sexta-feira, 11 de julho de 2025

5189) "O Eternauta" e o fim do mundo (11.7.2025)




 
Sabemos com mais clareza, e mais riqueza de hipóteses, como vai ser o fim da humanidade do que como foi o seu começo.  Nosso começo se perde em hipóteses abstratas nos livros de paleontologia ou antropologia. Nosso fim, por outro lado, vem sendo insistentemente escrito, dirigido, imaginado, fantasiado e encenado de todas as maneiras possíveis no cinema e na literatura. 
 
Estou assistindo o seriado da Netflix O Eternauta (Bruno Stagnaro, 2025), baseado na famosa série de quadrinhos escrita por Hector Oesterheld e desenhada por Francisco Solano López e, depois, por Alberto Breccia. O Eternauta é um dos orgulhos da FC argentina desde seu lançamento original em 1957-59, seguido por uma segunda série retomada em 1969. 
 
Nunca li os quadrinhos; até tenho uma edição aqui, mas preferi mergulhar direto na série e avaliar seu impacto sem comparações com outro material. 
 
Não comparar, entretanto, é impossível. Histórias de fim do mundo continuam a pipocar por todos os lados. Por diferentes motivos, assisti duas destas obras ultimamente. 



 
No YouTube, vi há algumas semanas duas versões diferentes do clássico de John Wyndham The Day of the Triffids, o famoso livro em que uma chuva de meteoros deixa a humanidade (quase) toda cega, perseguida por plantas capazes de caminhar. 
 
Há duas versões em vídeo: uma versão mais antiga, de 1981, com seis episódios (direção de Ken Hannam), muito fiel ao livro original. E uma série de 2009, com dois episódios longos, de Nick Copus, que se afasta muito do livro mas tem bons efeitos especiais e também vale uma olhada. 
 
E dias atrás vi meio por acaso o filme A Quiet Place: Day One (2024, Michael Sarnoski), daquela franquia em que a Terra é invadida por seres bestiais com audição agudíssima, e quem fizer o menor barulho é rapidamente localizado e devorado. 
 
E o pesadelo recorrente volta. É uma Londres de ruas vazias mas com carros batidos, carros virados, corpos caídos no chão, gente cega tateando sem rumo. É uma Nova York de ruas vazias, carros incendiados, gente prendendo a respiração e caminhando na ponta dos pés por uma Quinta Avenida juncada de cadáveres. 
 
E agora é uma Buenos Aires coberta por uma neve venenosa que dá morte instantânea, as ruas vazias a não ser pelos carros batidos e os corpos deitados na neve, de celular em punho. 

 


O primeiro episódio de O Eternauta mostra meia dúzia de amigos presos em casa, surpreendidos pela catástrofe durante uma noitada de baralho e uísque. De repente falta luz, falta sinal de celular, falta rádio, falta tudo, e quem sai à calçada cai morto sem tempo para dar um ai. Todo esse episódio lembra uma peça teatral asfixiante, claustrofóbica, com pessoas aterrorizadas olhando o tempo inteiro através de janelas, desesperando-se com as famílias que estão longe e indefesas. 




Uma pergunta que vez por outra me fazem é sobre a possibilidade de um teatro de ficção científica. Mais de uma vez me ocorreu a idéia óbvia de um grupo de pessoas trancadas num local, protegendo-se minimamente de uma catástrofe que acontece lá fora, e discutindo como escapar dali, o que fazer, o que aconteceu de fato, como poderia ter sido evitado, quem foi o culpado da destruição do mundo – enfim, uma situação que tanto pode tender para o pessimismo existencial (as peças de Samuel Beckett, Jean-Paul Sartre) quanto para o questionamento da realidade (Philip K. Dick, J. G. Ballard). 
 
E foi justamente a obra de Ballard (principalmente High Rise ou The Drowned World) que me veio à mente no episódio 2, quando Juan Salvo (o onipresente Ricardo Darín) protege-se com capotes e máscara e sai pela cidade, vendo o desespero de pessoas trancafiadas em vagões de trem ou acuadas dentro do prédio em que moram. 
 
Nesses momentos, surge com força total aquela sensação não muito honrosa de que no momento do fim do mundo a primeira vítima é a solidariedade. Tudo se transforma num salve-se quem puder governado pela lei do mais forte. Vizinhos de rua, vizinhos de prédio, a turma do café, a turma do bar? Está todo mundo de rifle em punho. Ninguém conhece ninguém. 




Aos poucos as pessoas vão saindo à rua; grupos encapotados e com máscaras anti-gás, de arma em punho, começam a disputar os territórios. Enquanto isso, a neve venenosa continua a cair, cobrindo o piso, os prédios, os cadáveres. Buenos Aires inteira está coberta por essa geada branca e eles começam a perceber que ela é apenas a primeira ofensiva de limpeza que precede uma invasão. 
 
O “sobrevivencialismo” (“survivalism”) é uma corrente de pensamento que se amplia a cada década: pessoas que se dedicam a imaginar possíveis cenários de fim do  mundo, e possíveis estratégia de sobrevivência para bolsões localizados de seres humanos. Um conceito que me parece frequente nessa discussão (envolvendo videogames, ficção científica, ativismo cultural, ambientalismo, etc.) é de que não faz muito sentido falar no “fim do planeta” – o planeta continuará existindo, mesmo após um apocalipse nuclear, e mesmo precisando de dezenas de milhões de anos para recuperar a Natureza que ostenta hoje. 




Não faz sentido, também, falar no “fim da humanidade” – as catástrofes mais prováveis, mesmo nucleares, não chegariam a eliminá-la, mesmo reduzindo-a a uma pequena fração do que é hoje. Faz mais sentido falar o “fim da civilização”, do mundo como está organizado hoje. No caso de um cataclismo em escala planetária, o conceito de civilização industrial-militar-político-financeira iria ser esquartejado e recomposto de maneiras imprevisíveis. 
 
O Eternauta opta por mostrar uma invasão alienígena, um tanto no estilo de A Guerra dos Mundos de H. G. Wells (1898). A certa altura, a cidade é tomada por monstros, os “cascarudos” (o termo argentino original), besouros do tamanho de um bezerro, rápidos, incansáveis. Os monstros envolvem cadáveres numa espécie de casulo de seda, como os fios que as aranhas segregam, e os arrastam para baixo da terra. E demonstram uma certa organização: amontoam automóveis para bloquear ruas, com a rapidez de quem ensaiou bastante (ou de quem está sendo manipulado à distância). 



