Uma vez estávamos, um grupo de cineclubistas, conversando na esquina da Maciel Pinheiro com a Cardoso Vieira. Falávamos sobre música, e alguém dizia que certa música de Fulano tinha a aparência de ter sido composta ao violão, por causa de tais ou tais aspectos de melodia ou de acompanhamento. Começamos a especular sobre o instrumento de composição preferido de um e de outro: “Como será que Caetano compõe? E Milton? E Roberto Carlos?” E Zé Nêumanne, mordaz como sempre, sugeriu: “Bem, no caso de Baden Powell, acho que ele compõe ao pistom”.
Diferentes instrumentos facilitam diferentes caminhos para aqueles que preferem compor direto no instrumento em vez de cantarolar mentalmente e só depois procurar as notas. Violão e piano têm exatamente as mesmas notas e podem executar os mesmíssimos acordes, mas alguns são mais intuitivamente próximos do que outros, em cada instrumento, pela simples questão do posicionamento dos dedos. Dá pra imaginar, em alguns casos, em que instrumento o compositor chegou àquela idéia.
Me vem à mente o caso de Rosil Cavalcanti e de outros que criam melodias sutis, cheias de modulações, de mudanças de tom e tudo o mais, e jamais tocaram um instrumento. (Diz-se de Rosil que ele gostava de compor batucando numa caixinha de fósforos) Este caso é diferente do caso de poetas que fazem versos muito bons, mesmo sendo analfabetos. O analfabeto não lê nem escreve – mas fala e escuta o dia todo, a vida inteira. Se ele tiver talento verbal, que é um talento mental específico, ele não precisa da escrita; os exemplos são numerosos.
Já o compositor que não toca depende exclusivamente do ouvido musical que tenha, da sua sensibilidade para distinguir notas, variações harmônicas, etc. O hábito de ouvir música vai sedimentando nele um sistema próprio de referências, e tudo repousa em seu ouvido. Isto é uma façanha notável, porque quem compõe com a ajuda de um instrumento memoriza as melodias que cria através de registros visuais e musculares dos gestos que executa quando está tocando, e que, na pior das hipóteses, pesam tanto na memorização quanto a memória sonora propriamente dita.
Beethoven compôs sinfonia depois de surdo, mas isto não vem ao caso: já era macaco velho, quando escrevia na partitura sabia exatamente o que estava escrevendo, e além do mais mesmo um surdo é capaz de sentir com os dedos as vibrações da madeira do piano. Mas o cara que não manipula instrumentos depende somente do ouvido, da voz, do assobio. Suas melodias brotam soltas na imaginação, sem um alfabeto de sinais físicos para ancorá-la, sem o contato de um instrumento para dar-lhes uma textura mais íntima do corpo de quem as imagina. São música em estado puro, música que existe apenas como um fraseado de sons na mente de quem a pensou. Que coisa curiosa é ver um cara que cria música (mas não toca) ensinar cantarolando uma melodia sua a um músico que é virtuose no instrumento mas nunca compôs uma frasezinha sequer.
Um comentário:
Ô se é! Pra mim, bem mais que curioso, é "genial". Tenho um irmão escreve a partitura de uma música que
ouve pela primeira vez, sem instrumento, apenas acompanhando o áudio - bom ou péssimo. Acho isso maravilhoso.
Postar um comentário