sábado, 28 de fevereiro de 2009

0853) Canções de escárnio e maldizer (10.12.2005)



Nos velhos livros de Português do ginásio estudamos que no Romanceiro Português Medieval havia vários tipos de cantigas: cantigas de amor, cantigas de amigo, e um gênero cujo nome sempre me fascinou: “cantigas de escárnio e de maldizer”. Por alguma razão freudiana, eu sempre me senti mais habilitado para este tipo do que para os demais, e só não me dediquei desde muito cedo ao seu cultivo por causa do meu espírito cristão (e do medo de levar cascudos). Depois, acabei fazendo algumas, das quais o bolero brechtiano “Soberano Desprezo” talvez seja a mais notória.

O gênero foi mantido vivo através dos séculos pela poesia popular, e ninguém escarnece tão bem quanto um cantador de viola. Em peleja com José Francalino, o Cego Aderaldo mandou: “Puxa fogo, cabeleiro / instinto do mal, Lusbel / febre negra de acobaça / dentes de leão cruel / Judas que cuspiu em Cristo / entranhas da cascavel”. E Francalino ripostou: “Puxa, puxa, cego velho / te sustenta a retintiva / apanha hoje não tem jeito / de chorar ninguém lhe priva / tu ronca no nó da peia / apanha até dizer viva”. A tradição do desafio de ofensas é inesgotável, e o seu encanto rude se prolonga pelo forró; basta ouvir Biliu de Campina cantando “Eu sou melhor do que tu” ou João Gonçalves dizendo “vai tomar banho na cacimba, quando tu levanta o braço ninguém agüenta a catinga...”

Escarnecer e falar mal são uma Grande Arte como qualquer outra. E ninguém é obrigado a recorrer ao insulto, ao palavrão, à ofensa direta. Temperamentos mais chegados à política e a diplomacia podem produzir textos igualmente arrasadores. Veja-se como o nosso atual ministro Gilberto Gil reduziu a pó seus detratores: “Tu, pessoa nefasta, vê se afasta teu mal, teu astral que se arrasta tão baixo no chão...” Leiam esta letra e tremam, amigos. É alta filosofia, e é cantiga-de-maldizer pra nenhum trovador da Galícia botar defeito.

Bob Dylan, que é outro PhD em Sarcasmo, tem duas canções monumentais neste gênero. “Positively 4th Street” (1965) é um acerto de contas, cheio de vitríolo, com os falsos amigos e os aproveitadores em geral: “Eu sei por que você fala de mim pelas costas; já freqüentei sua turma. Eu gostaria que por um momento você estivesse em meu lugar, para poder saber que droga é olhar pra você”. E em “Idiot Wind” (1975) ele diz: “Há um vento idiota que sopra toda vez que você abre a boca... Você é um idiota, rapaz. É um milagre que você saiba respirar”.

Os estudiosos da poética dos trovadores medievais explicam que as cantigas de maldizer eram dirigidas explicitamente contra Fulano e Sicrano, enquanto que as cantigas de escárnio eram menos diretas. A grande vantagem destas últimas é serem suficientemente explícitas para que o destinatário, na primeira vez em que as ouça, saiba de imediato que a carapuça lhe cabe, e ao mesmo tempo terem profundidade bastante (e riqueza exemplificativa) para serem uma receita de larga aplicação. Sempre há quem mereça.

0852) Corra, Lola, corra (9.12.2005)



Revi há pouco tempo, numa sessão de cineclube, o filme alemão Corra, Lola, corra, seguido de um debate com o físico Luís Alberto de Oliveira. O filme brinca com o conceito de Tempo através de uma história muito simples, contada três vezes de modo diferente. Lola recebe um telefonema do namorado, que se meteu numa encrenca. Ele topou fazer um repasse de drogas para um mafioso local, entregou as drogas, recebeu 100 mil marcos para entregar ao mafioso, mas acabou perdendo o saco com o dinheiro. Agora, ele e Lola têm apenas 20 minutos para conseguir 100 mil marcos. Ele pensa em assaltar uma loja. Ela pensa em chantagear o pai, que é banqueiro.

A história é contada num ritmo frenético, principalmente porque Lola tem um preparo físico de cair o queixo: ela corre a pé pela cidade, tentando resolver tudo a tempo. O filme conta a aventura do casal até uma certa altura, com um desfecho trágico. Depois, volta tudo ao ponto de partida, e a história acontece de novo, com vários detalhes diferentes, e outro desfecho trágico. Zera-se tudo outra vez; e novamente Lola sai pela cidade afora, e mais uma vez pequenas coisas acontecem de maneira diferente: ela deixa de esbarrar em alguém com quem esbarrara na “versão” anterior, por exemplo. E na terceira versão, chega-se a um final satisfatório.

Luís Alberto, entre outros comentários, propôs que víssemos no filme não três histórias sucessivas, em que depois de cada um “voltamos no Tempo” e começamos tudo de novo. Na teoria dos Universos Paralelos, imaginada pela Física (e muito explorada pela ficção científica), essas histórias existem simultaneamente, e basta uma variação infinitesimal em qualquer fato para que exista um Universo “ao lado”, que difere do nosso apenas nesse pequeno detalhe. As três aventuras de Lola estão acontecendo ao mesmo tempo, em universos um tanto afastados um do outro. Num deles uma pessoa morre num tiroteio. No outro, há o tiroteio mas ninguém se fere. Em outro o tiroteio é evitado, e assim por diante.

Agora à noite, por exemplo, eu ia sair para dar minha caminhada habitual (sou um sujeito de hábitos saudáveis), mas começou a chover e eu sentei ao computador para escrever este artigo. Num universo vizinho, não choveu, e estou lá caminhando. Num terceiro, alguém me chamou ao telefone, e estou batendo papo. Num quarto, fiquei lendo; num quinto, estou tomando café com a pamonha que acabei de comprar no Largo do Machado; num sexto, estou tomando café com bolacha; num sétimo, estou caminhando, mas choveu depois de dez minutos, voltei e fui ver TV; num oitavo, choveu depois de vinte minutos, voltei e estou escrevendo outro artigo... e por aí vai.

Borges explorou belamente esta fantasia físico-matemática em “O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam”. O filme Corra, Lola, corra nos mostra as três bifurcações do caminho de Lola; ou nos mostra três dos infinitos universos em que a história de Lola, como a nossa, existe simultaneamente.

0851) Superstições (8.12.2005)




Todo mundo as tem, não é mesmo? O mais interessante é que as superstições tanto podem ser coletivas como personalizadas. As coletivas aparecem em todo livro de folclore: espelho quebrado, gato preto, passar embaixo de escada, derramar sal na mesa, treze convivas... 

As superstições individuais podem ter origem familiar. Eu, por exemplo, não posso ver uma tesoura aberta (vou logo fechar) nem um chinelo emborcado (vou lá e desemborco). Por que? Imagino que porque minha mãe era assim, e eu herdei telepaticamente essa enorme sensação de desconforto diante dessas coisas. 

Algum crítico metido a espertinho virá me brandir o dedo: “Arrá! Quer dizer que você vive se gabando de ser científico e agnóstico, e tem medo dessas coisas?” Não é medo, meu caro. É incômodo. Tesoura aberta? Uma criança pode vir e se cortar. Chinelo emborcado? É como quadro torto na parede, prato sujo na mesa, cueca largada no chão do banheiro. Dá uma má impressão danada.

As superstições podem ter origem numa razão real. Quem passa embaixo de escada, por exemplo, arrisca-se a ter um tijolo ou uma lata de tinta caindo sobre sua cabeça. Melhor rodear, não é mesmo? 

A história de que treze pessoas à mesa dá azar vem do fato que os serviços de mesa, os famosos “faqueiros”, vinham com doze unidades de cada peça; treze pessoas à mesa significava que os anfitriões iam passar maus bocados para acomodar o comensal extra. (Mentira minha: inventei essa agora, mas, graças à Internet, daqui a cem anos ela estará em todos os manuais de folclore.) 

Quebrar um espelho está associado à morte, porque subentende-se que a pessoa que o fez “destruiu a própria alma”, ou seja, a própria imagem refletida. E assim por diante.

