imitou competentemente desde Theodore Roosevelt até
Oliver Sacks e o marinheiro Popeye. É
que Williams era mais capaz de reproduzir os tiques exteriores de alguém do que
de se transformar naquele alguém, com memórias profundas e tudo o mais. As
pessoas e os personagens não lhe despertavam tanto interesse assim, a ponto de
fazê-lo dizer: “Passarei dois anos estudando e compondo esse personagem”. Não,
acho que era mais aquela coisa do cômico de vaudeville, do rádio e do cinema
mudo, que abre uma folha: “Qual é o próximo papel? Ah, pirata decadente. Já
sei.”
Vi duas ou três entrevistas de Williams na TV e ele era aquele
tipo não-entrevistável, porque ele nunca é ele mesmo, ele está sempre fazendo
um personagem, e nunca é o mesmo personagem por mais de vinte segundos
consecutivos, às vezes um pouco mais, quando a piada que está inventando se
prolonga. Me lembra o que disse uma vez uma esposa de Peter Sellers: que era
impossível conversar com ele, porque não havia “ele”, havia milhares de
personagens que ele imitava quando precisava dizer alguma coisa. Eram mil
máscaras sem um rosto por trás.
Williams sempre caminhou naquela linha difícil dos atores
careteiros, a que também pertencem Jerry Lewis e Jim Carrey. Sabem que estão sempre a um milímetro de
resvalar no mau gosto, no patético, no cafona, no escatológico, mas é algo mais
forte do que eles. Fariam assim mesmo
que a lei proibisse. Só sabem fazer se for assim.
quinta-feira, 14 de agosto de 2014
3577) "O Mistério dos MMM" (14.8.2014)
Este romance policial de 1964, editado por João Condé, é um dos nossos mais famosos exemplos de “round-robin”, romance em que cada autor escreve um capítulo e passa a bola para o próximo. No presente caso, eram dez.
A história de um crime violento
durante o Carnaval, no apartamento de um milionário em Copacabana, foi começada
por Viriato Corrêa, que narrou o crime inicial e propôs o mistério básico sobre
três mulheres não identificadas, cujos nomes começam pela mesma letra.
O enredo é cheio de reviravoltas, nenhuma delas
excepcional, mas essa obra coletiva produziu um décimo-primeiro indivíduo a que
todos se amoldaram e para o qual todos contribuíram. Se fosse assinado com um
nome qualquer, poderia passar pelo romance de estréia de alguém.
Os capítulos, se não me falha a memória, eram publicados
semanalmente em O Cruzeiro. Lembro das páginas duplas com ilustrações,
carros, homens empunhando armas, parecendo a revista X-9 ou algum outro pulp
magazine nacional.
Do segundo capítulo em diante colaboraram, pela ordem, Dinah
Silveira de Queiroz, Lúcio Cardoso, Herberto Sales, Jorge Amado, José Condé,
João Guimarães Rosa, Antonio Callado, Orígenes Lessa, com o último capítulo cabendo
a Rachel de Queiroz.
Há vários crimes violentos, um grande número de personagens,
o enredo tão claro ou tão confuso quanto o de qualquer pulp fiction.
O curioso
é que os estilos desses escritores tão diferentes convergiram na direção de um
esperanto comum a todos. Aqui e acolá
reconhece-se o autor num diálogo, num nome de personagem, numa alusão
geográfica ou literária. Mas vozes tão dissímiles quanto as de Jorge Amado,
Guimarães Rosa e Antonio Callado estão quase intercambiáveis, na sua capacidade
de entrar no diapasão feito soar por Viriato Corrêa.
Rosa contribuiu com uma detetive, a Tia Maria, que tem com o
comissário Dr. Brasil uma relação parecida com a da Miss Marple de Agatha
Christie com seu sobrinho. A personagem
foi adotada pelos autores dos capítulos finais, e traz uma certa ajuda para o
delegado Rocha Novais, o velho investigador Soares e o próprio Dr. Brasil, que
no auge do desespero com a investigação que não progride desabafa com a melhor
frase do livro: “Esse negócio de crime devia ser proibido!” (episódio de
Orígenes Lessa).
