segunda-feira, 18 de novembro de 2024

5124) "Uma aventura na Martinica" (18.11.2024)



Comento aqui de vez em quando a antiga arte de pegar uma idéia alheia e dar-lhe outro desenvolvimento. Já li um comentário de algum roteirista de Hollywood, não sei mais quem, dizendo, mais ou menos: “A idéia alheia é um trampolim. Serve de apoio inicial para a gente tomar impulso e ir para um lugar completamente diferente”. Concordo totalmente. 


Mais do que dizer que “é uma coisa natural”, eu diria que é uma coisa essencial. Todo mundo precisa de um chão para pisar e para tomar impulso. E as idéias alheias, principalmente quando já estão publicadas, mesmo que não estejam ainda em domínio público são de conhecimento público. 

 

E para mim, vale a regra básica – você pode até pegar uma idéia alheia, desde que faça algo melhor ainda ou totalmente original. Como fez James Joyce pegando a estrutura da Odisséia para o seu Ulisses, ou como fez Shakespeare pegando velhos relatos históricos europeus para suas tragédias. 

 

Uma Aventura na Martinica (“To Have And Have Not”, 1943), de Howard Hawks, é um bom filme que está à disposição no streaming do saite Belas Artes À La Carte, cujo acervo eu sempre frequento e recomendo. (São cerca de 12 reais por mês: se você assistir um único filme, já economizou.) 

 

 

É um filme que Hawks, um cineasta competente como poucos, fez com um olho no público e outro em Casablanca, sucesso recente de Bogart, que era nesse tempo o ator mais bem pago de Hollywood.  A II Guerra Mundial ainda era o fato mais importante do mundo, e muitos filmes, como o próprio Casablanca, optavam por deixá-la ao fundo de uma história de tensões e emoções entre poucas pessoas. 

 

A Guerra serve como um diapasão emocional para todos, deixando-os num fio de navalha entre a vida e a morte, a fortuna ou a desgraça. 

 

Essas pessoas estão reunidas num lugar exótico, fazendo o possível para sobreviver, dando pequenos golpes, fazendo pequenas transgressões, mantendo-se honestas num cenário de corrupção e violência. E alguns são idealistas: pessoas envolvidas numa missão, arrebatadas por uma ideologia, pessoas que aproveitam a iminência do fim do mundo para tentar transformar o mundo num lugar mais justo. 



Esses elementos estão presentes em Casablanca, cuja direção foi oferecida a Hawks, e que foi parar nas mãos também competentes de Michael Curtiz e virou um clássico. Hawks afirma que não gostou de certos aspectos de Casablanca, e que jamais seria capaz de filmar uma cena como a dos frequentadores da boate cantando “A Marselhesa” na cara dos nazistas. Compreende-se: é uma cena que lida com um patriotismo idealizado e apela para o sentimentalismo. Nada mais distante do cinema de Howard Hawks. 

 

Em todo caso, ele acabou extraindo de Ernest Hemingway a autorização para filmar o romance To Have And Have Not, e o resultado foi um Casablanca totalmente diferente. Bogart vive nos dois filmes o sujeito durão, cético, que sabe se virar nas dificuldades mas não tem um credo político dizendo-lhe o que fazer. E as circunstâncias o levam a ajudar os rebeldes da Resistência Francesa contra os nazistas, com risco da própria vida. Por quê? Porque (diz ele) havia dois grupos lutando entre si, e ele gostou deste grupo e não gostou do outro. 

 

E também porque havia uma mulher envolvida e envolvendo-o.  

 

Em Casablanca, era Ingrid Bergman, casada com (e apaixonada por) um militante de esquerda. Em Uma Aventura na Martinica, essa personagem feminina se desdobra em duas, e esta variante estrutural é um dos detalhes mais interessantes do filme: há a esposa (Dolores Moran) do militante que precisa de ajuda urgente, mas há também uma aventureira que antes mesmo do surgimento do casal monopoliza a atenção de Bogart: é “Slim”, Lauren Bacall estreando no cinema, aos dezenove anos e com um olhar proibido para menores de dezoito. 



Os críticos enumeram um cardápio completo de semelhanças com Casablanca, desde atores secundários que aparecem em ambos os filmes até a presença simpática de um pianista que cantarola em conjunto com a estrela. Nada disso é apontado para diminuir a importância do segundo filme. Pelo contrário: uma sessão dupla com os dois sendo vistos nesta ordem mostra o que um roteiro bem concebido pode trazer de novo a uma situação já familiar ao espectador. 

 

O filme acontece quase todo no ambiente fechado do hotel, com umas poucas saídas marítimas. A presença de Bogart traz à mente O Falcão Maltês (John Huston, 1941) e aqueles confrontos claustrofóbicos, um apartamento com vários homens de arma engatilhada, negociando quem morre e quem não. 



