Desde os vinte anos sonho em escrever um livro intitulado “Os livros perdidos”: uma história daquelas obras literárias ou filosóficas que foram destruídas, extraviadas, censuradas, ou que de alguma outra maneira perderam-se para sempre, embora saibamos que chegaram a ser escritas. O exemplo mais famoso é o segundo livro da Poética de Aristóteles, cuja redescoberta imaginária é o ponto principal do enredo de O Nome da Rosa de Umberto Eco. E agora abro o jornal (ou melhor, clico num link) e vejo diante de mim uma longa resenha, no Times Online, de The Book of Lost Books, de Stuart Kelly, onde ele realiza meu sonho sem me pedir licença.
A julgar pela resenha, Kelly investiga todos os casos clássicos de livros perdidos. Tem, por exemplo, o episódio do primeiro manuscrito da História de Revolução Francesa de Thomas Carlyle. Reza a lenda que quando Carlyle terminou de escrever a gigantesca obra juntou os milhares de páginas manuscritas e deixou o monte em cima da mesa, para levá-lo no dia seguinte a Londres, para a editora. Quando acordou, não viu os papéis, e perguntou à empregada onde estavam. “Aqueles papéis velhos?” perguntou ela. “Ah, usei para acender a lareira”. Carlyle encheu o cachimbo, deu umas baforadas, foi no terraço, ficou pensativo durante meia-hora, aí voltou, sentou-se à escrivaninha, pegou pena e papel, escreveu: “Capítulo 1”. E refez o livro todo.
Um episódio semelhante ocorreu com Robert Louis Stevenson. Reza a lenda, mais uma vez, que durante um período brabo da tuberculose ele teve uma noite de pesadelos, e trancou-se no quarto por três dias, escrevendo sem parar. Depois, reuniu a família e leu em voz alta a história do Dr. Jekyll e de Mr. Hyde. Sua esposa, Fanny, cuja opinião ele tinha em alta conta, desaprovou a história. Disse que lhe faltava uma dimensão alegórica, que era apenas um relato brutal. Irritado, Stevenson jogou o manuscrito no fogo, voltou para o quarto, e trabalhou mais três dias, reescrevendo tudo: e é esta segunda versão que temos agora como O Médico e o Monstro.
O leitor mais sagaz virá me dizer: “Bem, neste caso não se trata de obras perdidas para sempre. Os dois livros foram reescritos, não foram?” Sem dúvida. Os livros que conhecemos hoje são a segunda versão; mas quem me garante que a primeira não era melhor, ou pelo menos substancialmente diversa, a ponto de justificar uma leitura independente? O simples fato de sabermos que algo foi jogado ao fogo nos provoca uma angústia automática, pelo que há de irremediável neste gesto. Ficamos com o temor incurável de que a verdadeira obra-prima tenha se perdido, e o que herdamos é um rascunho desajeitado, uma tentativa frustrada de recompor algo que se foi para sempre. Não importa se é a gigantesca reconstituição histórica de Carlyle, ou se é a compacta e arrepiante noveleta de Stevenson; qual das duas foi mais difícil de refazer, antes que se dissipasse a memória do texto destruído?
2 comentários:
Olá, nobre Tavares
"...mas quem me garante que a primeira não era melhor, ou pelo menos substancialmente diversa...". Disso eu sempre tive certeza. Essa postagem foi uma das melhores, de todas as boas que o amigo atualiza.
"O simples fato de sabermos que algo foi jogado ao fogo nos provoca uma angústia automática, pelo que há de irremediável neste gesto". E a angústia parece aumentar, cada vez que descobrimos detalhes que a história deixou de contar por inteiro.
Belíssima postagem, de um belíssimo assunto.
Fico por aqui - muita força e inspiração
Leonardo Nunes Nunes
http://seguidorlovecraft.blogspot.com/
Valeu, nobre devoto de R'lyeh... Obrigado pelos comentários. E pelo menos nosso amigo HPL não pode se queixar de "livros perdidos", estão publicando tudo que ele escreveu...
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