A superstição é uma pequena zona de tabu que estabelecemos, conscientemente ou não, em torno de certos gestos, palavras, objetos. É um folclore-de-uma-pessoa-só, se se pode tolerar o oxímoro, uma vez que a palavra “folk” implica num fenômeno coletivo. Todo mundo as tem, embora em geral só saibamos as dos amigos mais próximos e as das pessoas famosas. 

Guimarães Rosa assim descrevia a superstição: “Percepção e arejo, defensivo psíquico automatismo, uma respiração cutânea do espírito, talvez”. 

Nas páginas iniciais de “São Marcos” (em Sagarana) ele faz um censo minucioso dessas intuições auto-normativas. Rosa detestava que mencionassem seu nome em conexão com o Prêmio Nobel. Diferentemente de Borges, que sonhou em vão com o prêmio a vida inteira, o escritor mineiro achava que esse negócio era de mau agouro. 

Achava o mesmo da Academia Brasileira de Letras: durante anos, como é sabido, adiou a própria posse, temeroso de que o coração (que não andava muito bem) não aguentasse. E foi dito e feito: morreu três dias depois de empossado. Premonição? Auto-sugestão? Ou simplesmente a mente dividida em duas, a que cria tabus para si própria e a que os desafia?







0850) As Crônicas de Narnia (7.12.2005)



Está em todas as livrarias onde entro, espreitando-me do balcão principal, a maciça cabeça de um leão de olhos pensativos. Trata-se da tradução brasileira (Ed. Martins Fontes, 750 pgs.) das Crônicas de Narnia, o clássico de literatura infantil de C. S. Lewis, pela primeira vez com todos os sete livros reunidos num único volume. Cheguei a ler o primeiro, The Lion, the Witch and the Wardrobe, mas era difícil encontrar os títulos na ordem certa, e acabei deixando pra lá. Lewis foi um grande amigo de J. R. R. Tolkien, e não duvido de que o sucesso recente de O Senhor dos Anéis tenha trazido o nome e a obra dele à lembrança dos produtores de cinema (o filme de “Narnia” vai estrear em breve) e das editoras.

Lewis e Tolkien são uma dupla curiosa de escritores. Eram amigos, ambos ensinavam em Oxford, ambos eram homens introspectivos, ambos tinham um profundo problema religioso. E tornaram-se, quase ao mesmo tempo, dois dos principais autores de literatura fantástica da Inglaterra. Tolkien criou seu gigantesco universo da “Terra Média”, onde ambientou as histórias de O Hobbitt, O Senhor dos Anéis, O Silmarillion e tantas outras. Lewis escreveu uma trilogia de romances de ficção científica (Out of the Silent Planet, 1938; Perelandra, 1943; That Hideous Strength, 1945), em que os planetas do Sistema Solar servem como cenário da luta entre o Bem e o Mal. No final dos anos 1940, ele começou a publicar a série das “Crônicas de Narnia”.

Lewis era anglicano, Tolkien era católico. Os dois discutiam extensamente questões de literatura e religião, e tiveram profunda influência na obra um do outro. A rigor, quem quer que se interesse pela obra de Tolkien precisa dar uma espiada na obra de Lewis, para entender melhor o contexto em que as duas foram criadas. Não se pode esquecer também um terceiro escritor, Charles Williams, também autor de obras fantásticas; s três formavam um grupo informalmente chamado “os Inklings”. Lewis foi um típico intelectual solteirão até a idade madura, quando conheceu uma americana com quem se casou e teve um breve episódio de felicidade conjugal até a morte dela, poucos anos depois. Há um belo filme contando esta história, Shadowlands, com Anthony Hopkins e Debra Winger.

“As Crônicas de Narnia” foram lidas por milhões de crianças no mundo inteiro pelo simples prazer das aventuras que narram, e foram estudadas por centenas de acadêmicos pela complexa simbologia cristã que encerram. Fico meio temeroso quando vejo Hollywood adaptar obras desse tipo, porque na melhor das hipóteses o que pode acontecer é o que Walt Disney fez com “Alice no País das Maravilhas” de Carroll – um desenho simpático, criativo, divertido, mas a léguas de distância da riqueza de referências contidas no livro original. Em todo caso, os livros estão disponíveis em português, tanto na edição conjunta quanto em volumes separados.

0849) No princípio era a roda (6.12.2005)



Faleceu recentemente no Rio o jornalista e crítico musical Roberto Moura, após contrair a “febre maculosa” que tem vitimado algumas pessoas aqui no Estado. Ao que parece, Moura hospedou-se numa pousada em Itaipava onde foi picado por carrapatos; morreu alguns dias depois. Nunca o conheci pessoalmente, mas durante anos acompanhei seus artigos na imprensa. Foi uma perda lamentável, além de tudo pelo fato de ser ele uma pessoa que pesquisava a sério a história do samba carioca, em livros como Tia Ciata e a Pequena África do Rio de Janeiro (1983) e No princípio, era a roda (2004). [Nota: fiquei sabendo depois que são dois autores diferentes, com nomes parecidos. O autor de Tia Ciata é outro.]

Moura abre este segundo livro com uma tese interessante. Resumindo, ele diz que não foi o samba que deu origem à chamada “roda de samba” (grupo de amigos que se reúne para tocar, cantar, beber, comer, divertir-se), e sim o contrário. Ele afirma que não descobriu a pólvora, que isto é algo mais ou menos sabido por todo mundo que pesquisa o samba e escreve sobre o samba, só que não havia sido ainda afirmado de maneira categórica. Ele o faz agora, e essa pequena inversão que propõe (e que me parece correta) ajuda a entender como surge esse tipo de música – e pode nos ajudar também a estudar melhor o aparecimento do forró e da Cantoria de Viola.

Inspirando-se em teses de Roberto da Matta, Moura estabelece dois tipos de ambiente para a música popular: a casa e a rua. Num, estamos no ambiente íntimo doméstico, comunitário, onde amigos fazem música para se divertir. No outro, estamos na esfera pública, do espetáculo, da organização de entidades, do profissionalismo. Na casa, vigora a roda de samba; na rua, a escola de samba. Para Roberto Moura, já aconteciam rodas de samba (ou seja, esses “pagodes de fundo de quintal”) antes mesmo do samba se firmar como gênero musical, com suas características harmônicas, rítmicas, melódicas, estruturais. Era o folguedo típico das comunidades negras cariocas no século 19 na chamada “Pequena África” – o bairro popular que se estendia do cais do Porto até a Cidade Nova, em torno da Praça Onze, e que as reformas urbanas posteriores botaram abaixo, expulsando aquelas populações para os morros vizinhos. (Daí ser historicamente inexata a expressão “o samba nasceu no morro”. O samba, neste sentido estrito, nasceu nos bairros populares do Centro, e só se refugiou nos morros bem depois).

Fim-de-semana. Um bar ou uma residência começa a se encher de gente. Instrumentos musicais vão aparecendo, um grupo se forma. Os bambas tomam a iniciativa, mas todos participam, cantam, batem com facas em pratos e garrafas. Na cozinha, as mulheres preparam panelas e mais panelas de comida. O dia se passa, a bebida circula, os grupos se revezam, a música não pára. Em torno dos músicos, conversa-se sobre futebol, sobre trabalho; casais namoram ou paqueram. Crianças circulam por ali o tempo todo, e serão elas os futuros sambistas. O samba nasceu em ambientes assim.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

0848) Entre a dor e o nada (4.12.2005)




(William Faulkner)

Quando aos dezenove anos assisti pela primeira vez Acossado de Jean-Luc Godard, uma das lembranças mais fortes que me ficaram foi a citação (Godard é um fetichista de citações) de uma frase de William Faulkner (em The Wild Palms): “Between grief and nothing, I will take grief” (“Entre a dor e o nada, eu escolho a dor”). 

Isto me lembrou uma outra citação, desta vez de Dostoiévski (não boto a mão no fogo – li isto em segunda ou terceira mão), que dizia, mais ou menos: 

“Se um homem tiver que ficar de pé, nu, na escuridão, no frio e na treva, no topo de uma montanha altíssima, sem poder mover os pés para o lado para não cair no abismo, sem poder comer, nem dormir, nem descansar, tiritando de frio sob a chuva gelada, durante um milhão de anos – e alguém perguntar se ele quer morrer, ele dirá que não, que muito obrigado, que prefere continuar assim por mais um milhão de anos”.