A primeira temporada (seis episódios) está completa no Netflix, e anuncia-se que a segunda já foi aprovada.
 
 




sexta-feira, 4 de julho de 2025

5188) O conto de mistério e suas variantes (4.7.2025)



 
Uma coisa é conto de mistério, e outra coisa é conto de crime. O que chamamos “conto policial” é a convergência entre os dois. Uma coisa não depende literariamente da outra. Há milhares de exemplos de ótimos contos (ou romances) onde aparece apenas um dos dois. 
 
Quando a gente vai ler em inglês, contudo, o romance policial aparece quase sempre sob a rubrica “Mystery”. Cada pessoa tem suas simpatias: eu simpatizo mais com o conceito de Mistério do que com os conceitos de crime, polícia, suspense, espionagem, investigação... 
 
Qualquer manual de escrita criativa ou de roteiro que a gente folheia irá nos dizer que o que empurra uma narrativa para diante é o Conflito. Ou seja: para que a narrativa tenha impulso, motivação, tensão psicológica, e force o leitor a ficar virando as páginas, sem conseguir soltar o livro, é preciso haver Conflito. O personagem quer algo, mas há uma porção de forças (pessoas, instituições, leis, etc.) tentando impedir: Conflito. Ou então o personagem não quer algo, e as mesmas forças tentam impor esse algo sobre ele: Conflito. 
 
Eu concordo com a importância do Conflito, mas faço algumas ressalvas. A primeira é: pelos resultados que vejo por aí, as pessoas traduzem “conflito” por “briga, agressão mútua, guerra”. Conflito, para elas, significa troca de socos ou de tiros, perseguições, ameaças, duelos violentos. Ou então personagens brigando entre si o tempo todo. 
 
A segunda ressalva é que há milhões de narrativas importantes, na literatura, no cinema, no teatro, em que há elementos muito mais importantes do que o conflito, e na verdade os conflitos que se estabelecem nessas histórias são um efeito secundário do tema principal. 



 
Peço licença aos partidários do Conflito para sugerir que um motor igualmente possante para uma narrativa é o Mistério. Ou seja: a tensão e o equilíbrio entre o conhecido e o desconhecido. Podemos graduar o microscópio até o nível mais elementar de definição: o “mistério” jaz exatamente nessas centenas de páginas que não lemos ainda, quando abrimos o livro no famoso “Capítulo 1”. Todo livro é um mistério à nossa espera. 
 
Como esse nível é o mais óbvio, nem vou me demorar nele. Lembro, porém, que toda narrativa de ficção consiste no desdobramento gradual de informações, revelações, iluminações de todos os tipos. Isto acontece através da ação, que nos conduz ao longo de surpresas, peripécias, suspenses e desfechos, puxadas de tapete, “plot twists”. São os personagens, que evoluem e se modificam (ou se revelam) ao longo da história. É o próprio ambiente, que nos traz revelações inesperadas (aqui penso especialmente nas histórias fantásticas que transcorrem em mundos bizarros). 
 
Quando não conseguimos largar um livro e ficamos virando página, virando página, é porque um Mistério se ergueu à nossa frente, para nos atrair; e ele vai sendo revelado de-pouquinho, para manter essa atração. 
 
Eu uso de vez em quando, para abordar contos de mistério (em qualquer gênero literário) dois conceitos que chamo de “Protocolo da Resposta” e “Protocolo da Pergunta”. São conceitos opostos, que podem até vir misturados numa mesma narrativa, mas convém examinar cada um em separado. 
 
O Protocolo da Resposta é uma espécie de pacto, entre o autor e o leitor, de que os mistérios apresentados ao longo do livro têm uma resposta, elaborada pelo autor, e essa resposta será fornecida ao leitor no final, no interior da própria narrativa. 
 
Como se o autor avisasse: “Fique tranquilo. Sei que parece tudo confuso, ou sem pé nem cabeça, mas tudo isso vai ter uma explicação no fim.” 



 
O exemplo mais comum desse protocolo é o conto de detetive -- onde há um crime misterioso, cheio de pistas enigmáticas ou contraditórias, mas no final o detetive apresenta uma solução satisfatória para toda essa confusão. O leitor vai dormir tranquilo. O mistério foi respondido. 
 
Já o Protocolo da Pergunta é uma espécie de pacto em que o autor não promete nada ao leitor além da formulação de perguntas, de mistérios, de enigmas. A função dessas histórias não é esclarecer mistérios, mas deixá-los flutuando no ar, enquanto autor e leitor, de braços cruzados, os observam, perguntando-se: “E agora?...” 
 
Há quem deteste histórias assim. Há quem goste, e muito (eu, por exemplo). Os romances de Franz Kafka. A maioria dos filmes de David Lynch. Os contos de Robert Aickman. 
 
Por que? Talvez porque na vida real a quantidade de perguntas não-respondíveis seja muito grande, e a gente precise “engrossar o couro”, como se diz popularmente, para poder lidar com elas. Tornar-se calejado.  Não se deixar abater pelo Desconhecido. Ele faz parte da experiência humana. 
 
E é por esse mesmo motivo, claro, que as histórias com o Protocolo da Resposta nos são tão bem vindas, parecem tão confortáveis, como uma água de coco em dia de muita sede. 
 
Mas enfim – a natureza da experiência literária é que seja variada, divergente, contraditória, complementar... Cada história cumpre uma função diferente num momento diferente. E cada leitor escolhe o que lhe convém. 
 
Algumas semanas atrás, ministrei um curso online sobre a narrativa policial, A Narrativa de Mistério e Crime, pelo Instituto Caminhos da Palavra, capitaneado pelo imbatível Henrique Rodrigues. 


 
Foram quatro aulas muito proveitosas, e surgiu o pedido para uma expansão – que vem agora, pelo mesmo Instituto, nos dias 8, 15, 22 e 29 de julho (sempre às terças-feiras), e vai se intitular “O Conto de Mistério e Suas Variantes”. 
 