Hawks e Huston (que era dez anos mais novo) são especialistas nesse tipo de situação “teatral”, fechada, baseada totalmente em suspense, diálogo e presença física dos atores. É uma das qualidades do cinemão norte-americano. Huston foi roteirista para Hawks no começo da carreira; é lícito dizer que cada um aprendeu alguma coisa com o outro. 

 

A amizade entre os dois diretores gerou outro exemplo de “pegar idéia alheia” neste filme. 

 

Uma Aventura na Martinica acaba com a fuga de Bogart e Bacall pela porta do hotel, depois de salvar os membros da Resistência e punir os colaboradores dos nazistas. 

 

Hawks pretendia terminar o filme com uma perseguição-e-combate em alto mar (presente no livro original, de Ernest Hemingway), mas a minutagem já estava grande e ele desistiu. Em vez disso, repassou a idéia (e certamente esboços de roteiro) para Huston, que estava preparando um filme bem parecido com este – o ótimo Key Largo (“Paixões em Fúria”, 1948), também com Bogart e Bacall no elenco. (O barco pilotado por Bogart era inclusive o mesmo nos dois filmes.) 




(Bogart, Bacall e o diretor Howard Hawks)

 

 




sexta-feira, 15 de novembro de 2024

5123) Eles passarão (15.11.2024)



 

Quando  ando pelas ruas do centro da cidade, aquele rio de gente, aquelas correntezas contrárias que se entrelaçam tão bem, nunca deixo de pensar como seria aquele trecho de calçada cinquenta anos atrás, cem anos atrás, duzentos. A calçada estava ali, e quem passava por ela passou sem deixar rastro, como a sombra de um pássaro na água de um rio. 

 

Entro num ônibus cheio, num vagão de metrô, fico olhando aqueles rostos, e penso comigo: “Eles passarão.” Passaremos todos, pelo que me consta. Passarão inclusive os passarinhos que cantavam ao ouvido do poeta Quintana. E o poeta os entendeu tanto que voou também. 

 

Os poetas, os artistas criadores em geral, têm a chance de deixar uma sobra, uma imagem, um resíduo de si mesmos. A obra não é a pessoa, mas por isto mesmo tem direito a uma existência própria, num mundo à parte. Shakespeare e Machado de Assis já se dissolveram em moléculas; de sua pessoa, deixaram lembranças de lembranças de lembranças, que a cada transmissão tornaram-se mais esmaecidas. Ou mais autônomas. 

 

A obra ficou, e é de natureza a ficar ainda mais. 

 

Pessoa e obra permanecem ligadas por um laço invisível qualquer. Como aquelas partículas sub-atômicas ligadas pelo que os físicos chamam de “conexão não-local”. Duas partículas que foram submetidas juntas a tais-e-tais medições e experimentos tornam-se uma espécie de espeho ou reflexo uma da outra. Há entre elas uma conexão, uma conexão que não sabemos como funciona, sabemos apenas que está ali. O que acontece a uma acontece à outra, mesmo que estejam a um milhão de quilômetros de distância. 



Com o Artista e a Obra ocorre uma conexão ainda mais misteriosa do que esta. Uma das partículas morre; deixa de existir; a matéria de que se compunha está agora “anônima e dispersa”, como dizia o poeta. Restou apenas a segunda partícula, a Obra, e aí ocorre algo estranho. Por um lado, cada nova descoberta que fazemos sobre o Artista se reflete na nossa percepção da Obra, e cada nova descoberta que fazemos sobre a Obra muda, aos nossos olhos, a idéia da pessoa do Artista

 

Nossa primeira impressão, lá atrás, era de que após a morte do Artista ele vai para o reino do Nunca Mais, e a Obra transpõe o portão do Para Sempre.  É meio assim, mas não totalmente assim. Os dois continuam como se vivessem juntos, e toda luz que se projeta sobre um deles lança algum reflexo sobre o outro. 

 

O poeta Capinam dizia, numa canção antiga gravada por Maria Bethânia: 

 

As coisas passam, e eu quero

é passar com elas...




(José Carlos Capinam)


O ser humano sonha em ser imortal, e os nossos acadêmicos literários criaram esse mito inofensivo de que a Academia imortaliza alguém – no sentido de que pelo menos a segunda partícula, a Obra, jamais morrerá. 

 

Porque a imortalidade física deve ser um fardo injusto, uma maldição. Em toda a literatura não me lembro de um só imortal que seja feliz. Não que a felicidade deva ser um objetivo obrigatório, mas esses personagens parece que a procuram, sim, procuram-na com ansiedade e angústia, e a procuram primeiramente recusando-se a morrer – e aceitando para isto qualquer pacto, qualquer beberagem, qualquer turbinação high-tech. 

