Volta e meia a gente está lendo algo num jornal ou revista e encontra um aparente erro de português. Comenta com outra pessoa, e ela diz: “Mas isto não é um erro, é um modo de falar. Eu também digo assim”.
Esta é uma questão curiosa, saber onde as autoridades da Língua traçam o limite entre o coloquialismo aceitável em tais ou tais circunstâncias, e o erro propriamente dito, que tem de ser corrigido e ponto final.
Publiquei num livro meu um poema onde havia uma linha assim: “Com Rimbaud aprendi ser afinado”. Alguns amigos vieram questionar esta regência direta do verbo, opinando que o certo deveria ser “Com Rimbaud aprendi a ser afinado”.
Meu argumento de defesa foi típico dos sujeitos que se alfabetizaram no universo da Cultura Oral: “Oxente, pois Jackson do Pandeiro diz: Bodocongó, Alto Branco, Zé Pinheiro / aprendi tocar pandeiro nos forrós de lá”. Se ele diz “aprendi tocar”, eu posso dizer “aprendi ser”.
Um desses amigos coçou gravemente a cabeça grisalha e disse: “Com todo respeito, mas Jackson do Pandeiro não é uma boa referência para abonações do vernáculo”. E ponto final.
O Tempo trata a Língua Portuguesa de modo surpreendente. Quando a gente menos espera, uma regra desmorona e as exceções se apossam das ruínas, com o entusiasmo de bárbaros invadindo os portões de Roma. O formal se dilui no coloquial, e meu exemplo preferido desse processo é o fato de que o pomposo tratamento “Vossa Mercê” foi se deformando em “vossemecê”, daí saltou para o sintético “vosmecê” (tão freqüente em Machado de Assis), no século 20 chegou a “você”, que hoje é a forma preferencial dos gramáticos, embora os paulistas do interior defendam o “ocê” e Caetano Veloso esteja doido para se tornar a principal abonação vernácula do “cê”.
Não é apenas a História que é escrita pelos vencedores, a Gramática também. Se fizermos um cotejo histórico de nossos dicionários, desde o de Morais no século 19 até o Houaiss ou o Aurélio de hoje, veremos que não é apenas o vocabulário científico e técnico que se renova. Também ocorre a consagração de formas impostas pelo uso popular, o qual cria suas próprias jurisprudências lingüísticas e acaba explodindo as regras que não mais comportam as direções tomadas pela prática social.
Isto é de lamentar? Na vida do idioma, a única coisa que lamento é que certas palavras sonoras e expressivas acabem apodrecendo e caindo por falta de uso. A oficialização de termos antes tidos como plebeus, no entanto, é uma boa coisa, desde que eles surjam como uma opção a mais, e não como uma forma única, obrigatória.
Quando vejo um desses big-brothers dizendo “no meu modo de vista”, acho que é um uso errado, tanto no meu modo de ver quanto do meu ponto de vista. Mas o povo cria suas alternativas de expressão, e “povo”, aí, inclui todo mundo. Se o cara aprendeu falar assim, quem sou eu pra dizer que tenho direito e ele não?
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