Vamos examinar contos de mistério de diferentes formatos: mistério detetivesco, mistério sobrenatural, mistério psicológico, mistério fantástico... Os rótulos não importam muito, mas com essa pequena amostra (quatro aulas, doze contos apenas!) é possível ter uma idéia das variações possíveis para esse tipo de conto. 
 
Que dependem, sempre, da criatividade e imaginação do autor – e da receptividade e imaginação do leitor, que precisa entender qual o protocolo que rege aquele conto, e aceitá lo numa boa.  
 
Informações e inscrições aqui:
Link: https://caminhosdapalavra.com.br/Cursos/o-conto-de-misterio-e-suas-variantes-com-braulio-tavares/
Mail: contato@caminhosdapalavra.com.br
Fone: (21) 98816-7955  
 
 



sexta-feira, 27 de junho de 2025

5187) Esse artista é meu (27.6.2025)




 
É uma discussão que ferve por aí desde o tempo de Adão e Eva: por que motivo nos sentimos incomodados quando um artista que admiramos passa a ser admirado / consumido / incensado por gente “que não tem nada a ver”? 
 
(Primeira digressão: escrevi “desde o tempo de Adão e Eva” mas tecnicamente eu deveria jogar essa referência para o momento da primeira obra de arte registrada no Livro do Gênesis, coisa que não consigo situar... Qual seria?) 
 
Há distorções que são óbvias e chegam a ser caricaturais. Lembro muito bem da cara de dignidade ofendida de um amigo meu, comunista, setentão, nordestino, me mostrando no smartphone uma passeata de bolsonaristas cantando “Pra Não Dizer Que Não Falei De Flores” de Geraldo Vandré, a Marselhesa esquerdista de nossa mocidade. 
 
Um incômodo mais sutil é o que acomete o pequeno fã-clube de algum artista de real talento que durante alguns anos só se vê reconhecido por esse núcleo fiel. Eles compram e divulgam seus livros, ou comparecem aos seus shows, peças, filmes. Vão aos poucos se solidificando num grupo onde todos são devotos e especialistas. Trocam informações entre si, reúnem-se para conversar sobre o artista, estão confortavelmente instalados numa comunidade que os aproxima e aconchega. 



(Os Ramones no metrô, foto de Bob Gruen)

 
E então alguma combinação de circunstâncias faz com que o “seu” artista seja revelado a esse ogro de mil cabeças, estúpido, insaciável, chamado O Grande Público. O escritor que vendia 20 mil livros passa a vender 700 mil. A banda de garagem que tocava em pequenos clubes agora está nos Lollapalooza e outros festivais, com turnê marcada na Europa. Ou seja, venderam a alma – não ao Diabo, com quem até Robert Johnson se entendia; mas ao Capitalismo, que é muito pior, porque existe. 
 
E de uma hora para outra os conhecedores-a-fundo e apoiadores-sinceros daquele Artista se veem atropelados por uma multidão de neófitos que ouviram cantar o galo mas não sabem onde, o que não os impede de ter opiniões exageradas e ruidosas sobre a afinação do galo e o giro da rosa-dos-ventos. E não adianta alguém dizer: “Eu acompanho esse artista há dez anos.” A resposta vai ser: “E daí?”.  
 
Penso nisso de vez em quando quando os meus Artistas obscuros são descobertos pela imprensa cultural ou, pior ainda, pela televisão. Ou, ainda pior, por influênceres que se baseiam em seus seis meses de experiência para emitir julgamentos definitivos sobre algum assunto em que eu queimo as pestanas desde quando tinha apenas o dobro da idade deles. 
 
A relação artística pode ser reduzida, de início, a um triângulo: Autor / Obra / Leitor (vou chamar só “leitor”, para simplificar).  Nunca é um triângulo equilátero, há sempre alguma dupla de pontos mais próxima, mas não importa: a área delimitada por estes três é o início de toda apreciação estética. 
 
Quando um quarto ponto se mete... essa área ganha outro tamanho, outra direção, outro significado. E aquele território que eu imaginava estar sob meu controle de repente não está mais. O playground aumentou de tamanho mas está cheio de gente esquisita que eu não conheço. (“Eu”, no caso, não tem que ser necessariamente a minha pessoa; é o grupo-de-consenso do qual eu faço parte.) 



(Bob Dtlan no estúdio, foto de Daniel Kramer)

 
Quando Bob Dylan se afastou da canção de protesto, aderindo à guitarra elétrica e ao rock, mais do que a repulsa ao estilo pop o que se viu foi a fúria dos que achavam que tinham um artista sob sua jurisdição: “Você vai fazer o que nós gostamos; você é nosso.” E Dylan (camaleônico, escorregadio, elusivo) não estava interessado nisso. 
 
Um artista tem sucesso sólido e permanente quando sabe (e consegue) conciliar a convivência entre o “núcleo duro” de seus fãs primeiros e fiéis, e essa vasta periferia dos que chegaram muito depois mas são muitíssimos mais. 
 
A psicologia do fã-raiz tende a ser ditatorial, se lhe derem muita corda. Não é apenas o fã bobinho das bandas pop. Os fãs intelectuais podem ser igualmente emocionais e possessivos. Quando Umberto Eco estourou vendendo milhões de cópias de O Nome da Rosa surgiram (na Europa, principalmente) protestos furibundos de semiólogos que se julgavam traídos porque seu ídolo estava agora “escrevendo romances comerciais para ficar rico”. 



(Kathy Bates, em Misery de Rob Reiner) 

 
Claro que nada se compara ao fã-medusa, aquele que tenta petrificar o Artista amado. Sua encarnação mais górgona é Annie Wilkes, a personagem interpretada por Kathy Bates no filme Misery (Rob Reiner, 1990), baseado no livro de Stephen King. Ela não apenas sente-se dona do Artista: sente-se patroa. Sente-se capacitada a dizer-lhe o que deve escrever, e de que modo. É o caso extremo em que o rival não são os outros fãs, mas o próprio Artista, quando teima em ser ele mesmo e fazer somente o que quer. 