 

Tim Powers, o autor de Os Portais de Anúbis (1983) e O Palácio dos Pervertidos (1985), usa a imortalidade como recurso dramatúrgico em seus romances fantásticos, mas com um certo calafrio quanto a essa perspectiva: 

 

Muitos autores neste gênero literário se inscreveram em algum desses projetos onde eles cortam sua cabeça depois da morte e a congelam, confiando na teoria de que daqui a 100 anos ou daqui a 500 a ciência será capaz de descongelá-la e providenciar seu transplante para um clone mais jovem. Muita gente pensa, instintivamente: “Ah, eu quero!...”. Eu, instintivamente, penso: “Que pesadelo. Eu faria qualquer coisa para escapar disso.” 

(Locus, fevereiro de 2002, trad. BT) 

 


Penso no protagonista do conto “O Imortal” (1882) de Machado de Assis, o homem que tomou a poção do pajé e ficou com a possibilidade de ser eterno. Viveu duzentos anos. Enfastiou-se da vida. enfastiou-se tanto quanto quem vive setenta, e resolveu seu problema com um recurso que deixo para os que não leram ainda esta história inquietante, uma das melhores de nosso conto fantástico. 

 

Diz a literatura vampiresca que os nosferatus são quase imortais. Podem ser mortos com estacas, alho, luz do sol, etc., mas se nada disto ocorrer durarão para sempre. 

 

Um aspecto que me assusta nos vampiros nem é sua ferocidade, é a aterrorizante velhice que eles transpiram. Séculos de egoísmo, solidão e idéia fixa. O imenso desdém que adquirem pelos seres humanos, vistos não apenas como fonte de alimentação, mas também como criaturas que nascem, piscam o olho, e desaparecem. Que outro valor tem, para um vampiro, essa nuvem de insetos, cuja vida dura apenas o tempo de torná-los importunos? 

 

Quem quiser que pense em Brad Pitt ou Tom Cruise, quando lembra os vampíros; Hollywood está aí para isso mesmo. Eu penso nos dois vampíros mais verossímeis do cinema, a criatura-gêmea que encarnou no Max Schreck de Nosferatu (F. W. Murnau, 1922) e no Klaus Kinski de Nosferatu the Vampyre (Werner Herzog, 1979). Ali está toda a sequiosidade dos muito velhos, dos que cambaleiam rumo à vítima, dos que um dia foram tigres mas regrediram a percevejos, dos que se recusam a morrer por medo da própria ausência, e tornam a imortalidade uma obrigação sem propósito. 



(Klaus Kinski, como o Nosferatu) 

 




terça-feira, 12 de novembro de 2024

5122) A história de mil faces (12.11.2024)



(Charlie "Bird" Parker / Igor Stravinsky) 

 

Acompanho grupos de Facebook especializados em algum tipo de estudo (estudo informal, nada acadêmico). Rede social tem fofoca demais, futebol demais, politicagem demais. Quando não estou com disposição para isso, vou ao mural dos “meus” grupos – grupos de literatura (Harlan Ellison, James Joyce, Machado de Assis, J. G. Ballard, Shakespeare, Dashiell Hammett, etc.), estilos artísticos (Surrealismo, Artes na República de Weimar, Moebius, etc.), cinema, música, poesia popular, etc. 

 

Dias atrás eu estava clicando através das postagem do grupo Discover Jazz e me deparei com uma troca de idéias sobre um episódio, banal mas curioso, envolvendo dois grandes músicos, o jazzista Charlie “Bird” Parker e o erudito Igor Stravinsky. 

 

A postagem inicial dos administradores do grupo dizia (as traduções são minhas): 

 

“Derramou o uísque, de puro êxtase!”

Não é segredo para ninguém que Charlie Parker era um fã da música do compositor clássico Stravinsky – especialmente de sua obra “Sagração da Primavera”.

Mas você sabia que, em 1951, Parker aparentemente avistou Stravinsky no meio da platéia de seu show na Birdland, em Nova York, e começou a incluir trechos de músicas de Stravinsky dentro dos seus solos?

De acordo com o autor Alex Ross, Stravinsky ficou tão satisfeito que “derramou seu uísque, de puro êxtase!”.

 

Logo em seguida, um membro do grupo comentou:

 

Izak Komo:

Isto aconteceu em Paris, não em Nova York. Charlie Parker e sua banda estavam em turnê. Stravinsky, que chegou ao clube jazzístico quando Charlie Parker já estava tocando, ficou chocado, e derramou vinho na própria roupa, quando Parker, que estava no meio de um improviso no sax, reconheceu Stravinsky e incluiu na melodia um trecho que era de uma composição recente dele. Stravinsky ficou tão surpreso que derramou vinho sobre si mesmo. É assim que grandes artistas reconhecem e valorizam uns aos outros.

 

E logo vieram outros:

 

Ellen LaFurn:

Na verdade foi o trumpetista de “Bird”, Red Rodney, quem reconheceu o maestro na platéia e avisou a “Bird” de sua presença.

 

Graeme Gerard:

A versão que eu li foi de que Stravinsky bateu com o copo na mesa, com força, deliciado ao ver o “Bird” tocar trechos de “Sagração da Primavera” em seu improviso.

