domingo, 16 de março de 2008

0263) As barreiras invisíveis (23.1.2004)





(Ilustração de M. Guillemin para "La République 3000")


Imagine, caro leitor, que você está andando por uma vastidão deserta, e vê lá no horizonte uma espécie de muralha irregular que se estende a perder de vista, barrando o caminho. Quanto mais você se aproxima, mais fica perplexo com aquele muro de alguns metros de altura, que parece não ter fim, à direita e à esquerda, indo até onde a vista alcança. Você chega mais perto, e sua surpresa é maior. Não é um muro: é uma longa fileira de esqueletos de pessoas e animais, amontoados uns sobre os outros. Há esqueletos antiquíssimos, prestes a se esfarelar; outros recentes, ainda com pedaços de carne mumificada. Esqueletos humanos portando armas, roupas e utensílios de séculos atrás; e até mesmo esqueletos de mamutes, de brontossauros, de criaturas extintas, todos misturando-se numa profusão de ossos, crânios e objetos partidos. E tudo isto enfileirando-se a perder de vista no horizonte.

Esta é a imagem que me ficou do livro A Filha do Inca de Menotti del Picchia, uma tentativa de fazer literatura “julioverniana” no Brasil em 1930. Tentativa bem-sucedida, pois o livro está em catálogo até hoje, e em 1950 teve uma edição francesa pela Albin Michel, “La République 3000”. No decorrer do romance, ficamos sabendo que ali existia uma cidade futurista, oculta no Brasil Central, e “aquela barreira de esqueletos era uma misteriosa barreira elétrica, riscada no coração do sertão brasileiro por mãos invisíveis e prodigiosas.” Ou seja: há milhares de anos que animais aproximavam-se daquele ponto da campina e eram eletrocutados pelo campo de força invisível, tombando ali mesmo.

Este é um exemplo simples de um dos processos de formação de imagens da ficção científica. Em primeiro lugar, a gente se depara com algo estranho que surge ou acontece (a muralha inexplicável no horizonte). Podemos chamar a isto o Sinal; em outros livros é o encontro de um artefato (um monolito, uma espaçonave enterrada), a descoberta de um planeta habitado, etc. O Sinal é o que desencadeia pra valer a história, e faz com que os personagens se mobilizem para examiná-lo. O exame do Sinal faz brotar o segundo estágio, o Mistério. Ao ser visto de perto, o fato estranho revela-se muito mais estranho do que parecera à primeira vista. E a narrativa mostra o esforço dos protagonistas em encontrar uma explicação racional (embora fantástica) para o mistério: uma barreira invisível que eletrocutava os intrusos. É a Resposta.

A ficção científica fala muitas vezes “dos perigos da ciência”, mas na maioria das vezes ela nos conduz por um percurso mental que reproduz as fases da descoberta científica: o Sinal, o Mistério, a Resposta. É um processo de descoberta, de conhecimento. A FC, em vez de ser uma mera glorificação da tecnologia, é uma literatura que em última análise nos convence de que é possível solver mistérios, é possível explicar o aparentemente inexplicável.




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