Um caso igualmente extremo, mas mais sutil do que o da história de Stephen King, é o do conto “Queremos Tanto a Glenda”, de Julio Cortázar, na coletânea do mesmo nome (creio que no Brasil saiu como Orientação dos Gatos, Nova Fronteira, 1981). 
 
Nele, Cortázar põe em cena uma nova versão, silenciosamente maligna, do Clube da Serpente, o círculo de intelectuais expatriados que, em O Jogo da Amarelinha (1960) devora e discute exaustivamente a obra teórica de um tal Morelli, sem saber que se trata de um velhinho obscuro que mora não muito longe deles. 
 
Neste conto, porém, trata-se de um grupo de admiradores da atriz de cinema Glenda Garson (uma homenagem explícita a Glenda Jackson). O grupo surge espontaneamente, porque começam a avistar-se uns aos outros no cinema antes e após as sessões, reconhecer-se, cumprimentar-se, sair depois do filme para um café ou um trago. E assim forma-se “a aliança, aquilo que depois todos chamamos de o núcleo e os mais jovens o clube” (trad. BT). 
 
(Nova digressão: O inesgotável Kurt Vonnegut propôs em seu romance Cat’s Cradle (1963) os conceitos de wampeter e de karass. Um wampeter é um ser que se torna o foco de atenção e devoção fanática de um grupo de pessoas, o karass. Essas pessoas giram em órbita ao redor dele (órbitas espirituais, claro). Exemplos de wampeter podem ser uma idéia, um livro, o Santo Graal...) 




Pois bem, no conto de Cortázar, o karass que se reúne em torno da imagem de Glenda Garson percorre todos os caminhos previsíveis dos fãs com um objetivo em comum: os encontros casuais, depois os encontros combinados, as visitas recíprocas, as infindáveis discussões sobre os incontáveis detalhes... Até que as discussões chegam a um ponto crucial. 
 
Somente pouco a pouco, a princípio com um sentimento de culpa, alguns se atreveram a deslizar críticas parciais, o desconcerto ou a decepção frente a uma sequência menos feliz, as quedas no convencional ou no previsível. (...) Começávamos a sentir que nosso carinho por Glenda ia mais além do mero território artístico e que somente ela se salvava do que imperfeitamente faziam os demais. (...) De repente os erros, as carências, nos pareceram insuportáveis; não podíamos aceitar que Nunca Se Sabe Por Quê terminasse assim, ou que O Fogo da Neve incluísse a infame sequência do jogo de pôquer (na qual Glenda não atuava, mas que de alguma maneira a maculava como um vômito, esse gesto de Nancy Philips e a chegada inadmissível do filho arrependido). 
 
Esses cinéfilos radicais dedicam-se, então a aperfeiçoar as obras em que sua musa atuou, para que em torno dela não existisse nada que não fosse a perfeição. São pessoas de recursos, isso não se discute. Um deles “havia sido sócio de Howard Hughes no negócio das minas de estanho em Pichincha”, de modo que dinheiro, jatinhos e tecnologia não são problema. Outro dispõe de “um computador” (o conto é de 1980). 
 
E eles põem mãos à obra. Localizam todas as cópias (numa época em que o cinema era 100% em celulóide) dos filmes de Glenda, extraem as cenas que lhes desagradam, refilmam (provavelmente com dublês) outras cenas de acordo com seus critérios... Ninguém (quase ninguém) percebe o deep fake que está sendo elaborado. 
 
A memória brinca com seus depositários e os faz aceitar suas próprias permutações e variantes, talvez a própria Glenda não tivesse percebido a mudança, e sim, porque isto todos nós percebemos, a maravilha de uma perfeita coincidência com uma recordação lavada de escórias, exatamente idêntica ao desejo. 
 
Glenda se aposenta das telas, o que parece coroar o esforço do fã-clube: sua obra agora está redonda, esférica, perfeita. Mas um dia a atriz resolve voltar a filmar, e isto é uma ameaça. A obra atingiu a perfeição: fazer um filme novo, agora, seria submeter-se aos erros, às influências da mediocridade alheia. O que fazer, então? E o narrador conclui: 
 
Quando Diana pousou a mão no braço de Irazusta e disse: “Sim, é a única coisa que nos resta a fazer”, falava por todos sem necessidade de nos consultar. (...) Saímos separados, cada um conduzindo seu desejo de esquecer até que estivesse tudo consumado, e sabendo que não seria assim, que ainda nos restaria abrir o jornal em certa manhã e ler a notícia, as estúpidas frases de consternação profissional. 
 
Ninguém é mais cruel do que um fã, ninguém é tão capaz de destruir a carne-e-osso do ser amado para manter intacta a imagem idealizada que tem dele. 
 
H. G. Wells tem uma crudelíssima parábola, “A Pérola do Amor” (1925; incluído na coletânea “O País dos Cegos e Outras Histórias”, Alfaguara, 2014, trad. BT) em que um príncipe indiano perde a jovem e linda esposa, por quem era apaixonadíssimo. Decidido a manter viva sua lembrança, ele gasta seus tesouros na construção de um palácio perfeito, chamado A Pérola do Amor. O corpo da princesa, num sarcófago de alabastro, é colocado bem no centro, e em volta dele começam a ser erigidas paredes, colunas, ornamentos arquitetônicos, com os materiais mais raros. 
 
Mas o príncipe não fica satisfeito. Embora todos digam que se trata do mais belo palácio já construído, ele todo dia acha um defeito aqui, outro acolá. O palácio está quase perfeito e ele não tem sossego. Um dia, ele pára por um longo tempo, olhando aquela maravilha, e por fim estende o braço e aponta com o dedo o sarcófago onde repousa a princesa, dizendo apenas: “Tirem essa coisa daí”. 




 
 
 





terça-feira, 24 de junho de 2025

5186) Os ditadores delirantes (24.6.2025)



(Paulo Autran, em Terra em Transe)


 
O livro Cartas do Boom (Alfaguara) reúne a correspondência reunida de Julio Cortázar, Carlos Fuentes, Mario Vargas Llosa e Gabriel Garcia Márquez, que se auto-denominavam com bom humor “a Máfia”. Quatro escritores considerados os maiores responsáveis pelo “boom” editorial da literatura latino-americana a partir de meados da década de 1960.
 