 

Alguém está mentindo deliberadamente? Duvido. Ninguém estava lá. Todas essas pessoas ouviram algum relato (estou presumindo que o fato aconteceu mesmo) e cada uma narra a versão que conheceu. Todas as versões são plausíveis, mas essas variações mostram a relatividade dos testemunhos: Foi em Paris ou em Nova York? Era vinho ou uísque? Quem reconheceu o maestro foi “Bird” ou foi um dos seus músicos? 



Nada disso é essencial para este episódio, cuja utilidade é apenas a de mostrar que os verdadeiros talentos se respeitam, e que a distância entre o jazz e a música erudita é menor do que se supõe. (Outros comentários, no mesmo post, ressaltam que na residência de “Bird” havia mais discos de música clássica do que de jazz.) 

 

A questão é que esse tipo de divergência acontece também no testemunho de crimes, de acidentes graves, de diálogos políticos com consequências sérias. Cada pessoa diz: “Eu estava lá e vi tudo, vou lhe dizer como foi.” Se três ou quatro pessoas fazem três ou quatro relatos com variações, como saber quem está sendo mais fiel aos fatos? Mesmo supondo que cada pessoa está agindo de boa fé, e sem interesse pessoal (o que é raro)? 

 



Advogados hábeis, como o grande Perry Mason dos romances policiais de Erle Stanley Gardner, são capazes de pegar uma dessas testemunhas e reduzir seu depoimento a pó, apertando os parafusos até rachar a estrutura inteira. 

 

Não há duas versões iguais de uma história. Um fato envolvendo duas pessoas (uma discussão, uma batida de carro, etc.) tem duas versões. Testemunhado por outras pessoas, tem tantas versões adicionais quantas forem as testemunhas. 

 

As pessoas estão mentindo? Não – cada pessoa percebe apenas uma parte dos acontecimentos.  Desta parte, ela recorda depois uma parte menor ainda. E quando chamada a depor, essa “parte menor ainda” vai ser contaminada pelas suas emoções e percepções no momento do relato (o nervosismo diante de um tribunal, p. ex.).  

 

É dever de quem lida com essas coisas aceitar depoimentos alheios, sempre, com “um grão de sal”, um grão de dúvida. 

 

Jornalistas e biógrafos se deparam com isso muitas vezes. Ao relatar algo que não presenciaram, dependerão sempre do que outras pessoas disseram a respeito. O que fazer quando há duas histórias diferentes? E quando há quatro, cinco histórias? Todas supostamente são sinceras, bem intencionadas, procurando ser fiéis à realidade... Mas o que é “ser fiel à realidade”? 

 

Quando estamos reproduzindo um relato de alguém, esse relato inevitavelmente tem lacunas, e de forma inconsciente vamos preenchendo essas lacunas da maneira que nos parece mais lógica ou mais provável, e nem sempre é este o caso. 

 

Na mesma postagem do Facebook, acontece outra troca de idéias desse tipo, nos comentários: 

 

Jeff Weinberger

Imagino que Stravinsky ficou mais em êxtase do que o “Bird”. Não me surpreenderia em saber que também derramou sua vodka.

 

John EH

Stravinsky bebia exclusivamente uísque escocês, de modo que... não.

 

O primeiro cara presume, com alguma lógica, que Stravinsky, por ser russo, estaria também bebendo vodka. É um pouco como imaginar que todo gaúcho bebe chimarrão e todo mineiro bebe cachaça. Por que não? 

 

E logo em seguida vem um desmentido –  sem muita ênfase, sem muita pose de “cala a boca, eu sou especialista no assunto”, apenas a declaração de que ele só bebia uisque; e cada um de nós, meros leitores distantes, pode apenas aceitar ou não. 

 

Parece bobagem, mas toda vez que a gente está escrevendo um texto meio jornalístico-biográfico, onde tem que relatar fatos acontecidos com pessoas distantes, às vezes muitos anos (ou séculos!) atrás, é preciso ter cuidado com o que a gente afirma – mas ao mesmo tempo é preciso afirmar alguma coisa, senão ninguém escreve nada.

 

 

Paul MacCartney, comentando em 2016 (na revista Rolling Stone) um dos melhores livros sobre os Beatles (Revolution in the Head, de Ian MacDonald), afirma:

 

São esses livros que o pessoal escreve a respeito do significado das canções, como Revolution in the Head – este eu li do começo ao fim. É aquele tipo de livro para ter no banheiro, um bom livro para ler um pouquinho de cada vez. Eu pego e leio: “MacCartney escreveu isto em resposta àquela venenosa canção de Lennon”, e eu penso, “OK, mas não é verdade”. No entanto, está entrando para a História. Esse livro já se tornou um livro muito respeitado, e eu digo, “Muito bem, está ótimo.” Ora, é um fato da minha vida. Esses fatos estão sendo propagados como uma espécie de história musical dos Beatles. Há milhões deles, e tudo que eu sei é que, como fato, esse aí está incorreto. 