Você é assim, caro leitor? Não sei se eu sou, mas sempre achei que este era um dos problemas mais úteis de toda a Filosofia (e vi isto confirmado quando li em Albert Camus que o único problema filosófico realmente sério é o suicídio). 

Acho que tanto o sofrimento contínuo quanto a aniquilação definitiva nos repelem, nos fazem recuar, por uma espécie de instinto. Fiz uma vez um poemazinho curto que dizia: 

Numa margem está o Nada. 
Na outra margem, a Dor. 
Que enrascada, 
nadador! 

Se tivermos que escolher entre as duas, qual delas nos parecerá a menos pior?

Vi há pouco tempo uma menção a esta frase num artigo sobre o desenho animado japonês Ghost in the Shell. O artigo é sobre um episódio cheio de citações literárias, que se perdem quando retraduzidas do japonês para o inglês. O roteiro fazia referência ao filme de Godard através da frase de Faulkner, mas na retradução ela virava: “Entre a dor e o vazio, eu escolho a dor”. O articulista comenta: 

“Talvez a gente deva ver isto com indulgência. Estamos falando da dublagem em inglês de uma série de TV japonesa que se refere a um filme francês que incorpora uma citação de um escritor americano”.

Não se trata propriamente de um erro de tradução; nada que se assemelhe ao famoso exemplo citado por Paulo Mendes Campos: “O cachorro parou de correr e ficou arfando, com o idioma de fora”. Mas um pequeno exemplo como este, se aplicado a níveis mais rarefeitos de linguagem (como a poesia ou a filosofia), mostra a dificuldade de transpor todas as conotações do texto em sua língua original. 

Se a gente der-uma-geral nas traduções de Faulkner mundo afora (sei lá – na Lituânia, na Tunísia, na Bósnia...) talvez encontre versões sutilmente distorcidas daquela frase inicial. 

Entre a tristeza e o vácuo, eu escolho a tristeza. Entre a mágoa e a ausência de alternativas, eu escolho a mágoa. Entre o remorso e nada mais, eu escolho o remorso. Entre a aflição e um zero, eu escolho a aflição. Entre o luto e a morte, eu escolho o luto. E assim por diante.




0847) O Estudante de Praga (3.12.2005)




A antologia João Martins de Athayde (Editora Hedra, São Paulo, 2000; Coleção “Biblioteca de Cordel”) traz um precioso material sobre o grande cordelista. Além do texto completo de oito folhetos, temos uma introdução escrita por Mário Souto Maior, a transcrição de um depoimento de Waldemar Valente, datado de 1976, e uma longa e esclarecedora entrevista com a viúva do poeta, D. Sofia Cavalcanti de Athayde, concedida em 1980.

Na introdução, Mário Souto Maior lembra que a principal distração do poeta era ir ao cinema, o que é confirmado pela viúva. Diz ela: 

“Ele gostava muito de cinema. Ele tinha uma mania de toda noite ir ao cinema, sozinho (...) Cinema Glória, Ideal, São José. Mas o que ele mais frequentava era o Ideal.” 

Ela não lembra nenhum folheto do marido inspirado em filmes, e em sua introdução Mário Souto Maior comenta: “Interessante é o fato de o poeta, pelo que me consta, nunca haver escrito um folheto baseado em algum filme.”

Há pelo menos um folheto de Athayde diretamente inspirado no cinema. Trata-se do romance (32 páginas) O estudante que se vendeu ao diabo. A edição que consultei é de 1949, podendo haver outras mais antigas. 

O folheto é claramente inspirado no filme O Estudante de Praga, um clássico do Expressionismo Alemão, que teve pelo menos três versões: a de Stellan Rye em 1913, a de Henrik Galeen em 1926, e a de Arthur Robison em 1935. Em uma destas duas últimas Athayde provavelmente se baseou para criar seu folheto.

O herói do folheto chama-se Balduíno (como o herói das três versões cinematográficas). É um estudante e hábil espadachim que vende a alma ao diabo para enriquecer e poder casar-se com Olga, uma moça rica, noiva de um barão. Um homem misterioso vai a sua casa, dá-lhe uma bolsa cheia de ouro inesgotável, e leva consigo o reflexo do estudante no espelho. Ele fica rico, mas passa a evitar os ambientes onde haja espelhos, para que ninguém perceba que ele não tem imagem. 

Um dia, o barão, com ciúmes de Olga, o desafia para um duelo. Ele decide não ir, mas depois descobre que seu “reflexo” compareceu ao duelo e matou o barão. Ele arrepende-se, e no final desfere um tiro contra o próprio peito: a bala espatifa o espelho e ele ao voltar a si percebe que os cacos de vidro novamente o refletem.

O argumento do folheto coincide em muitos pontos com o dos filmes (que aliás se baseavam todos num conto de H. Heinz Ewers). 

A narrativa de Athayde, rica e fluente como sempre, reconstitui a narrativa cinematográfica com bastante senso da imagem, como na cena em que o Diabo entra no quarto do estudante: 

Balduíno entrou em casa 
sentou-se e pôs-se a cismar 
quando olhando para a porta 
viu o velho atravessar 
a porta mesmo fechada 
ficou de cara espantada 
vendo o homem assim passar. 

As trucagens do cinema mudo são descritas no cordel com o tom exato de ingenuidade, deslumbramento e tosca magia, como se os dois tivessem sido feitos um para o outro.



P.S.: o folheto que consultei pertence à coleção da Casa de Rui Barbosa (Rio de Janeiro), que já está em parte digitalizada, mas ao que parece este título ainda não o foi. (2017)




0846) Guimarães Rosa e o turbante (2.12.2005)




Guimarães Rosa foi metade cientista, metade místico. 

Por um lado, tinha uma mente racional, organizativa, meticulosa, capaz de enxergar idéias com espantosa nitidez e de extrair delas até as derradeiras gotas do seu sumo cognitivo. 

Por outro lado, era um vislumbrador de umbrais. Um intuitivo que captava mensagens urgentes num idioma esquecido. Um sensitivo a quem o Acaso fazia tropeçar em serialidades improváveis ou simetrias perturbadoras. Assim era o homem, e assim é toda a literatura que nos deixou.

Conta ele, num episódio de Ave, Palavra, que tinha um amigo, cuja identidade protege sob o cognome de “Marduque”. Sujeito ótimo, cem por cento, mas que lhe produziu certa vez uma impressão esquisita, indefinível. O escritor julgou perceber no amigo “um intimíssimo tumulto, muito incômodo”. Diz Rosa: 

“Dali saí com Marduque um tanto transversalmente. (...) Comecei a sentir a urgente e defensiva precisão de não pensar nele”. 

Pensar no amigo, visualizar sua imagem, o incomodava, e ele acabou encontrando para isto uma solução estapafúrdia: 

“E, solução intermédia, acudiu-me então: poder pensar Marduque, mas... Marduque com um turbante na cabeça...”

Doideira? Concordo, mas o remédio de um doido é outro na porta, como prescreve a farmacologia popular. Rosa diz que depois que esta idéia lhe ocorreu tudo se pacificou. Só pensava em Marduque com o tal turbante na cabeça, o qual variava de cores ou de modelo, mas era um santo remédio para a lembrança incômoda: 

“A cada vez que pressentia, em presença ou à distância, aquele seu oculto sacolejar sulfúrico, bastava-me impor-lhe o turbante. Ele de nada desconfiava, e desse modo pude sustentar ilesa a nossa amizade, por tantos anos”.

Acontece que certo dia o escritor está na companhia de outro amigo a quem chama “Magnomuscário”, sujeito de tendências místicas “espécie de iogue swedenborguiano, gente que tudo muito vê”. Eis que Marduque também está presente, e cabe a Guimarães Rosa apresentar os dois amigos um ao outro. E logo em seguida Magnomuscário lhe revela ter sentido algo de estranho em Marduque, algo que por discrição não deseja especificar. Como Rosa insiste, ele faz apenas um comentário, complementado por um gesto: 

“Como Caifaz... podia usar um turbante...”

Guimarães Rosa confessa-se estarrecido com essa revelação, que nem sequer tenta explicar. Telepatia? Clarividência? Não sei, e o próprio escritor encerra o episódio confessando sua ignorância. 

