domingo, 7 de março de 2010

1756) Machado: “A Idéia de Ezequiel Maia” (26.10.2008)



(Machado, por Henrique Bernardelli)

O personagem-título é mais um dos loucos mansos de Machado, primo consanguíneo de Quincas Borba, de Sales e do dr. Simão Bacamarte, o alienista. Note-se que a maioria dos doidos de Machado não chega a tal em virtude uma uma febre ou de uma crise, e sim da ambição intelectual que os afasta pouco a pouco do mundo das pessoas comuns. É o caso de Ezequiel, que foi derivando “...de uma restauração da cabala para outra da astrologia, da astrologia à quiromancia, da quiromancia à charada, da charada ao espiritismo, do espiritismo ao niilismo idealista”. Este personagem de 1883 (ano em que o conto foi publicado, na Gazeta de Notícias) não está muito distante dos leitores esotéricos de hoje, os devotos das runas e da numerologia, estudiosos dos drúidas e dos Templários. Mudam as modas, só o que não mudam são as manias.

Diz o autor que Ezequiel “empreendeu um estudo que lhe comeu cinquenta e seis dias: achar a filiação das idéias, e remontar à primeira idéia do homem”. Mas Ezequiel Maia quer mais, e quer uma coisa muito simples: eclipsar o mundo ilusório da matéria e pôr o próprio espírito em contato com os demais espíritos. Consegue isto através de uma técnica que ele chama “abstrair-se”: fitar os olhos na ponta do nariz e entrar num estado de hipnose auto-induzida, que lhe permite visitar as mentes alheias, saber o que estão pensando, se acordadas, acompanhar o que lhes acontece, se estão sonhando.

Este é o preâmbulo; o conto mesmo é uma aventura mental de Ezequiel, que debruça-se à janela e olha para dentro da alma de dois vizinhos, o Delgado e o Neves. O Delgado é um homem de bem, mas após praticar pequenas irregularidades contábeis para mascarar os prejuízos da firma passa a ser consumido por remorsos terríveis, desespero, impulsos suicidas. Ezequiel, que acompanha telepaticamente seu drama, vê quando ele vai consultar-se com o Neves, e vê admirado como o Neves não parece ter o menor senso moral. Nada o preocupa, nada o escandaliza, nada lhe provoca a indignação dos justos. O Neves preocupa-se apenas com o olho da opinião pública (e passa, ele também, por esse episódio recorrente no juízo de Machado: o homem que acha na rua uma carteira perdida). Ezequiel escandaliza-se com o amoralismo inofensivo do Neves, contrastando-o com a honestidade e o golpe contábil do Delgado, e sentencia: “Há virtualmente um pequeno número de gatunos que nunca furtaram um par de sapatos”.

Machado não desenvolve as aventuras telepáticas de Ezequiel Maia, recurso que bem podia ter-lhe valido como pretexto para outras análises de caráter. Mas não o faz porque não precisa. Ele mesmo, como autor, já tem sua jurisdição telepática pessoal, esteio do seu estilo e de sua voz narrativa. Ezequiel é apenas um Machado meio doido, um que “tinha o juízo a juros naquele banco invisível, que nunca paga os juros, e, quando pode, guarda o capital”.

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