 

As histórias têm mil faces, e mais de uma vez relatei um fato, com a maior honestidade e boa fé, e o vi ser desmentido pela apresentação de provas concretas, ou até pelo depoimento dos próprios protagonistas (“Olha, BT, essa versão desse episódio comigo circula há muito tempo, mas não foi bem assim, vou te contar como foi...”). 

 

E, mais uma vez, nem mesmo isto serve de garantia total de autenticidade, porque as próprias pessoas interessadas podem estar deformando o acontecido, seja por desmemória, seja por algum tipo de conveniência pessoal. 

 

Em resumo: quando alguém questionar sua versão dos fatos, peça para ouvir a versão dela. Sem obrigação de aceitar nem de recusar. Ouça, e lembre. De preferência, anote. 

 

Escreva, mas duvide; duvide, mas escreva. 

 





sábado, 9 de novembro de 2024

5121) O Jardim do Xadrez (9.11.2024)

 


Acabei nestes dias a leitura de um romance de Fantasia Urbana diferente de tudo que li nesse gênero, talvez por ser de um autor que não pertence ao universo editorial “de gênero” nos EUA – aqueles autores que frequentam convenções, correspondem-se com fãs, concorrem a prêmios, etc. 

 

Brooks Hansen, o autor de The Chess Garden (1995), é um autor mais próximo do mercado editorial mainstream do que da fantasia e ficção científica. The Chess Garden  foi considerado um dos “Livros Notáveis” do ano pelo New York Times,  tal como outros três livros seus (Boone, 1990; Perlman’s Ordeal, 1999; The Monsters of St. Helena, 2003). 

 

É uma história que transcorre em dois planos – o mundo real, onde tudo acontece como num romance qualquer, e um plano de Fantasia onde o protagonista tem acesso (e nós com ele) a um mundo radicalmente diferente do nosso, e acompanhamos suas aventuras nesse mundo bizarro. 

 

O Dr. Gus Uyterhoeven é um médico holandês do século 19, cuja vida científica é descrita de maneira envolvente: nascido em 1824, ele tem uma crise intelectual com a morte do pai, interessa-se por biologia, filosofia, homeopatia, e em certo momento adquire dois “vícios” não muito graves: o xadrez e o ópio. Apaixona-se pela filha de um barqueiro nos canais dos Países Baixos, e lhe faz a corte até casarem e terem um filho. Perdem esse filho, e moram em várias capitais da Europa até se transferirem para os EUA – mais precisamente para Dayton (Ohio). 

 

Ali, instalam-se numa casa espaçosa, com um enorme jardim, e o Dr. Uyterhoeven resolve transformar esse jardim no Clube de Xadrez aberto a todas as pessoas da cidade. Como ele coleciona jogos de xadrez, jovens e adultos de Dayton passam a frequentar o Jardim e usar as dezenas de tabuleiros que ele possui. O Doutor e sua esposa Sonja tornam-se pessoas queridas e respeitadas por todos. 

 

Toda esta parte da narrativa é contada como uma narrativa realista do século 19, sem nada de fantástico, mas com um notável senso de ambiente cultural e filosófico, ao descrever as polêmicas científicas em que o Doutor se envolve; e com muita finura psicológica retratando seu relacionamento com esposa, amigos, colegas, família. 

 

Por volta de 1901, o Dr. Uyterhoeven, já com mais de 70 anos, resolve surpreendentemente viajar para a África do Sul, onde os ingleses estão em guerra com os “bôeres” locais (colonos descendentes dos holandeses), porque acha que pode ser útil, por ser holandês e médico. Pega um navio e ruma para lá. 



Começa então, após essa viagem, a parte fantástica do romance. O Doutor começa a enviar para D. Sonja uma série de cartas, nas quais revela que, na verdade, empreendeu esta viagem por ter encontrado entre seus documentos, de modo misterioso, o mapa de uma região fantástica chamada Os Antípodas, e decidiu-se a descobri-la e desbravá-la. 

 

Nesse continente imaginário ocorrem suas aventuras daí em diante, narradas em doze cartas que D. Sonja lê em voz alta, uma a uma, à medida que chegam, para seus vizinhos de Dayton e suas crianças, em sessões coletivas no Jardim do Xadrez, reunindo dezenas de pessoas, todas acompanhando fascinadas as aventuras surreais do Doutor, um homem sobre cujo caráter, inteligência e credibilidade não paira nenhuma dúvida. 

 

Logo nas primeiras cartas do Doutor, descobrimos que esse continente fantástico é habitado basicamente por peças de jogo: peças de xadrez, de damas, de dominó, de jogo de dados, de gamão, etc.  Essas peças, contudo, são também pessoas: vivem, pensam, falam, têm sentimentos.  Podem ser comparadas às cartas de baralho de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, uma influência marcante neste livro. 