Que um indivíduo sinta uma necessidade inexplicável de imaginar um conhecido usando turbante, já é algo um tanto fora-dos-eixos; que a mesma idéia ocorra a uma terceira pessoa, é coincidência demais. 

Podemos racionalizar imaginando uma possível semelhança de Marduque com um hindu iconograficamente famoso, requerendo o turbante para “fechar” a memória visual. Racionalizações assim, no entanto, são como tentar tapar uma torneira com uma pedra de gelo.







0845) Soy Loco por Ti, América (1.12.2005)


("Latinoamerica", de Anton Olea)

Acabou a novela América da Globo, e de repente percebi estar sentindo falta daquela musiquinha de todas as noites: “Soy loco por ti, América... Soy loco por ti de amores...” E pensei que certas palavras funcionam como uma incógnita algébrica, ou seja, podemos atribuir-lhes o valor que bem entendemos, sabendo que com isto estamos alterando o valor da fórmula inteira a que pertencem.

A novela da Globo celebra a América dos norte-americanos, estes reluzentes e faiscantes Estados Unidos que cintilam no horizonte de todos os países do mundo, mesmo os que ficam do lado oposto do planeta. Para onde quer que um terrestre se vire, em sua própria pátria, acaba enxergando as torres douradas, as torres de cristal, as torres de diamantes e de dólares da pátria do capitalismo, a qual, como aqueles palácios misteriosos dos contos de fadas, nos atrai quando estamos distantes e passa a nos repelir à medida que chegamos perto.

Elia Kazan fez um belo filme sobre o sonho da migração (no caso, dos gregos e armênios) para os EUA. O título original do filme é America America, e o título brasileiro foi um desses raros casos em que melhoramos o original: Terra do Sonho Distante. Não pode haver título mais preciso para essas histórias de gente humilde e corajosa que vê no horizonte um clarão que nunca se apaga, o clarão das luzes de um país onde há oportunidade para todos, desde que sejam honestos, trabalhadores, e acreditem nos ideais democráticos. Como resistir a um clarão assim?

Acontece que a canção “Soy loco por ti, América” não se refere a essa América mítica, e sim à nossa América Latina. Que eu me lembre, foi a primeira canção brasileira em que ouvi elogios ao nosso pobre subcontinente, repleto de lhamas, índios vestindo ponchos e ditadores bigodudos. A canção (de Gilberto Gil e Capinam) apareceu no primeiro disco de Caetano Veloso (1968). Diz-se que era uma homenagem velada a Che Guevara (“el nombre del hombre muerto ya no se puede decirlo, quien sabe...”). Mas seu ritmo latino, cheio de maracas e pistons, nos remetia de imediato ao mundo da salsa, do mambo, do merengue. Um mundo com o qual não nos identificávamos.

Uma vez, o editor da revista Veja deu uma entrevista no programa de Jô Soares, que lhe perguntou qual o tipo de notícia que menos interessava ao leitor brasileiro. E ele disse: “Qualquer coisa sobre a América Latina. A gente só publica por obrigação jornalística, mas ninguém sentiria falta se não publicássemos”. A América que queremos ver, ou que a classe média leitora de Veja quer ver no horizonte, é a América do dólar, de Miami, do “vou levar as crianças à Disney”. Não é a América que escritores como Eduardo Galeano tentam manter viva em nossa memória na trilogia Memória do Fogo. Eu digo que o Brasil mudou no dia em que a Globo fizer uma novela das 8 ambientada na América de Vargas Llosa, de Astúrias, de Garcia Márquez, de Ernesto Sábato, de Juan Rulfo.

0844) Os estilistas excêntricos (30.11.2005)


(Tom Zé)

Dentro da literatura de ficção científica há um grupo de autores a quem a crítica se refere com um termo que acho muito útil: “the oddball stylists”, “os estilistas excêntricos”. São autores que todo mundo admira mas não sabe onde enquadrar. Usam os temas e as imagens da FC, conhecem as regras do gênero, mas suas obras sabotam sistematicamente estas regras. Esta descrição destaca dois aspectos essenciais: 1) são estilistas (ou seja, têm um informação e um domínio da técnica literária muito acima da média), e 2) são excêntricos, estão sempre fazendo algo imprevisível, fora-de-esquadro. Este último aspecto é importante, porque um autor como Ray Bradbury (autor das Crônicas Marcianas e de Fahrenheit 451) é um estilista, mas não é excêntrico. Após o choque inicial de quando o conhecemos, sua obra vira uma planície calma, sem catabís e sem surpresas.

Estilistas excêntricos na FC são autores como Avram Davidson, R. A. Lafferty, Gene Wolfe, Cordwainer Smith e outros. Mas não é deles que quero falar aqui. Eu gostaria de pedir emprestado este conceito e aplicá-lo à Música Popular Brasileira, onde encontramos mestres de inquestionável talento que em princípio são grandes estilistas, mas não são excêntricos, pelo contrário: na sua obra, a única surpresa é a alta qualidade do que produzem, com uma admirável constância. Mas são autores que não nos pregam sustos. Eu não acho, por exemplo, que a obra de talentos como Edu Lobo, Chico Buarque, Milton Nascimento, Tom Jobim, Gilberto Gil, João Bosco e vários outros seja uma obra excêntrica. Pelo contrário. Se a MPB tem algum tipo de centro, são eles.

Mas o que dizer de um artista como Tom Zé? Um artista como Hermeto Paschoal? Um artista como Jorge Mautner, ou Jards Macalé? Para mim são estilistas excêntricos, porque mesmo que a gente não goste do que eles fazem (e muita gente que gosta de uns não gosta dos outros), ninguém pode negar duas coisas: todos são tecnicamente competentes, e nunca se pode afirmar com certeza como será o perfil de seu próximo trabalho. São fontes permanentes de surpresa, de susto, de imprevisto. Sua excentricidade pessoal não reside em seu comportamento meio “clown”, em sua mistura proposital do sublime e do grotesco, do erudito e do brega, do refinado e do descartável (embora todos eles tenham tais misturas, em doses variadas). São excêntricos porque temos a impressão de que o centro de seu mundo mental não coincide com o “centro” da música popular. Cada um deles parece ter um projeto próprio que só ocasionalmente coincide com “a linha evolutiva da música popular brasileira” que, ao que parece, era o projeto próprio de artistas como Tom Jobim ou João Gilberto. Os estilistas excêntricos da MPB têm o poder de subir ao palco e na primeira música puxar o tapete onde milhares de pessoas pensavam estar pisando minutos atrás, fazê-las dar uma cambalhota, e cair de volta sobre o tapete – que levanta vôo com todos juntos.

0843) A tragédia do Náutico (29.11.2005)



O vício do futebol me coloca às vezes em situações constrangedoras. Sábado passado, interrompi por mais de duas horas um trabalho urgente e importante, e fui assistir (em dois canais simultâneos) os dois jogos que decidiam, em Recife, a Série B do Brasileiro: Santa Cruz x Portuguesa, e Náutico x Grêmio. Estava torcendo pelos dois times pernambucanos, que, se vencessem ambos, subiriam de volta para a Primeira Divisão. Sentiram o drama? Eu sou Sport (lá em casa todo mundo é Sport, por causa de meu pai, que era recifense e torcedor do Leão da Ilha), e fico agora, a esta altura do meu campeonato particular, atrasando meu trabalho pra torcer pelo diabo duma cobra e dum timbu, só porque são nordestinos!

O Santa Cruz fez sua parte, no Arruda: virou de 0x1 para 2x1 ainda no primeiro tempo, e conseguiu a classificação. Vitória justa, se considerarmos que a Portuguesa tem um bom time, mas que finaliza pessimamente. O jogo de acabar com os cardíacos, contudo, foi o do estádio dos Aflitos.