Ele faz a
ponte entre o Dr. Leite de Luiz Lopes Coelho e o Espinosa de Garcia-Roza,
passando pelo Mandrake de Rubem Fonseca.
Sem ser um grande enredo policial, não faz feio. Houve nos autores um certo interesse em ir
solucionando os vários crimes aos poucos, ao invés de ir acumulando tudo
(atitude bem pulp fiction) para ser resolvido pelo infeliz encarregado do
derradeiro episódio.
quarta-feira, 13 de agosto de 2014
3576) Um autor novo (13.8.2014)
Descobrir um autor novo (novo pra mim, claro) me remoça. Mesmo quando eu já supervisionava o tráfego da literatura universal do alto dos meus vetustos 50-e-tantos anos, era extraordinário o quanto o mundo voltava a ficar grande quando eu fazia uma nova descoberta.
Às vezes era um autor de quem eu só conhecia o nome, vagas referências. Um dia, eu começava a folhear um volume na livraria, sem muito interesse, dava uma conferida no que vinha logo abaixo de “Capítulo 1”, e quando voltava a mim estava na página 35, sob os olhares suspicazes dos atendentes. Em casos assim, já me ocorreu ir no caixa, pagar, sair da livraria e continuar a leitura de pé, na calçada, por entre os transeuntes, figurantes involuntários da epifania.
Ou então o cara está lendo uma antologia,
ou uma revista literária, vê 2 ou 3 poemas de um(a) desconhecido(a), lê, relê,
entende, desentende, pergunta de novo, acaba constatando uma espécie de
fenômeno. Vai ao Google, depois à Estante Virtual ou à Abebooks... Tá fisgado.
O primeiro indício de estar fisgado é se flagrar tentando escrever parecido com a figura. “Pronto,” pensa o cara, “era só o que me faltava, ser influenciado por uma poetisa senegalesa que tem idade pra ser minha avó, ou minha neta, tanto faz.”
O primeiro indício de estar fisgado é se flagrar tentando escrever parecido com a figura. “Pronto,” pensa o cara, “era só o que me faltava, ser influenciado por uma poetisa senegalesa que tem idade pra ser minha avó, ou minha neta, tanto faz.”
Muita gente, quando descobre um autor novo,
vira propagandista. Xeroca texto, escaneia texto, compra livros na
ponta-de-estoque e distribui entre os amigos, vira “cabo leitoral”. Vira tiete
e militante de um autor falecido no século passado, ou de um novato que está
publicando lá nas brenhas e que ninguém se interessa.
Por que? Talvez porque um autor novo é como um bar novo que a gente descobre. O bar é ótimo, mas a gente não quer ficar lá sozinho, ou entre desconhecidos indiferentes. Quer levar a turma de amigos para usufruto em comum.
Por que? Talvez porque um autor novo é como um bar novo que a gente descobre. O bar é ótimo, mas a gente não quer ficar lá sozinho, ou entre desconhecidos indiferentes. Quer levar a turma de amigos para usufruto em comum.
Por que? Talvez pra não quebrar o encanto, não correr o risco de ouvir um dos meus gurus dizer: “Ah, conheço, sim... Mas já passei essa fase...” Eu descubro e escondo.
Fico com a ilusão benigna de que só eu conheço, só eu gosto, só eu plagio em vão e depois queimo por saber que é plágio, mas no momento de copiar experimento o prazer vicário de todo ator que desdobra no palco uma grande cena e, enquanto joga pra fora aquelas palavras, tem a certeza íntima (por isso a cena é grande) de que tudo aquilo foi ele quem pensou, de que tudo aquilo acaba de ali nascer.
terça-feira, 12 de agosto de 2014
3575) "Bar Don Juan" (12.8.2014)
A história da guerrilha comunista no Brasil já foi contada em livros, filmes, reportagens. Os romances, que eu me lembre, são poucos, mas o primeiro que li, e que mais me marcou, foi Bar Don Juan (1971) de Antonio Callado. É o livro do meio de uma espécie de trilogia que ele iniciou com o imenso e épico Quarup (1967) e concluiu com o multilingue e compacto Reflexos do Baile (1976).