 

Perambulando por esse mundo, o Dr. Uyterhoeven faz amigos, desafetos, corre perigos, mete-se na vida alheia, encontra a todo instante situações e conflitos inexplicáveis, e se aprofunda cada vez mais na vida daquelas criaturas, que em geral o recebem bem e o ajudam como podem. 



O livro de Brooks Hansen não é um desses romances que trazem revelações surpreendentes ou desfechos trovejantes em suas últimas páginas. É o livro horizontal, sem saltos acrobáticos de dramaturgia. A história de um homem aparentemente comum, mas com um universo mental fora do comum, o que não o impede de ser querido e respeitado por todos. Sua história é uma história de revelações e descobertas íntimas, que trazem uma luminosidade gradual à história contada. 

 

Um dos aspectos mais eficazes do romance é a estrutura de seus capítulos. O resumo que fiz acima está por ordem cronológica, “de A a Z”, como se diz. O livro se abre com um excelente capítulo inicial com a morte da Sra. Uyterhoeven, uma inundação na cidade de Dayton, e a releitura das primeiras cartas, que a família guardava cuidadosamente. Daí em diante, os capítulo vão se alternando: a biografia do Doutor, e as cartas dos Antípodas, duas séries paralelas de revelações que mais de uma vez se explicam ou se enriquecem mutuamente. 

 

Essa alternância entre a narração do presente e a narração do passado do personagem é um recurso interessante, que lembro de ter encontrado em Os Despossuídos (Ursula Le Guin, 1974), cujos capítulos se alternam desta forma. Um efeito curioso disto é que estamos vendo a história do meio para o fim (a narração do presente) e ao mesmo tempo do começo para o meio (a narração do passado), de modo que há uma forte compulsão, fechado o livro, a ler tudo de novo. 

 

Que cartas são essas que o Doutor manda para casa? “Na vida real” ele está presenciando a Guerra dos Bôeres, na África do Sul. Que Antípodas são esses onde ele foi parar? 

 

A fascinação pelo xadrez explica uma parte dessa fantasia do doutor. Outra parte pode ser explicada pela sua descoberta dos escritos de Swedenborg. Como o Doutor, o sueco Emanuel Swedenborg (1688-1772) foi ao mesmo tempo um cientista (foi autor de numerosas invenções tecnológicas) e um visionário, que afirmava visitar com frequência o mundo dos espíritos, anjos e demônios. 

 

Brooks Hansen parece sugerir que o Dr. Uyterhoeven partiu para a guerra com o intuito de adentrar pouco a pouco o reino da morte, conforme o via o místico sueco. 

 

Para Swedenborg (valho-me aqui do artigo de Jorge Luís Borges em Prólogos con un Prólogo de Prólogos, Buenos Aires, Torres Aguero, 1975), quando um indivíduo morre pensa que ainda está vivo, e é transportado para um mundo semelhante a este de cá – um mundo que hospeda em alguns trechos o Paraíso e em outros o Inferno. Julgando que continua aqui na Terra, o morto recente (e desavisado) faz suas escolhas.  

 

Diz Borges:

 

Se o morto é mau, agradam-lhe o aspecto e o trato dos demônios, e não tarda a juntar-se a eles; se é um justo, escolhe os anjos. Para o bem-aventurado, o orbe diabólico é uma região de pântanos, de cavernas, de choças incendiadas, de ruínas, de lupanares e tabernas. Os réprobos não têm rosto, ou têm rostos mutilados e atrozes, porém acreditam-se formosos. O exercício do poder e do ódio recíproco é sua felicidade. Vivem entregues à política, no sentido mais sul-americano da palavra. 

(trad. BT)

 

O Além é uma expansão do mundo que coligimos para nós mesmos ao longo de nossa vida; e isto parece ser a mesma percepção que inspirou a Gilberto Gil os versos: 

 

Basta ver-te em teu mundo interno
pra sacar teu inferno: teu inferno é aqui. 

(“Pessoa Nefasta”) 

 

Se isto se aplica ao romance de Brooks Hansen, os Antípodas em que o Dr. Uyterhoeven mergulha (enquanto seu corpo físico atravessa a Guerra dos Bôeres) são o seu Paraíso particular. Um mundo onde a vida está sempre sujeita ao mistério, ao absurdo, ao inexplicável; um jogo cujas regras passamos a vida tentando descobrir. 

 

Ironizando seus colegas acadêmicos deterministas, o doutor diz a certa altura: 

 

Parece haver uma sutil mas profunda confusão que martiriza todos os que partilham a crença determinista, metodista e racionalista: a confusão entre o desejo de observar a agitação do universo – o que é perfeitamente admirável – e o desejo de explicá-lao que é patentemente absurdo. (The Chess Garden, pág. 144, trad. BT) 




Os jogos em geral constituem ilhas de coerência onde o absurdo penetra com dificuldade: mesmo os jogos que envolvem a sorte o fazem sob regras estritamente controladas. O jogo nos dá uma ilusão de segurança, de praticar uma atividade cujos propósitos e limites estão definidos com clareza, o que não se pode dizer da Vida. 