O Náutico perdeu um pênalte ainda no primeiro tempo. No segundo, o juiz expulsou um jogador do Grêmio e logo em seguida marcou um pênalte contra o time gaúcho, o que fez explodir a maior confusão. Um chute na direção do gol que foi providencialmente desviado pelo cotovelo do jogador gremista, que, ainda assim, tem o braço próximo ao corpo e também parece fazer um movimento tentando se esquivar da bola. No mínimo, uma marcação duvidosa. Os jogadores do Grêmio perderam a cabeça, agrediram o juiz, e mais três foram expulsos. Começou aquela cena clássica do futebol brasileiro, com dirigentes gordos e apopléticos invadindo o campo, policiais de armadura dando encontrões em quem estivesse na frente, técnico querendo arrastar o time pro vestiário, vinte e tantos minutos de truculência patética.

Faltavam 10 minutos para terminar: o Náutico tinha 11 jogadores e o Grêmio 7. Bastava converter o pênalte, e talvez até fazer mais um gol, para sacramentar a vitória. Mas aí pisaram na grama as três bruxas de Macbeth. Não se deve brincar com os deuses do futebol, amigos. São deuses célticos e sangrentos, bretões e cruéis. Os deuses do futebol gostam de trovões e relâmpagos. Quando o juiz apitou, o jogador do Náutico bateu pessimamente o pênalte, e o goleiro defendeu. Segundos depois, um jogador do Náutico foi expulso por uma falta desnecessária. A falta foi batida, e Anderson, um desses negrinhos-do-pastoreio que o futebol gaúcho revela de vez em quando, serpenteou de área adentro, arisco, e mandou para as redes. Um a zero, Grêmio campeão.

Em cerca de um minuto o Náutico foi da euforia ao estado de choque, e o Grêmio foi do vilipêndio ao pódio. É por estas e outras que os coleguinhas da página esportiva não cansam de se referir à “magia do futebol”. Futebol é zig-zag, reviravolta, salto quântico, cambalhota do destino, lance de dados que jamais abolirá o Acaso. Ou, como dizem os colegas: é uma caixinha de surpresas.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

0842) A flor do coco (27.11.2005)




Minha mãe vivia fazendo bolos, tapiocas, cocadas, um monte de quitutes caseiros que requeriam coco. E toda vez que ela pegava um coco para partir perguntava aos filhos que estivessem por perto: “Vai querer a água ou a flor?” 

Eram duas opções irresistíveis, profundo dilema filosófico, daqueles de travar a placa-mãe de qualquer filho. Partido o coco, a água era recolhida num caneco e entregue a um, enquanto outro recebia a “flor”, ou seja, a primeira raspagem da carne branca e úmida que o coco guarda em seu interior. 

Coco ralado já é uma coisa gostosa; avaliem a primeira raspa, a raspa daquela superfície molhada, macia, ainda guardando a leve carnosidade que tem a polpa do coco verde. Depois de raspada a flor, o resto do coco, conquanto saboroso, não tinha o mesmo frescor, não trazia a mesma brisa ao paladar.

Chamem-me pseudo-intelectual, se quiserem, mas acho que com os livros se dá algo parecido. Quando descobrimos no balcão ou na prateleira um livro que nos atrai e o compramos, tudo nele ainda tem o sabor de novo. 

E nada se compara àquele primeiro contato quando, na tranquilidade do gabinete de leitura, abrimos o pacote e podemos por fim examiná-lo devagar, folheá-lo, conhecê-lo aos poucos. Examinamos a capa, lemos o texto de contracapa, as orelhas; vamos ao índice, vamos ao índice remissivo quando o há, corremos o polegar pelas folhas, admiramos as ilustrações, lemos um pedacinho aqui, outro ali, saboreamos o prefácio...

E aí ocorre algo curioso. No dia seguinte, quando pegamos o livro de novo, é como se um pequeno encanto já tivesse se desvanecido. O livro não tem mais aquele frescor, aquele gosto de coisa nova. 

Para todos os efeitos, não o lemos ainda, mas por outro lado é como se ele já tivesse perdido a novidade. Porque o que ele nos deu, naquela primeira noite de contato, foi a sua flor-do-coco, foi a superfície intacta e virgem de coisa nova, desconhecida, repleta de infinitas possibilidades. 

Depois daquela manuseada inicial, depois daquelas primeiras folheadas, o livro perdeu o seu verniz de Desconhecido e de Mistério. Fazia parte do mundo e seus mistérios; agora faz parte de nós mesmos e de nosso bocejante repertório de coisas já conhecidas.

Chamem-me moralista, mas palpita-me que é isto que ocorre também com o Cavalheiro Casanova, com Don Juan e com os demais grandes conquistadores da História. O que eles buscam não é uma mulher, é o verniz de Desconhecido, de Novidade e de Mistério que qualquer mulher traz num primeiro contato; é aquela sensação de frescor de um sabor jamais provado antes, de um sabor que tivesse estado se guardando a vida inteira para ser desfrutado pelo paladar do conquistador. Experimentada a flor, os 99% restantes do coco tornam-se (para eles) redundantes e supérfluos. 

O conquistador é um vampiro que não se alimenta de sangue, mas de ineditismo. Sua vida é uma busca incessante de novos amores, não por serem amores, mas por serem novos.






0841) “Dossiê H” e a poesia homérica (26.11.2005)





Para os que se interessam pela Literatura Oral e pela cultura popular, recomendo o saboroso livro de Ismail Kadaré, Dossiê H (Companhia das Letras, 2001, traduzido do albanês por Bernardo Joffily). 

Kadaré escreveu, entre outras obras, o romance em que se baseou o filme Abril Despedaçado, de Walter Salles. 

Em Dossiê H, ele mostra dois folcloristas irlandeses que partem para a Albânia para registrar os longos poemas épicos que os rapsodos de regiões montanhosas passam de geração em geração, por transmissão oral. Os dois folcloristas estão interessados em reconstituir como a poesia oral da Grécia dos tempos homéricos acabou se aglutinando na forma da Ilíada e da Odisséia, e descobrem que a Albânia é o único país onde existe um fenômeno cultural semelhante.

É um romance curto (166 páginas), com algumas subtramas engraçadas que lhe dão sabor; o que mais me ficou na memória foi a descrição das regiões montanhosas da Albânia, que décadas de comunismo e burocracia estatal conseguiram manter cuidadosamente preservadas de qualquer tipo de progresso ou influência cultural externa. 

(Está aí um bom argumento, talvez o único, em favor das ditaduras e das oligarquias: elas imobilizam o Tempo em seu próprio país, o qual logo se transforma num museu de coisas que já desapareceram no resto do mundo.)

Max Roth e Willy Norton, os folcloristas, começam a encontrar rapsodos ambulantes nas estalagens das montanhas e a gravar seus enormes poemas. Eles se perguntam: “Quantos versos um rapsodo consegue saber de cor? Alguns falam em seis mil, outros em oito mil e até doze mil versos”. 

Existe um componente étnico muito forte nessa tradição; os sérvios (que são de raça eslava) competem ferozmente com os albaneses. 

“Durante mais de mil anos, albaneses e eslavos haviam se entrematado interminavelmente naquelas terras. Batiam-se por qualquer coisa: terras, fronteiras, pastagens, água; não seria de espantar se combatessem pelas estrelas do céu. E como se isso não bastasse, disputavam também a antiga epopéia, que, para completar a tragédia, florescia nas duas línguas, albanês e servo-croata. Cada povo teimava em se proclamar o criador da epopéia, reduzindo o outro à condição de ladrão, ou, na melhor das hipóteses, imitador”.

Parece o Nordeste, hem? Parece mais ainda na cena em que eles gravam sua primeira cantoria e o tocador de “lahute” (espécie de alaúde) bota o dedo no ouvido ao começar a cantar: “a necessidade de tapar um ouvido durante a apresentação se liga à transformação da voz do rapsodo, de ‘voz do peito’ em ‘voz da cabeça’, e à necessidade de manter o equilíbrio em face da vertigem que a cantiga provoca”. 

Parece com nossos velhos aboiadores nas vaquejadas, tapando o ouvido e largando o vozeirão mundo afora. Vozes que ressoam aqui e na Albânia, e em tantos lugares que ainda mantêm uma ligação telepática com a Grécia de Homero.





0840) Canções de alegria de viver (25.11.2005)





(Matisse: "A Alegria de Viver")

Falei dias atrás que as canções de depressão constituem um gênero da música popular; é óbvio que deve existir, e existe, o seu oposto simétrico, as “Canções de Alegria de Viver”. Canções em que letra e música se apóiam mutuamente para nos transmitir esta adrenalina indispensável à vida humana. 