Callado tinha talvez o equilíbrio necessário para escrever sobre a guerrilha. Um equilíbrio que não vinha da neutralidade, mas do seu envolvimento ideológico e pessoal, que lhe permitia ser simpático a algumas intenções do movimento, e crítico quanto ao seu modo de atuação.
Por volta de
1968, na Zona Sul do Rio, um grupo de jornalistas, cineastas, escritores, junto
com alguns de origem militar ou religiosa, se reúne para criar um foco de
guerrilha na região de Corumbá. Seria uma ponte para a guerrilha que Che
Guevara estava implantando (aos trancos e barrancos, na verdade) na Bolívia.
Uns já tem experiência de combate, outros são “verdes”, alguns são claramente porraloucas, mas estão decididos ao sacrifício: “Em épocas como a nossa a vida particular é um vício. Um maconheiro que procura mudar o mundo é mais virtuoso do que um atleta ou um santo.”
Uns já tem experiência de combate, outros são “verdes”, alguns são claramente porraloucas, mas estão decididos ao sacrifício: “Em épocas como a nossa a vida particular é um vício. Um maconheiro que procura mudar o mundo é mais virtuoso do que um atleta ou um santo.”
Callado bebia
uísque com aqueles jovens, presenciava suas discussões, entendia seu
entusiasmo, e a crônica daquela derrota sangrenta é narrada com um
distanciamento melancólico.
Ele cobriu a Guerra do Vietnam e provavelmente entendia mais de vivência de guerra do que aquele grupo de jovens “que olhava o Banco como um terrorista árabe olhando uma sinagoga.”
Ele cobriu a Guerra do Vietnam e provavelmente entendia mais de vivência de guerra do que aquele grupo de jovens “que olhava o Banco como um terrorista árabe olhando uma sinagoga.”
O bar e o livro
podiam se chamar Bar Dom Quixote, porque a guerrilha rural planejada e
arregimentada entre uísques nas noitadas do Leblon é também o resultado de
leituras desordenadas, sentimentos nobres, ambições heróicas e leitura
paranóica do Real.
A arrogância ingênua da guerrilha se reflete no bordão com que os pretendentes a guerrilheiros se referem à conexão com a guerrilha boliviana do Che: “Com o Comandante a gente vence. É matemático.”
É típico do desejo se fantasiar de necessidade. Quando queremos muito alguma coisa é forte a tentação de imaginar que o Universo inteiro conspira a favor daquilo. Ou, para usar o jargão da época, dizemos que aquele evento será a consequência necessária da marcha inelutável da História, o resultado concreto de forças históricas objetivas.
A arrogância ingênua da guerrilha se reflete no bordão com que os pretendentes a guerrilheiros se referem à conexão com a guerrilha boliviana do Che: “Com o Comandante a gente vence. É matemático.”
É típico do desejo se fantasiar de necessidade. Quando queremos muito alguma coisa é forte a tentação de imaginar que o Universo inteiro conspira a favor daquilo. Ou, para usar o jargão da época, dizemos que aquele evento será a consequência necessária da marcha inelutável da História, o resultado concreto de forças históricas objetivas.
domingo, 10 de agosto de 2014
3574) Utopias totalitárias (10.8.2014)
(ilustração: Alessandro Bavari)
Embora o
conceito e o nome tenham nascido no século 16 com a Utopia de Thomas Morus
(1516), a utopia literária é um gênero típico do século 19. Antes disso, as
utopias costumavam ser satíricas, ou meras fantasias literárias. No século 19
começaram as utopias científicas. O marxismo é produto desse tempo em que, num
dos auges periódicos do capitalismo, a Razão mobilizou todos os seus
instrumentos conceituais para criar o paraíso social na Terra.