 

No mundo dos jogos, conflitos e decepções e até violências não estão ausentes; mas esse mundo, feito de conjuntos de regras, consegue estabelecer um limite entre ordem e caos. 

 

Ele não via a história do pensamento e do conhecimento como um registro do esclarecimento, mas um desfile de planilhas e esquemas em constante mudança e em constante disputa entre si, e nenhum deles era capaz de definir uma idéia sem ao mesmo tempo obscurecer outra.

(p. 121, trad. BT) 

 

É o tipo do livro capaz de gerar em torno de si uma espécie de fã-clube de gente disposta a analisar cada um de seus personagens e episódios para descobrir as correspondências entre o mundo real do Doutor e o seu mundo de fantasia – tal como vemos, por exemplo, em O Mágico de Oz, onde grande parte da população de Oz é um reflexo das pessoas com quem Dorothy convive na sua fazenda do Kansas. 

 

O Doutor é um cientista e um visionário, ao mesmo tempo, e produz ao longo de sua vida uma relação tensa, esticada, entre realidade e imaginação, como um elástico que mantém unidas duas formas de ver que tendem a se afastar uma da outra. Ou seja, mais ou menos o que a literatura fantástica (ou literatura “do insólito”, “da imaginação”, “de fantasia”, etc.) procura fazer. 

 

Outra coisa em que vim a acreditar é que a verdade nos é concedida exatamente na medida e na forma apropriadas a cada um de nós, individualmente. Além disso, creio que a tendência da verdade não é, como pode às vezes parecer, sumir e depois mostrar-se novamente. A tendência da verdade é manter-se constante. Desse modo, quando um homem se dispõe a fitar de frente o que quer que esteja à sua volta – seja isto o que fôr – ele encontrará a verdade ali, à sua espera. Fui claro? 

(p. 413, trad. BT)

 




 

 




quarta-feira, 6 de novembro de 2024

5120) "Fullgás: a serpente da década de 80" (6.11.2024)

 


(ilustrações: obras da exposição)

 

A década de 1980 foi uma época curiosa. (Qual década não é?)  Cada pessoa vive essas épocas de maneira diferente, é claro. Me lembro de já ter lido uma entrevista com uma dançarina russa do Balé Bolshoi; perguntaram-lhe qual foi o tempo mais feliz de sua vida. Ela disse que foram os primeiros anos da década de 1940. O entrevistador espantou-se: “Durante a II Guerra Mundial, com todo aquele horror, fome, dificuldades?...”  E ela disse: “Naquele tempo eu era jovem, bonita, todo mundo gostava de mim...” 

Eu era jovem na década de 1980; não direi que era bonito, mas era confiante. Foram os anos em que comecei a vir de maneira constante ao Rio de Janeiro e São Paulo, e acabei me fixando no Rio a partir de 1982. 

E foram – acho que ninguém esquece disto – os últimos anos da ditadura militar, com o moribundo e escoiceante governo do general João Figueiredo, seguido pelos Anos Sarney, e depois os anos Fernando Collor. Inesquecíveis. 


 

Na minha cabeça, e por critérios mais históricos do que numéricos, a “década de 80” começou na Lei da Anistia de agosto de 1979 e encerrou-se em dezembro de 1992, com a renúncia de Fernando Collor de Mello. 

Foi também o tempo do Rock-BR, e guardo com carinho a memória das vezes em que vi ao vivo, a poucos metros de distância do palco, os primeiros shows de Cazuza e o Barão Vermelho, os Titãs, os Paralamas do Sucesso, a Blitz, RPM, Renato Russo (que pena, nunca vi ao vivo o Legião Urbana completo), Lulu Santos, Celso Blues Boy... A lista é longa. 

Foi também a década em que mergulhei profissionalmente na ficção científica, com a publicação de O Que é Ficção Científica (Brasiliense, 1986) e A Espinha Dorsal da Memória (Caminho, 1989), além de farta colaboração nos fanzines. (Sim – era a época dos fanzines, que foram uma espécie de Curso Preparatório Para a Internet.) 


 

A exposição FULLGÁS, com curadoria de Raphael Fonseca juntamente com Amanda Tavares e Tálisson Melo, estará no CCBB do Rio de Janeiro de 2 de outubro deste ano até 27 de janeiro de 2025.  É um balanço das artes visuais brasileiras dos anos 1980, dividido em cinco partes, tituladas a partir de canções do Rock-BR daquele período: "Que país é este" (1987), "Beat acelerado" (1985), "Diversões eletrônicas" (1980), "Pássaros na garganta" (1982) e "O tempo não para" (1988). 