Como não se sentir reconciliado com o mundo quando escutamos “Alegria Alegria” de Caetano Veloso, mesmo tendo ela sido utilizada como abertura de minissérie da Globo, e tocado até fazer um calo em nossa memória? Não importa: ela registra aqueles momentos mágicos em que um indivíduo sai de rua afora, “nada no bolso ou nas mãos”, embebido da pura e simples alegria de Ser e de Estar.

"Alegria, Alegria" ao vivo, no Festival da Record (1967):
https://www.youtube.com/watch?v=wWhnq5YcBfk


Parte do encanto da música pop se faz de canções aparentemente bobas e superficiais, mas que pela alquimia dos verbos e dos sons conseguem encapsular os momentos ensolarados da vida: “Feelin’ Groovy” de Paul Simon, “Brown-Eyed Girl” de Van Morrison, “Daydream” do Lovin’ Spoonful, “Good Day Sunshine” dos Beatles... 

Simon & Garfunkel, "Feelin'  Groovy":
https://www.youtube.com/watch?v=NvlW4bEjB5A

Van Morrison, "Brown Eyed Girl":
https://www.youtube.com/watch?v=UfmkgQRmmeE

Lovin Spoonful, "Daydream":
https://www.youtube.com/watch?v=M7u5SdjDSQQ

Paul McCartney, "Good day, sunshine":
https://www.youtube.com/watch?v=rFxXoHkIwMk


O que faz o encanto destas músicas? Talvez o timbre claro das guitarras, uma cadência meio lânguida aqui, meio saltitante acolá, comunicando um prazer de quem anda rápido sem pressa; as vozes traçando melodias que espontaneamente temos vontade de cantar junto... 

São meras musiquinhas, nenhuma Obra de Arte do Cânone Ocidental, mas trazem aquele abençoado poder de nos fazer emergir, numa manhã depressiva, das nuvens soturnas do mau-humor e dentro de meio minuto estar assobiando, tamborilando na mesa, achando bom estar vivo.

Há diferentes formas de alegria; há alegrias mais sérias e reflexivas, como a que nos traz a grande canção de Violeta Parra, “Gracias a La Vida”, que me evoca a imagem de alguém num terraço, ao entardecer, vendo o sol se pôr, e dando um balanço nas coisas boas que há para lembrar. 

Ou a beleza da “Manhã de Carnaval” de Luís Bonfá e Antonio Maria, melodia e letra entrelaçadas na criação de um clima de quem acorda e já abre os olhos feliz da vida, inundado de paz e de expectativa pelo dia que começa: “Manhã, tão bonita manhã... Na vida uma nova canção...” 

E, num clima muito semelhante, a irretocável “Estrada do Sol” de Tom Jobim e Dolores Duran: “É de manhã, vem o sol, mas os pingos da chuva que ontem caiu ainda estão a brilhar, ainda estão a dançar, ao vento alegre que me traz esta canção...”

Mercedes Sosa, "Gracias a la vida":
https://www.youtube.com/watch?v=WyOJ-A5iv5I

João Gilberto, "Manhã de Carnaval":
https://www.youtube.com/watch?v=JKX2VSMj-zs

Elis Regina & Gal Costa, "Estrada do Sol":
https://www.youtube.com/watch?v=Clxr8rH1FAs



Será este um gênero legítimo da música popular? 

Para os poetas, sim, porque certos momentos que pedem expressão estética se afirmam primeiro como um sentimento-de-vida geral, total, e é irrelevante se irão se transformar numa valsa ou num reggae ou sei lá em quê. 

Quando um letrista se senta à janela para escrever uma letra, em geral está se lixando para ritmos e arranjos. É a luz de um momento que ele está querendo captar, e sorte dele se depois encontrar um músico que, lendo seus versos, encontre uma melodia, uma harmonia e um ritmo que pareçam estar sentindo e dizendo a mesma coisa.





0839) A arte da dupla leitura (24.11.2005)




A Disneylândia de Hong Kong foi inaugurada, e é curioso ver os relatos sobre as adaptações feitas no projeto básico para adequá-lo aos costumes chineses. Uma das principais influências é a desse tal de “Feng Shui”, que eu pensava que era uma invenção da Zona Sul carioca, mas não, existe lá na China também. 

O parque inteiro foi planejado para atender a essa arte de orientação espacial das instalações, assegurando o fluxo livre de energias positivas, As alamedas, por exemplo, são curvas, em vez de retas; as montanhas ladeiam o parque, cuja entrada fica virada na direção do mar. O fato de haver uma pequena ilha no oceano em frente é considerado positivo. Os chineses não gostam de vastas extensões contínuas de água. Para eles, mar sem ilhas é como céu sem estrelas.

O mais interessante são as aliterações verbais que dão boa sorte. O restaurante do hotel do parque tem 2.238 lótus de cristal em sua decoração. Por que um número tão exato? Porque o número 2.238 em chinês soa parecido com a frase “riqueza com facilidade”. 

O hotel, por outro lado, não tem o quarto andar (como muitos outros prédios na China), porque a palavra “quatro” soa parecido com a palavra “morte”. Nas lojas de souvenir não se acham relógios; é um presente pouco usado na China, porque em chinês a frase “dar um relógio” soa parecido com “ir a um enterro”.

Não vamos mangar deles – afinal, em nossa própria cultura o número 24 sugere que um sujeito é homossexual, o número 171 no Rio é sinônimo de desonestidade, e o número 13 costuma dar azar (principalmente a quem se veste de preto e vermelho). 

O mais interessante é essa superstição baseada na semelhança fonética das palavras. A língua chinesa é tremendamente monossilábica, e depende muito do modo de pronunciar. Um trechinho como, sei lá, “chuan cheng djun kai” pode significar “Ó minha Amada, teus olhos parecem dois lótus ao luar do verão” mas com mudança de entonação (“tchuan tchen joon kiai”) pode querer dizer “Eita, chegou a conta do meu celular”.

O escritor de ficção científica Cordwainer Smith, criado na China, foi conselheiro militar americano na Guerra da Coréia. Era difícil conseguir fazer com que soldados chineses se rendessem, porque a rendição era considerada uma desonra. Smith espalhou milhares de panfletos pedindo aos chineses que, ao se entregar, gritassem para os americanos as palavras chinesas “amor”, “dever”, “humanidade” e “virtude”, que, pronunciadas em conjunto, soam como as palavras inglesas “I surrender” (“Eu me rendo”). 

Uma bela utilização da ambigüidade fonética, sons quase iguais com significados completamente diferentes. Smith considerava este o ato mais importante de sua biografia (salvou centenas de vidas), e seus belos contos de FC são cheios de personagens e lugares com nomes poéticos, às vezes com um toque oriental: Alpha Ralpha Boulevard, Lady C’Mell, Clown Town, Lord Jestocost, Lord William Not-from-here, Magno Taliano, Dolores Oh.








0838) O Demônio Logrado (23.11.2005)



Andei lendo algumas coletâneas de contos populares do ciclo chamado de “Demônio Logrado”. São todas aquelas histórias em que um indivíduo faz um pacto qualquer com o Diabo, oferecendo sua alma em troca de um benefício qualquer, e depois o Diabo aparece para cobrar o prometido. O sujeito (geralmente com a ajuda da esposa) acaba inventando um estratagema para se ver livre do Tinhoso. É um tema comum a todos os folclores, de todas as épocas.

Alguns episódios foram recontados por Altimar Pimentel numa entrevista recente à revista Preá (de Natal). Ele diz que a mulher do sujeito consegue estabelecer com o Diabo um acordo: se ela pedir uma coisa e o Diabo não conseguir executar, o marido tem sua alma de volta. As soluções são várias. Numa delas, a mulher mostra uma lagoa (num dia de sol abrasador) e diz ao Diabo que esvazie a lagoa de todos os sapos que tem ali. E o Diabo se dana a tirar sapo de dentro da lagoa, e os sapos (morrendo de calor) se danam a pular de volta... e aquilo não acaba nunca. Outro estratagema da mulher é soltar um peido e dizer ao Diabo: “Segure isso aí!”