Uma boa parte das cartas mostra os quatro amigos trocando informações de agenda, tipo “tal mês estarei na Venezuela, se você puder apareça por lá”, ou “Fulano nos convidou para um congresso em Barcelona, indiquei seu nome”. Mas as discussões sobre mercado editorial e sobre a literatura em si são constantes, extensas e muito compensadoras. 
 
A certa altura, Carlos Fuentes propôs aos colegas um projeto (que acabou não se concretizando) de um livro de ensaios onde cada um deles escreveria um ensaio sobre um ditador de seu país.  Ele sugere como possíveis títulos: “Os Patriarcas”, “Os Pais da Pátria”, “Os Redentores”, “Os Benfeitores”... 
 
O Ditador Delirante é um arquétipo essencial da literatura da América Latina; entre outras razões, por ser um arquétipo que ocorre com frequência na vida real. 
 
O Poder Absoluto corrompe absolutamente, e é difícil encontrar um Autarca de qualquer feitio que não sinta em algum momento a tentação desse abismo. Tentação ainda maior quando o Autarca não chegou ao poder pela via pachorrenta e consensual do sangue hereditário, mas apossou-se do trono ou da cadeira presidencial de arma em punho, mandando os opositores para a sepultura coletiva. 
 
Uma folheada vagarosa de As Veias Abertas da América Latina de Eduardo Galeano pode nos encher todo um caderno com ótimos exemplos de indivíduos todo-poderosos que resolveram testar os limites do próprio poder, e nele se refestelaram, se espojaram, se lambuzaram, se prostituíram. 




Garcia Márquez, que na época se preparava para escrever o seu O Outono do Patriarca, entusiasmou-se com a proposta de Fuentes. 
 
“Meu candidato é o general Tomás Cipriano de Mosquera, aristocrata, antigo oficial de Bolívar, que assumiu quatro vezes a presidência. Por certo, tem muito do teu Santa Anna. Don Tomás estava completamente louco, e sem embargo foi um grande homem; o primeiro liberal que se contrapôs à febre ditatorial do Libertador, e que, como é lógico, acabou por sua vez tornando-se ditador. Tinha a mandíbula toda reconstituída em prata, e vestia-se, em seu segundo mandato, como os reis da França, e era cruel, arbitrário, verdadeiramente progressista e muito bom escritor. Expulsou os jesuítas do país, a começar por seu próprio irmão, que era arcebispo primaz de Bogotá. Já em plena decadência, louco e alcoólico, andava com seu velho sabre perseguindo os meninos que zombavam dele no meio da rua. Foi se queixar ao presidente, e como este não fez caso, expulsou-o do palácio a pontapés e se proclamou general chefe supremo pela terceira vez. Enfim – está incluído na galeria dos Pais da Pátria. 
 
(...) É necessário, além disso, que algum escritor salvadorenho resenhe o mais curioso de todos: o general Maximiliano Hernández Martinez, teósofo, que inventou um pêndulo pra averiguar se os alimentos estavam envenenados, e fez tapar com papel vermelho toda a iluminação pública do país, para combater a peste. Tudo isto em 1944!” 
(Garcia Márquez para Carlos Fuentes, 5-6-1967, trad. BT)
 
A certa altura, Carlos Fuentes, o mais entusiasmado, envia para Garcia Márquez um resumo da estrutura possível dessa antologia. 
 
Até o momento, então, a coisa está com o seguinte perfil: 
 
CUBA: Carpentier: Machado
MÉXICO: Fuentes: Santa Anna
COLÔMBIA: Garcia Márquez: Mosquera, ou Melo?
VENEZUELA: Otero Silva: Gómez
PERU: Vargas Llosa: Sánchez Cerro
CHILE: Edwards: Balmaceda
PARAGUAI: Roa Bastos (já aceitou entusiasmado): Francia
ARGENTINA: Cortázar: Eva Perón
(Carlos Fuentes para Garcia Márquez, 5-7-1967)

 




Na nota 336 de Las Cartas del Boom, os editores advertem que o projeto – fascinante, mas de execução complexa – nunca se realizou, mas pode ter influenciado os autores na realização de obras paralelas. 
 
Carpentier viria a escrever seu romance de ditador anos depois, com O Recurso do Método (México, Siglo XXI, 1974), baseando-se principalmente em Guzmán Blanco, da Venezuela; e Roa Bastos faria seu próprio livro com Eu, o Supremo (Buenos Aires, Siglo XXI, 1974), baseado no doutor Francia. Carlos Fuentes escreveria, décadas depois, o libreto da ópera Santa Anna (Barcelona, Ediciones Originales, 2007), com música de José Maria Vitierm e seu entusiasmo em converter Trujillo em personagem literário seria recompensado através da A Festa do Bode, de Vargas Llosa.
 
O Romance do Ditador ocupa uma prateleira fascinante em nossa literatura. Chegou mesmo a seduzir autores de origem e formação totalmente diversa. Edward Lucas White (1866-1934) era um escritor de Baltimore, hoje famoso por seus contos de horror, tais como “Lukundoo” ou “Amina” (que incluí na minha antologia Freud e o Estranho, Casa da Palavra, 2007). Aos 19 anos de idade, com problemas de saúde, White resolveu fazer uma viagem e pegou um navio para o Rio de Janeiro. Um dos resultados dessa viagem foi El Supremo: a Romance of the Great Dictator of Paraguay, romance de 700 páginas publicado em 1916 com grande sucesso de crítica e público, tendo várias edições sucessivas. Seu tema é o mesmo “Francia” do livro de Roa Bastos: José Gaspar Rodrígues de Francia, ditador do Paraguai de 1814 a 1840.




Na composição do elenco dessa antologia visionária, os autores fazem uma das raras menções à literatura brasileira. A correspondência dos autores do Boom é mais um testemunho de que há duas Américas contíguas, a América de fala espanhola e o Brasil. São casas na mesma rua, cujas famílias se avistam e se cumprimentam à distância, e de vez em quando até se visitam. Mas sabem que pertencem a diferentes clãs, diferentes fidelidades. 
 