Uma das utopias
brasileiras mais curiosas é O Reino de Kiato (1922) de Rodolfo Teófilo, sobre
o qual já falei aqui (http://tinyurl.com/qbomjfl).
É a típica utopia positivista, baseada na higiene, no civismo, na obediência,
na pontualidade, na estrita obediência às leis vigentes, na organização
administrativa e burocrática, na tecnologia, na padronização das idéias e do
comportamento. Foi esse livro que me
veio à memória ao ler Viagem (1954), o relato póstumo de Graciliano Ramos
sobre sua visita à URSS no último ano de vida de Stálin.
Em Kiato, a
história é narrada pelo ponto de vista de James Paterson, um visitante que vai
parar naquele reino por acaso e que começa a se inteirar da revolução que pôs
no trono o Rei Pantaleão III, a quem Kiato deve sua indescritível prosperidade
e sua estabilidade política. Kiato, fantasia utópica, contemporânea de Stálin,
não é uma república comunista, mas prefigura muitos dos aspectos que em 1922 (ainda
em plena guerra pós-revolucionária) mal começavam a ser implantados na URSS.
John Paterson e
Graciliano Ramos passeiam pelas avenidas, pelas fábricas, pelas praças e pelos
centros cívicos de Kiato e da Rússia, conduzidos por cicerones que lhes explicam
o impecável funcionamento das instituições burocráticas, a assiduidade
infalível dos trabalhadores, o entusiasmo dos cidadãos diante de qualquer
chance de manifestar sua lealdade ao regime. Não se vê um mendigo, um
trombadinha, um monte de lixo, uma droga. As bibliotecas estão cheias de
coleções encadernadas.
sábado, 9 de agosto de 2014
3573) O fantasma da catedral (9.8.2014)
O telephone soou no fim da tarde; era um diacono da Cathedral dos Martyrios. O supposto fantasma voltára a apparecer, e pediam o socorro do Departamento Parapsychico. Reuni ás pressas minha aparelhagem, meti-me num cabriolé e parti em disparada. Os lampiões a gaz já illuminavam as ruas, e os cascos do cavallo estalavam com estrepito nas pedras do calçamento. Fui recebido pelo diacono, um homem rubicundo e nervoso que me introduziu no templo. A Catedral, em obras, estava fechada ao publico até que se concluisse a instalação, por entre o madeirame, dos cabos neccessarios á moderna illuminação electrica. Cruzámos andaimes, trechos esburacados do piso; o altar-mór e os nichos dos santos estavam cobertos por lonas. No fim de um corredor flanqueado por colunas, tivemos accesso a um vestibulo e de lá a uma porta que o diacono empurrou com difficuldade. Um immenso banheiro de marmore, illuminado debilmente por claraboias, estendeu sua brancura polar á nossa frente.
“Tem sido visto aqui, Professor Fradique, e
dois operários o perceberam uma hora atrás,” murmurou o homem, e, com um
pretexto qualquer, ausentou-se ás pressas. Abri a maleta, instalei meus
sensores, armei o tripé do ectoplasmoscopio. Enquanto o fazia, comecei a sentir
a peculiar alteração da pressão atmospherica que antecede aos phenomenos
astraes. A dois metros de mim um vulto materializou-se, um homem corpulento, em
mangas de camisa, rosto largo, empunhando um instrumento à frente da bocca, mas
de cabeça baixa, como que mergulhado em profundas meditações. Através de seu
tronco viam-se azulejos do lado oposto. Os ponteiros dos sensores agitavam-se
febrilmente. O ar foi invadido por um odor sulphurico. Senti-me entontecer,
cambaleei; a imagem do homem se foi encorpando, tornou-se opaca, concreta.
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