As histórias do Demônio Logrado são uma coisa curiosa. Porque em princípio bastaria ao Diabo recorrer à força bruta ou, por extensão, aos seus poderes sobrenaturais – e tudo estaria resolvido. Ela estalaria os dedos, e a lagoa ficaria esvaziada de todos os sapos, ou então o peido da mulher apareceria preso em sua mão como se fosse uma fumacinha azulada, ou sei lá o que. O Diabo só perde porque aceita as regras de um jogo onde ele forçosamente tem que se nivelar aos mortais, aos humanos. No momento em que ele se nivela, ele se torna igual aos outros, que acabam por se mostrar mais engenhosos do que ele. Quando o campo de batalha não é a força ou o poder sobrenatural, mas a mera engenhosidade, o Diabo não é páreo para a mulher.

Isto me parece uma metáfora da transição entre a Guerra e a Política, ou entre a Violência e a Negociação. A guerra interessa aos povos que são militarmente fortes, e, inversamente, a política interessa aos que são fortes em argumentação, em negociações jurídicas, em Direito Internacional. Os contos do Demônio Logrado servem como advertência aos humanos: “Não lutem com as armas do Demônio, senão vocês estão perdidos; chamem o Demônio para lutar com armas iguais às de vocês”. Mas ao mesmo tempo essas histórias podem servir de alerta ao Demônio, deixando-lhe bem claro que o maior erro que ele pode cometer é abrir mão de seus poderes sobrenaturais. Trazendo isto para o campo da Guerra e da Política, qualquer negociação bem sucedida em que um país militarmente fraco consegue impor seus interesses (geralmente através de uma mediação internacional) a um país militarmente mais forte, serve também de alerta para este último. A Guerra é o momento em que o Diabo resolve usar plenamente seus poderes, em vez de cometer o erro tático de se nivelar aos humanos.

0837) John Fowles (22.11.2005)



Morreu na Inglaterra há alguns dias, aos 79 anos, o romancista John Fowles, que é mais conhecido como autor de O Colecionador (filmado por William Wyler) e A Mulher do Tenente Francês (filmado por Karel Reizs). Na esteira destes dois enormes sucessos, Fowles teve outros livros traduzidos no Brasil: A Torre de Ébano, O Mago. Sua obra é uma curiosa mistura entre o romance vitoriano tradicional e a literatura dos anos 1960, cheia de interferências metalínguísticas e experiências formais.

O Colecionador é seu livro mais famoso e mais acessível. Um sujeito introspectivo e insignificante é apaixonado à distância por uma estudante de Belas Artes, em Londres. “Apaixonado” é um termo elogioso para descrever a obsessão psicótica que ele sente, e que é desencadeada quando ele ganha uma fortuna na Loteria e consegue seqüestrar a moça. O livro começa do ponto de vista dele, e a certa altura se transfere para um diário que ela começa a manter no cativeiro. São dois pontos de vista quase alienígenas: um sujeito desajustado, egoísta e poderoso, e uma mulher encantadora e cheia de vida que se vê totalmente à mercê dele. A tragédia moderna de mundos inconciliáveis em rota de colisão.

A Mulher do Tenente Francês transcorre no século 19, e o protagonista é um rapaz de ótima família britânica, com casamento marcado e tudo, que se apaixona por uma mulher que todos na cidade desprezam, uma mulher que anos atrás foi amante de um soldado francês, o que a faz agora ser considerada uma espécie de pária e prostituta. É a típica história de paixão que não pode dar certo de jeito nenhum, e Fowles oferece ao leitor uma escolha entre três finais diferentes. É um livro brilhante e um tanto cruel, muitíssimo bem escrito.

O Mago se passa numa ilha da Grécia, onde um jovem professor inglês vai morar depois de romper com sua namorada. Ali ele conhece um milionário grego que começa a envolvê-lo num jogo de alucinações, encenando situações absurdas e surrealistas que fazem o protagonista duvidar da própria sanidade mental. Fowles introduziu neste livro o conceito de “godgame”, “o jogo de ser Deus”, em que um indivíduo todo-poderoso dá-se o trabalho de produzir para seu próprio deleite situações mirabolantes envolvendo outras pessoas, fazendo com que suas “vítimas” percam a distinção entre encenação e realidade. Digamos que se trata de imensas “pegadinhas”, minuciosamente planejadas, e executadas a sério.

Mais informações sobre a obra de Fowles podem ser encontradas em seu saite (http://www.fowlesbooks.com/). Ele foi por alguns anos considerado “um dos maiores escritores do mundo”, mas parece que tinha um jeito meio rabugento e não gostava muito de publicidade e badalação. Seus romances são em geral enormes e absorventes: minha edição de The Magus tem 668 páginas, e não era fácil largá-las na hora de ir dormir. Sua literatura é opulenta, precisa, cheia de enorme nitidez descritiva e de incomparáveis ambiguidades.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

0836) Os 360 graus do rock (20.11.2005)




O concerto de rock está se distanciando cada vez mais do show de música popular tradicional. Música é música. Rock é música mais tecnologia. O objetivo de um show de música é mostrar canções. O objetivo de um show de rock é mergulhar o espectador numa experiência sensorial que consiste basicamente em sons e luzes. Estes sons e luzes são gerados em torno de canções, mas ganham tal autonomia que as canções nem precisam ser (e geralmente não são) grande coisa. Um show acústico do U-2 pode até ter umas boas canções (eles são bons letristas e músicos), mas essas canções renderiam muito pouco nesse formato.

Um artigo recente de William Gibson na revista Wired sobre um show do U-2 traz o ponto-de-vista de um escritor de ficção científica (o cara que criou a palavra “ciberespaço”) diante de uma das grandes exibições de alta tecnologia na indústria da música. Gibson lembra a contracapa de um LP do Pink Floyd em que o fetichismo high-tech do grupo se mostrava através de uma foto em que toda a aparelhagem eletrônica usada no show era enfileirada no chão, no meio de uma estrada, formando uma imagem simétrica com todos os instrumentos, amplificadores gigantescos, até as baquetas da bateria. A foto deixava bem claro que o rock não era mais produzido apenas com o velho trio guitarra-baixo-bateria. Amplificadores, pedais, sintetizadores & companhia passavam a ter um papel igualmente importante. Não se tratava mais de organizar notas musicais, mas de (literalmente) “fazer um Som”.

Já falei aqui (“O Zé Pelintra de Chumbo”, 20.3.2004) da massa sonora que constitui um show do Led Zeppelin, onde se pode saltar em segundos de um close sonoro onde percebemos o menor deslizar dos dedos num violão acústico para um ataque de Metal Ululante capaz de erguer nossos pés dez centímetros acima do chão. Essa esfera sonora sempre foi reforçada por uma esfera luminosa equivalente. A experiência visual que tive ao ver os Rolling Stones na Praça da Apoteose com “Bridges to Babylon” foi quase uma revelação tão intensa quanto o seu recado sonoro.

Paul McCartney abriu seu histórico show no Maracanã com um longo videoclip dirigido por Richard Lester. Agora, William Gibson comenta o novo show do U-2, “Vertigo”, e seu painel luminoso com 12 mil lâmpadas coloridas, controladas por computador, compondo os 12 mil pixels das imagens que se sucedem. Câmaras em infravermelho são dirigidas para a platéia, captando detalhes e jogando-as em enormes painéis. “Cuidado para não botar o dedo no nariz durante o show”, adverte o diretor de imagem, que manipula as câmaras com o auxílio de um console de PlayStation adaptado.

O megaconcerto de rock é uma esfera sensorial com 360 graus de experiência áudio-visual controlada. Sua medula continua sendo a música produzida pela banda no palco, mas seus efeitos se expandem para abranger som, luz, imagem, e a energia cega criada pela criatura de dez mil corpos e dez mil cabeças: a Platéia.




0835) 140 anos de Leandro (19.11.2005)



Neste sábado, 19 de novembro, comemoramos 140 anos de nascimento do poeta Leandro Gomes de Barros, o criador da literatura de cordel nordestina. Num dos primeiros artigos que escrevi aqui no JPB (“Viva Leandro”, 26.3.2003), lembrei aos leitores a necessidade de uma biografia do grande poeta pombalense. Reconstituir a vida de um sujeito de século e meio atrás é como catar confetes na rua um mês depois do Carnaval. A vida de Leandro tem inúmeras questões a serem respondidas, e é difícil supor quem as responda. O que lia ele na infância, na adolescência? Como foram os anos que viveu em Teixeira, certamente cruciais para sua formação como poeta popular? Leandro tinha 5 anos de idade quando ocorreu a lendária cantoria entre Romano do Teixeira e Inácio da Catingueira; é de se imaginar as histórias que naquela época corriam de boca em boca sobre estes gigantes do repente, e o quanto isto terá impressionado o menino.