A idéia seria escrever uma crônica negra de nossa América: uma profanação dos profanadores, na qual, p. ex., Edwards faria um Balmaceda, Cortázar um Rosas, Amado um Vargas, Roa Bastos um Francia, Garcia Márquez um Gómez, Carpentier um Batista, eu um Santa Anna e tu um Leguía.. ou outro prócer peruano. Que te parece? 
(Fuentes a Vargas Llosa, 11-5-1967)



Nesse projeto, Jorge Amado iria escrever sobre Getúlio Vargas: nada mais adequado, visto que Jorge ambientou nessa quadra histórica seu pomposo romance Os Subterrâneos da Liberdade (1954), depois desmembrado em trilogia (Os Ásperos Tempos / Agonia da Noite / A Luz no Túnel).  Foi a fase em que a literatura de Jorge foi dominada pelo que poderíamos descrever como, mais do que “realismo socialista”, uma espécie de “realismo stalinista” – um curioso oxímoro. Mas Vargas aparece como parte do cenário, não como seu ponto focal. Quem é o grande ditador fictício de nossa literatura? Não sei responder.



 
Temos alguns livros sobre personagens despóticos, mas não consigo lembrar agora de nenhum que seja cortado no mesmo molde de O Senhor Presidente de Miguel Ángel Astúrias (1946) ou de O Outono do Patriarca. Há muitos romances ambientados na época da ditadura militar, alguns indo na direção do realismo crítico, outros na direção da alegoria; mas não me ocorre nenhum romance brasileiro onde se destaque, no centro de tudo, a figura de um Ditador ficcional. 

A nós, coube abordar esse arquétipo através do cinema: acho que em qualquer avaliação transversal desse tema (uma avaliação que não se detenha numa única forma de narrativa) filmes de Glauber Rocha como Terra em Transe (1966) e Cabeças Cortadas (1978) são exemplos perfeitos de como esses ditadores se formam, se erguem e depois desabam.
 
 
 
 




quinta-feira, 19 de junho de 2025

5185) A Feira do Livro de São Paulo (19.6.2025)




“São Paulo, São Paulo, ai como o tempo voa... eu sinto saudade das noites de garoa...” Nem lembro mais quem entoava esta canção dolente, num velho disco de 78 rotações girando em nossa radiola, na Rua Miguel Couto, lá pelos meus dez anos de idade. 
 
Ir a São Paulo tem sido uma oportunidade rara para mim, o que é uma pena, porque é ao mesmo tempo uma viagem ao Passado (o meu passado pessoal) e ao Futuro (ao futuro da humanidade). Caí de paraquedas, dias atrás, na Feira do Livro, na praça Charles Miller, no Pacaembu, e ela me deu a chance de refazer esse passeio. 
 
Fui a trabalho, claro. Eu só viajo a trabalho. Fui lançar meu novo cordel infanto-juvenil, Artur e Isadora na Cidade Subterrânea, pela Editora 34, com ilustrações de Cecília Esteves. 




A Feira do Livro me lembrou muito a nossa Primavera dos Livros, do Rio de Janeiro. Um espaço largo, amplo, aberto, com muita circulação de pessoas, gente comprando livros, gente espiando livros com olhar comprido, casais com crianças, escritores e leitores misturados. Um friozinho agradável (sem aqueles exageros siberianos com que São Paulo nos provoca às vezes) e um sol que alegra sem incomodar. 
 
E principalmente sem aquele barulho ensurdecedor e reverberante das Bienais do Livro feitas em espaços fechados, repletos de gente se espremendo, com engarrafamentos de pedestres em cada esquina, e os batalhões ninguém-solta-a-mão de colegiais. Não me entendam mal. Sou a favor, sim, das Bienais nesse formato; sei que dão uma aquecida nas vendas, e ajudam na formação de jovens leitores. Mas para os cronologicamente prejudicados acabam sendo mais desgastantes do que um Vasco x Flamengo em São Januário. 
 
Estive no estande da Patuá/Patuscada para dar um abraço em Pricila Gunutzmann e Eduardo Lacerda, que abrigam o meu Fanfic (2019). Edu estava doente (já se recuperou, estou sabendo), mas é sempre bom ver desde longe a multidão de autores que aflui para o campo gravitacional dessa editora única e insubstituível. 




Claro que fui à Bandeirola dar um abraço na minha editora Sandra Abrano (na Praça das Bancadas). Lá estão meus contos de ficção científica (A Espinha Dorsal da Memória, Mundo Fantasmo), minha antologia de contos policiais (Crimes Impossíveis), minha coletânea de artigos literários (Não Ficções). Além, é claro, de muita coisa boa, desde Conan Doyle, Franz Kafka e César Vallejo até jovens autores brasileiros, e o livro da própria Sandra, Vestígios, um mergulho assustador nos subterrâneos remanescentes da ditadura militar, infiltrada nas atuais “empresas de segurança” e similares. Recomendo muito. 



(com Sandra Abrano e Finisia Fideli)

 
E passei a maior parte do tempo com a minha turma da “34”, editora que me publica há quase trinta anos. Mando um abraço agradecido a Rafael Mastrocinque, Bruno, Roberta, Raquel Camargo, Lígia, Ivan e os demais – acabei não guardando o nome de todo mundo mas guardei o carinho e a atenção. Fiz um bate-papo instrutivo e alegre com o cordelista Costa Senna (da Editora Global), guerreiro do verso do sertão de Quixadá. 



(com o poeta Costa Senna) 

 
Através da “34” tive a chance de visitar o Colégio Renascença, na Barra Funda, que vem há meses trabalhando meu cordel A Pedra do Meio Dia, ou Artur e Isadora. Conversei durante uma hora com uma centena de garotos e garotas de olho vivo e cabeça rápida, uma turma alegre e inteligente que recitou um cordelzinho rimado (escrito pelo aluno Yuri Galante, do 7º. Ano B). Imprimiram também um livreto de versinhos ilustrados, enchendo minha bola. Outro aluno tocou “Asa Branca” no teclado em minha homenagem! O que mais posso pedir à vida?! 







 
Ainda na Feira, reencontrei meus colegas autores paulistanos, com quem converso vez-em-quando pelos balloons eletrônicos, mas sempre é bom dar uma checada pessoal de cerveja em punho. Encontrei Ronaldo Bressane, Joca Terron & Isabel, Fabricio Corsaletti (que está com seu Um Milhão De Ruas pela “34”), o globe-trotter Carlos Fialho, Roberto Causo & Finisia Fideli, Roberto Fideli (que agora reencontrei como autor já publicado), César Silva, Cacá Lopes... 



