Sou um colecionador de coincidências e sincronicidades, e algumas são de tal natureza que não resisto a compartilhá-las.
Hoje, por volta das 7 da noite, eu estava às voltas com Borges, o maciço diário em que Adolfo Bioy Casares anotou suas décadas de conversas-após-a-janta com o autor de Ficções.
À página 487, os dois amigos comentam uma frase do Bispo de Worcester, Hugh Latimer (1470-1555). Condenado à fogueira com outro mártir protestante, seu amigo Nicholas Ridley, disse Latimer: “Be of good comfort, Master Ridley, and play the man. This night you and me will light a candle, in England, that won’t be put out”.
A tradução é escorregadia, mas a frase diz, mais ou menos: “Seja um companheiro à altura, Sr. Ridley, e aja como um homem. Esta noite nós dois acenderemos na Inglaterra uma vela que ninguém será capaz de extinguir”.
Borges elogia a expressão “be of good comfort”, o uso de “Master” (que em inglês tanto é “mestre” quanto um tratamento reservado a meninos e rapazes de boa família), e diz que o uso do verbo “to play” reforça a hombridade do conselho: “aja como um homem”, no sentido de “represente o papel”, mesmo que não o seja.
Também elogia a imagem dessa luz que os dois iriam acender com os próprios corpos; e Bioy Casares refere que, segundo alguns testemunhos, Latimer acariciou as chamas quando estas o envolveram.
Bem, li essa passagem às 7 da noite. Às 11 estava vendo o DVD de Fahrenheit 451, o filme de FC de François Truffaut sobre uma sociedade futura em que a leitura é proibida e cabe aos bombeiros ir de casa em casa, queimando livros e prendendo os leitores.
A certa altura os bombeiros invadem uma casa cheia de livros onde mora uma velhinha que, ao vê-los, sabendo que não tem mais chance de fugir, desce a escada dizendo, com ironia: “Play the man, Master Ridley...”, bibibi, bobobó.
Agora me digam – quantas são as chances de um sujeito encontrar, na mesma noite, em duas fontes totalmente independentes uma da outra (filme franco-inglês de 1966, livro argentino de 2006 narrando um diálogo ocorrido em 1959), a mesmíssima frase de 1555, que nunca tinha lido?
Só mais duas coisas. A primeira é que em seu conto “Os Teólogos” (em O Aleph, 1949) o próprio Borges já intuía essa tendência multiplicatória das fogueiras, ao fazer o heresiarca Euforbo (um defensor da teoria do Tempo Circular, ou do Eterno Retorno), atado ao poste, profetizar: “Isto ocorreu e voltará a ocorrer. Não acendeis uma pira, acendeis um labirinto de fogo. Se aqui se unissem todas as fogueiras que tenho sido, não caberiam na terra e os anjos ficariam cegos”.
A segunda é pensar que bastaria estar vendo o filme com alguém, e que essa pessoa dissesse: “Quem é esse Mr. Ridley que ela tá falando...” Eu pigarrearia discretamente e diria: “Oh, ela está comentando uma frase do Bispo de Worcester, dita em 1555...” E é de coincidência em coincidência que a gente constrói uma fama de intelectual.
4 comentários:
Coincidências não são por acaso... Essa frase do Bispo de Worcester me pegou feio também! Vou ter que assistir o filme, agora, só de raiva! Ótimo artigo, parabéns!
Mais um texto armadilha hipermidía. Lê Bráulio é assim. A gente lê, dá vontadr de ler e ver tudo que ele cita, num labirinto que vai lhe apresentando gente de Alan Poe a Zé Limeira, e assim você acaba ganhando a fama de fã do Trupizupe. (já cheguei ao ridículo de incomodá-lo pra tirar uma foto, depois de termos viajado no mesmo ônibus. :) )
As coincidências perseguem o intelectual, o pesquisador. Não é alma do outro mundo não vou Bráulio
Braulio, mais meia coincidência: neste livro "Canallas: dos ensayos sobre la razón", Derrida repete logo no primeiro ensaio: "se algo ocorre, ocorrerá novamente"... e ele repete isso fazendo uma analogia da roda.
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