Os folhetos de Leandro, já no Recife, trazem os endereços de suas tipografias e residências. Ruas terão mudado de nome durante todos estes anos, mas talvez não seja impossível fotografar os endereços atuais, e traçar um mapazinho do “Recife de Leandro”, que imagino gravitando em torno do Mercado São José. Quanto à famosa transação comercial em que João Martins de Athayde comprou as máquinas, a oficina e os folhetos de Leandro, após sua morte, imagino que os descendentes de Athayde talvez guardem documentos, cartas, registros, que possam nos dar uma idéia (em valores monetariamente corrigidos) do peso econômico do cordel durante a vida de seu criador.

Dois temas constantes nos folhetos de Leandro são carestia de vida e esposa encrenqueira. Até que ponto isto refletia sua real vida doméstica? Outro detalhe importante é o do momento da substituição das antigas máquinas de composição manual (usadas nos jornais) pelos modernos linotipos; em que período isto se deu, e teria tido de fato um papel na criação do cordel? Meu palpite é que essa mudança se deu a partir de 1880, e “sucateou” as antigas máquinas, que Leandro pôde comprar por preço de ocasião, dando início à impressão dos primeiros poemas do Romanceiro Popular Nordestino.

Será possível mapear hoje a rede de distribuição que levava os folhetos de Leandro para outros Estados do Brasil? Onde Leandro conseguia os clichês para as capas de folhetos? Quanto custava uma resma de papel? Quais os seus títulos que venderam mais? Estas perguntas, e muitas outras, ainda podem ser respondidas hoje; não sei se poderão daqui a mais algumas décadas. Para a análise literária das obras precisamos apenas das obras, mas para entender todo o fenômeno social do cordel temos que esclarecer também todas estas questões de ordem material.


0834) “O Professor e o Demente” (18.11.2005)



O título completo deste excelente livro de Simon Winchester (Ed. Record, 1999) é: O professor e o demente – Uma história de assassinato e loucura durante a elaboração do Dicionário Oxford. É a história de dois homens diferentíssimos e semelhantes. Um deles é o Prof. James Murray, que a partir de 1879 começou a editar o Oxford English Dictionary, talvez o mais extenso dicionário do mundo ocidental (não consigo visualizar, por maior que seja minha imaginação, o que seria um “Grande Dicionário do Idioma Chinês da Universidade de Pequim” ou coisa equivalente). Para editar essa obra gigantesca (doze volumes, 414 mil verbetes ilustrados por 1 milhão e 800 mil citações) ele liderou uma equipe de dezenas de pessoas e centenas de colaboradores do mundo inteiro. Até Tolkien, o autor de O Senhor dos Anéis enviou material para o dicionário.

Um desses colaboradores remotos foi o Dr. W. C. Minor, cirurgião americano que cumpria pena em Broadmoor, um asilo para lunáticos. Culto e de boa família, Minor era sujeito a ataques de paranóia, e durante um deles matou um sujeito que ia passando na rua. Foi internado no asilo, onde passava os dias lendo. A chance de colaborar com o Dicionário Oxford surgiu-lhe como uma bênção, mantendo-o ocupado durante anos, lendo obscuros livros dos séculos 16 e 17 para rastrear o primeiro aparecimento de milhares de palavras da língua.

O livro de Winchester conta a vida dos dois personagens, revela curiosos detalhes sobre o processo de preparação e edição dos dicionários (assunto que por motivos genéticos me interessa sobremaneira), discute a natureza e o tratamento da esquizofrenia... Reportagens deste tipo têm uma vantagem sobre romances: podem mudar de assunto quando lhes interessa, sem a obrigação da “continuidade dramática” ou que nome lhe queiram dar. Desse modo, Winchester num capítulo descreve as miseráveis condições de vida no bairro londrino de Lambeth (onde ocorre o crime de Minor), dá uma geral na história dos dicionários ingleses, relata alguns episódios arrepiantes da Guerra da Secessão norte-americana (em que Minor, ao que parece, ficou traumatizado e se desequilibrou mentalmente), discute questões obscuras do idioma...

Winchester aborda alguns acontecimentos que têm versões fantasiosas (como o primeiro encontro entre Murray e Minor) e restaura a possível verdade dos fatos; e mesmo quando pisa naquele perigoso terreno dos historiadores, o de imaginar o que Fulano de Tal estaria pensando num dia remoto, cem anos atrás, ele nunca perde a perspectiva: conjetura em voz alta diante do leitor, sempre deixando claro que se trata de conjeturas a partir de indícios históricos. Hoje em dia, vê-se muito alguém conceber um romance seguindo as regras da reportagem, ou escrever uma reportagem seguindo as regras da ficção. É um café-com-leite onde ambos os gostos estão presentes, mas não se pode separar um do outro.

0833) Cientistas distraídos (17.11.2005)


(Isaac Newton)

Li uma história em que um sujeito místico furou os próprios olhos e os próprios tímpanos porque a visão e a audição estavam atrapalhando seu contato com Deus. Ao que parece, ele achava que Deus estava apenas dentro da mente dele, e não no resto do mundo – o que me soa, no mínimo, como uma tremenda contradição. A meu ver, o indivíduo que faz isto está admitindo que sua fé é pouca e sua convicção é fraca, e que a luz do sol ou o barulho do trânsito não fazem parte da presença divina. Pois ele que faça bom proveito.

Com uma coisa, no entanto, eu concordo: os cinco sentidos são um contratempo, quando estamos tentando nos concentrar em idéias abstratas. Vem daí a proverbial distração dos cientistas. Dizem que Isaac Newton estava há vários dias resolvendo algum problema matemático complicado, sem comer direito. A empregada interveio: “Não, Seu Isaque, agora chega, o senhor agora vai ter que comer alguma coisa. Tá aqui um ovo, tá aqui a chaleira fervendo, tá aqui o relógio. Conte 5 minutos de fervura e coma o ovo” Ela foi na bodega, e quando voltou viu Newton sentado à mesa, segurando o ovo e olhando para ele, enquanto o relógio fervia calmamente na chaleira.

Para mim, isto não é sinônimo de abestalhamento. É sinônimo de alta inteligência, de uma mente superior, de uma capacidade de concentração que deveria envergonhar todos nós a quem tal coisa jamais aconteceria. Raciocínio abstrato é como um castelo de cartas. Tudo depende do encadeamento sucessivo de idéias, e qualquer interrupção desaba a construção inteira, forçando-nos a recomeçar do zero.

Muitos cientistas pensam por analogias visuais, como se criassem mentalmente uma “árvore genealógica” em que idéias se ramificam, se associam, se interligam. Einstein dizia que pensava por “intuições visuais e musculares”, e que depois tentava comprovar matematicamente as hipóteses geradas desta forma. E é claro que essa necessidade de concentração não cabe apenas aos cientistas, mas a qualquer pessoa que se dedique à criação abstrata e solitária: poetas, filósofos, matemáticos. Criação solitária requer silêncio, isolamento, concentração.

Por outro lado, pessoas criativas que trabalham em grupo (executivos, cineastas, engenheiros, regentes de orquestra, etc.) funcionam muitíssimo bem num ambiente cheio de gente falando em voz alta, porque aí trata-se de reunir e harmonizar o que se passa na cabeça de várias pessoas. Criação coletiva requer agrupamento, intensa troca de idéias, reavaliação constante do que está sendo feito, para permitir “correções de rumo” e ter certeza de que todo mundo está pensando a mesma coisa. Pode-se pensar criativamente em silêncio, e pode-se pensar criativamente em voz alta num lugar público. O místico citado no começo parece ter sido apenas um sujeito de temperamento extrovertido que julgava erradamente ter a obrigação de só poder pensar em Deus “para dentro”. O Deus dele devia estar lá fora.