(com JP Cuenca, Carlos Fialho e Fabrício Corsaletti)

 
Com J. P. Cuenca e Igor (da revista “Canarana”) aterrissei num fantástico boteco em Perdizes onde assistimos a estréia vitoriosa do Flamengo no Mundial de Clubes, e saímos com o coração nas nuvens e as cordas vocais corroídas. Vencer, vencer, vencer. 



("Flamengo, joga amanhã que eu vou pra lá")
 

A Feira é grande, os encontros providenciais se sucedem. Nem deu tempo de descobrir onde ficavam todas as editoras onde tenho amigos e colegas. Mas ainda deu para dois dedos de prosa com Rubem & Fernanda, da Cambalache (na Tenda das Ilhas), onde ganhei o livro do meu ex-editor na revista Língua Portuguesa, Luiz Costa Pereira Júnior: Vamos Matar Oswald, uma experiência fascinante de História Alternativa ambientada na época do Modernismo brasileiro, e que já está na fila de leitura. E, na mesma Tenda, com Carla & Íris da “Meia Azul”, que publicou minha tradução dos contos extraordinários de Alice Sheldon, a.k.a. “James Tiptree Jr.”, Mulheres Que os Homens Não Veem



 
Depois de muito perguntar, dei com os costados (na Praça das Bancadas) na Editora Papéis Selvagens, onde localizei um livro de César Aira que procurava há tempos, troquei figurinhas com o editor Rafael Gutiérrez, e ganhei o curiosíssimo Tudo É Grande Demais Para a Pobre Medida da Nossa Pele, de Bernardo Brayner, que também já se instalou na fila de leitura (a esta altura mais comprida do que a da Praça de Alimentação). 
 
As feiras literárias desse tipo são espaços de convivência e de atração, em que são os livros o mel e nós as moscas. Ficamos esvoaçando entre esses milhares de títulos, milhares de capas, milhares de portais à nossa espera, cheios das “promessas divinas da esperança”, sentimos a vertigem gozosa das mil e uma faces do Ser, e sentimos ao mesmo tempo “a angústia de uma vida demasiado curta para tantas bibliotecas” (Rayuela). 

Cada um de nós percorre um caminho diferente criado por suas escolhas e por seus acasos. Não há duas pessoas que tenham lido exatamente os mesmos livros. Deve ser para isto que pessoas e livros são tantos.
 
Você leu o quê? Você viu o quê? O que descobriu? O que encontrou? O que ganhou? O que sentiu? O que aprendeu? O que duvidou?
 
E as possibilidades, como sempre, são infinitas.




 
 
 
 



sexta-feira, 13 de junho de 2025

5184) Contracapa de Bing (13.6.2025)





(Friedensreich Hundertwasser, "Florescem em jardins amados")
 

 
&  ninguém está mais no escuro do que o cara que manipula o holofote
 
&  pensei que aquilo ia ser como um copo de água-de-coco, mas foi um picolé de água-do-mar
 
&  às vezes parece que a gente está fugindo a pé e perseguido por um tanque de guerra
 
&  certas frases têm uma melodia macabra em qualquer idioma
 
&  no amor não se pode procrastinar decisões, é um xadrez com peças de gelo
 
&  publicar por editora pequena é tocar guitarra sem amplificador
 
&  em breve vai chegar a moda das duplas caipiras com irmãos siameses
 
&  no dia que aparecer uma zebra com as cores das listras invertidas ninguém vai perceber
 
&  uma cidade é uma torre que cresce na largura
 
&  ator de verdade carrega o palco na sola dos pés
 
&  tem gente que vende a alma e fala mal de quem vendeu o corpo
 
&  se todos os loucos de um hospício tivessem a mesma alucinação, não sei não
 
&  vai chegar o tempo em que bandeira de país vai vir com um código de barras
 
&  não sei o que é mais numeroso, espécies de besouros ou modelos de roupas
 
&  fora da jaula todo bicho é fera
 
&  é melhor ser arroz de festa do que cafezinho de velório
 
&  um milagre que se repete se desvaloriza
 
&  a nova mutação no mundo moderno é o Sentauro, tronco de homem e quatro pernas de cadeira
 
&  a Geometria não deve ser reducionista, mas é impossível dispor de uma régua para cada formato de curva
 
&  sou professor de fracasso na Escola do Sucesso
 
&  ninguém tem o direito de dizer tudo que pensa, e um escritor não tem a obrigação de pensar tudo que diz
 
&  coitado do Sol, que não consegue enxergar as sombras que projeta
 
&  a frase manuscrita é o registro sismográfico do que acontece aqui dentro
 
&  é isso que nos aguarda: uma biblioteca só de Bíblias
 
&  não precisamos encontrar todas as respostas, é preciso deixar alguma distração para as gerações futuras
 
&  eu era feliz e não sábio
 


domingo, 8 de junho de 2025

5183) A poesia não tem leis (8.6.2925)



(ilustração: Wassily Kandinsky)

 
Já fiz muitas oficinas de poesia pelo Brasil afora, sem contar as oficinas online, que cresceram de importância nos anos mais recentes. 
 
O Brasil está cheio de poetas, ou de pessoas querendo se exprimir através de poemas, o que não é necessariamente a mesma coisa. Acho isso uma boa notícia. Todo mundo deveria poder escrever poemas, assim como todo mundo deveria saber escrever cartas. 
 
É uma forma de expressão pessoal, onde você pode ter uma extensão incrível de liberdade, para dizer o que quer, do jeito que quiser, falar do que sente e do que não sente, do que viu, do que imaginou. 




O filósofo Hegel dizia que o domínio da poesia é o reino infinito do espírito. Minha divergência com Hegel (olha só o atrevimento) é que para ele poesia não se faz com palavras, e sim com idéias. Eu acho o contrário, mas como sou conciliador, gloso isto desta maneira: “Tudo que faz parte do espírito humano e pode ser expresso em palavras pode ser expresso em forma de poesia”. 
 
