Um trabalho musical que tem me emocionado é o CD gravado por Sérgio “Siba” Veloso com os músicos de Nazaré da Mata, “Fuloresta do Samba”. Siba estudou música na universidade de Pernambuco, tocou guitarra em banda de rock e, depois de percorrer musicalmente aquilo que Drummond chamava “os mesmos sem roteiro tristes périplos”, acabou encontrando sua turma e sua praia. Primeiro com o grupo Mestre Ambrósio, uma criativa parede sonora e poética à base de percussões, rabecas e loas de maracatu rural. E agora com o “Fuloresta”. Siba saiu de São Paulo, onde tinha ido morar com o resto do Mestre Ambrósio, e, como diria minha mãe, foi se socar lá em Nazaré da Mata, onde conviveu com os músicos locais, tocou, ouviu tocar, contou, ouviu contar, e compôs, sozinho ou em parceria com eles, as faixas do CD “Fuloresta do Samba”. Um disco emblemático a começar pelo título, onde um aparente erro de português gera uma faísca de pura poesia, e onde um aparente ritmo carioca emerge em sua universalidade mestiça e brasileira.
Que impulso leva um rapaz branco, de boa família, a ir fazer um Mestrado de Música não numa dessas tantas sorbones, mas no meio de músicos iletrados, que fazem uma música considerada velha? O cara que faz isso já tem tanta coisa aprendida, sabida e codificada! Ele sente falta do quê? Ele acha que precisa descobrir mais o quê? Em que diabo ele quer transformar o gesto cultural de fazer e tocar música? Deve ser algo parecido com o que o americano Ry Cooder sentiu quando em 1996 foi parar meio por acaso na ilha de Cuba e ali descobriu um tipo de música que o emocionou e o iluminou por dentro, a ponto de fazê-lo criar o projeto “Buena Vista Social Club”. É como se um sujeito saísse da Biblioteca Nacional, onde tudo está ao seu dispor, e fosse mexer nos folhetos pendurados em barbantes, na calçada. O que diabo pode ter ali que a Biblioteca não tenha?
Poderíamos perguntar também a Paul Simon, que em 1985 pegou um avião e foi para a África do Sul sem saber muito bem que disco ia gravar, mas já sabendo a quem pedir emprestado o conceito de Música. Daí brotaram os 14 milhões de discos que “Graceland” vendeu no mundo inteiro. Acho que em todos estes artistas, surge de repente um angústia de não estar achando algo nas estantes da Biblioteca. É preciso ir para a rua, pois foi lá, paradoxalmente, que se refugiou a Memória-Prima de nossa história musical. Claro que esses músicos “primitivos” têm técnicas próprias, linguagens próprias, truques e espertezas próprios, recursos do fundo do baú. Mas acima de tudo são Mestres, no sentido antigo da palavra, porque vêem a música (sem lhe dar estes nomes pomposos) como uma sagração do profano, uma imortalização do efêmero. A música que eles fazem é Vida destilada, concentrada, compactada. Por isso, talvez, os versos reverentes de Siba: “Eu estou pisando em terra de Reis, eu estou pisando...”
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