Nas minhas oficinas a coisa mais difícil de ensinar sempre foi o uso da forma fixa, da poesia em estrofes fixas, com uso obrigatório da métrica e da rima. Todo mundo quer fazer poesia, mas existe uma aversão às regras, à disciplina que a métrica e a rima exigem. Eu entendo. É como a aversão à matemática, a algo que tem regras rígidas e não pode ser escamoteado pelo aluno. 
 
Você não pode dizer: “Eu acho que 2 mais 5 é igual a 40, é minha opinião”. Você não pode dizer: “Eu vou fazer um soneto com 31 linhas de tamanhos diferentes, é minha maneira de fazer soneto”. 
 
Pode?  Ou não pode?  Existem leis poéticas?  Quem as escreveu?  Se a gente desobedecer, que viatura virá bater à nossa porta às 5 da manhã? 




Nas últimas semanas tenho lido as traduções da poesia de Lord Byron feitas por André Vallias (Byron: poemas, cartas, diários, &c, Ed. Perspectiva, 2025) - e tenho caraminholado um pouco a respeito das tais formas fixas, muitas das quais o Lord praticava duzentos anos atrás, e continuam a ser praticadas hoje em dia, inclusive em nosso idioma. 
 
O verso inglês se organiza em torno de conceitos métricos clássicos, que vêm da poesia grega e da poesia latina. Não vou me estender a respeito porque confesso que nunca estudei essa poética. Minha escola – mais rudimentar, talvez – é a escola de contagem silábica, da literatura de cordel e dos cantadores de viola, que é mais próxima, em alguns aspectos, do verso praticado pelos parnasianos e simbolistas brasileiros. 
 
Tanto é assim que temos um poeta como “Cancão” (João Batista de Siqueira), que foi uma espécie de sonetista parnasiano em São José do Egito, lá no Vale do Pajeú, em pleno epicentro da cantoria de viola. 



 
Voltando a Lord Byron, me deparei com um longo comentário de Edgar Allan Poe sobre a métrica do Lord em seu ensaio clássico “The Rationale of Verse”, traduzido entre nós como “Análise Racional do Verso”. 
 
Os teorizadores da métrica criaram uma imensa terminologia para designar os “pés” poéticos: iambo, troqueu, espondeu, dáctilo, etc. Neste trecho, Poe está comentando um verso “dactílico” de Byron, verso que usa o “dáctilo”, uma unidade métrica que consiste em uma sílaba forte seguida por duas fracas. A palavra DÁ-ti-lo, por exemplo; ou a palavra SÍ-la-ba
 
Diz Poe, comentando um verso de Byron que exibe uma leve desobediência à lei: 
 
Isto convinha lindamente bem; mas as Gramáticos não admitiam tal pé, como de uma sílaba; e além do mais o ritmo era dactílico. Desesperançados, os livros são rebuscados, porém, e por fim os investigadores são recompensados com uma plena solução do enigma, na profunda “Observação”, citada no começo deste artigo: “Quando está faltando uma sílaba, diz-se que o verso é catalético; quando a medida é exata, o verso é acatalético; quando há uma sílaba redundante, forma hipérmetro”. Isto basta. Sentencia-se que a linha anômala é catalética na cabeça e forma hipérmetro na cauda – e assim por diante, logo se descobrindo que quase todas as linhas restantes se acham em similar categoria, e que o que flui tão maciamente para o ouvido, embora tão asperamente para o olho, é, afinal de contas, uma simples misturada de cataleticismo, acataleticismo e hipermetrismo, para não dizer pior. 
(Edgar Allan Poe, Poesia e Prosa, Ed. Globo, 1960, trad. Oscar Mendes e Milton Amado, pág. 535)
 
A questão aqui não é o verso de Byron em si, é o fato de que os gramáticos e os teóricos, como quaisquer outros cientistas, são vulneráveis à Psicose Classificatória. É precisa classificar tudo, dividir em grupos, depois dividir esses grupos em setores, e cada setor em departamentos, e cada departamento em sub-departamentos e assim por diante. E botar um nome diferente em cada coisa descoberta. 
 
Não nego a importância desse processo – apenas acho que não é decorando essas taxonomias que se aprende a escrever poesia. 
 
Explicar que certos versos são cataléticos e outros são acataléticos é como dizer que um tem consoantes fricativas e outro tem consoantes bilabiais. Provavelmente é verdade, e isso talvez resolva o problema de quem classifica, mas adianta muito pouco a quem escreve. 


 

Quando penso nessas classificações dos versos, lembro das classificações dos passos de dança. Cada dança tem certos “passos” estabelecidos pela tradição. O tango, por exemplo. Existe toda uma coreografia de movimentos combinados entre o homem e a mulher, movimentos que podem ser aprendidos por qualquer pessoa, numa escola de dança qualquer. 
 
Penso nas nossas danças-de-salão brasileiras, a gafieira, etc.  Existem passos já estabelecidos: o “cavaleiro” paga a dama, roda pra um lado, roda pro outro, dá uma volta, pega na cintura, faz uma acrobacia... Como dizia meu pai, quando é bem feito fica muito bonito. 
 
Todo mundo é obrigado a dançar assim? De jeito nenhum. Eu não sou um dançarino muito bom, sou da escola dois-pra-lá-dois-pra-cá, mas não importa – danço para me divertir, não para dar espetáculo; mas eu não posso fazer minha dancinha feijão-com-arroz e dizer que estou dançando tango, ou gafieira. Não estou. 
 
Às vezes alguém vem me mostrar algo que escreveu: “Olha aqui esse meu cordel.” Eu leio e respondo: “É um bom poema, bem escrito, mas não é um cordel. O cordel tem regras.” 
 
Ou então: “Isto aqui é um ótimo poema, mas não é um soneto. Um soneto tem regras”. 
 
Quando certos tipos de poemas aparecem com regras, não são as regras do Código Penal. são as regras de uma dança, ou de um jogo. Uma atividade que tem um lado lúdico. E é da essência do jogo a existência de regras um tanto arbitrárias, mas que são aceitas com alegria pelos participantes. 
 
Quando as formas poéticas propõem regras, é para o prazer consensual de quem as pratica, e quem não sente prazer nessa atividade deve ter escolhido o meio de expressão errado.