Por uma melancólica coincidência, o título da própria exposição alude a uma canção (gravada por Marina) do poeta Antonio Cícero, falecido recentemente. 

A convite do curador fiz um dos textos de apresentação para o Catálogo, “O Mistério da Mídia Ambiente”, referente à seção “Diversões Eletrônicas”. 


 

(...) Aquela foi a nossa última década sem Internet, nossa última década de mundo opaco, sem conexões, sem telepatia telefônica, sem esta vasta sinfonia de sinapses coletivas numa teia de máquinas cada vez mais numerosas, menores e mais baratas.

 

O futuro, como quse sempre, chegou primeiro nos livros, e só depois nos gadgets vídeo-digitais-eletrônicos. O ciberespaço e a realidade virtual estavam previstos, à maneira vaga e contraditória das verdadeiras profecias, na trilogia “Neuromancer” de William Gibson (Neuromancer 1984, Count Zero 1986 e Mona Lisa Overdrive 1988). 

 

Por esse portal se esgueiraram as mais variadas tecnologias da mente: o chip implantado, as redes neurais, todas as formas de simbiose entre os microcircuitos integrados e as pequeninas células cinzentas. (...) 

(do Catálogo)



As artes plásticas, ou artes visuais, são uma Casa onde nunca entrei. Sempre olhei as coisas que tem lá dentro – mas olhei da calçada, porque os janelões são imensos, as vidraças enormes. 

Para um servo da palavra, como eu, um quadro é misterioso porque tem um impacto instantâneo. Vai direto a alguma medula sensível do inconsciente coletivo. O olho bate, a mente responde. A gente não entende por que motivo está se sentindo daquela forma. Um ou dois minutos depois a cabeça pensante começa a funcionar e a gente passa a elaborar explicações, teorias, associações de idéias, citações. 

Os fios da memória coletiva podem ser atados continuamente uns aos outros, sem cessar, porque com jeito tudo se compara,  tudo se confronta e se avalia.  Toda arte acaba sendo envolvida num casulo de possíveis explicações e problematizações, que a protege e a assimila. Mas o primeiro impacto é sempre irracional: o olho e o cérebro dialogando entre si sem passar pela alfândega fiscalizadora das ideologias estéticas. Estas só chegam depois, correndo, arquejando, tentando carimbar e rubricar um fato já consumado. 




Em algum momento do meu texto fiz alguma referência indireta à obra de J. G. Ballard, autor que descobri durante a década de 1980, ao tempo em que descobria o som de Arrigo Barnabé e Fausto Fawcett. A obra de Ballard é um contraponto a essa década de espetacularização da política – os anos Reagan e os anos Thatcher brandindo iscas de enriquecimento instantâneo. 

Ballard escreveu uma série de romances imaginando o  fim do mundo de formas diferentes: The Wind from Nowhere, The Drowned World, The Crystal World, The Drought... Foi a década que de certo modo desmantelou a Guerra Fria e seus terrores e a substituiu por uma versão plastificada de um Paraíso do consumo conspícuo e do lazer profissional. Os contos de Ballard, repletos de artistas plásticos, arquitetos, escritores, gente das artes cênicas e da publicidade, são uma ficção científica voltada para o contemporâneo – aquilo que William Gibson, que surgiu logo depois dele, chamava de “a FC que está cinco minutos no futuro”. 


 

A serpente era a mesma, mas sua pele nova era composta por milhões de escamas de cristal líquido, cada uma delas um pequeno écran demoníaco, personalizado, piscando plimplins. Tecendo mandalas e fractais em cores cítricas, em néons, numa computação gráfica engatinhando as primeiras ousadias. 

 

Nas ruas, a floração de peles tatuadas emergindo à luz do sol ou do metrô, em contraponto aos muros e fachadas cada vez mais cobertos de pichações inarticuladas, logomarcas em forma de garranchos pré-verbais, “rabiscos sem intenção alfabética”. 

(do Catálogo)

 


 

No Brasil, foi a década pós-Anistia, a euforia dos retornados, os últimos tropeções e perdigotos do governo do general Figueiredo, a eleição e via-crucis de Tancredo Neves... E finalmente a posse a-contragosto e a gestão claudicante de José Sarney – solução brasileira para o velho problema de “é preciso mudar para que tudo permaneça na mesma”. 

Todos nós temos uma certa inclinação a reter do passado distante o que convém à nossa saudade ou ao nosso trauma pessoal. A arte é nossa memória coletiva (não a única, por certo); temos que reencontrar nela não só o que queremos lembrar, mas o que queríamos ter esquecido, o que de fato esquecemos, o que estamos sabendo somente agora... O Passado não cessa de nos surpreender. 


 

Não importa: o afrouxamento da Censura, pelo menos, foi um oxigênio revigorante para a música, a literatura, as artes plásticas. O cinema teria que aguardar sua Retomada para a década seguinte, mas as cidades se incendiavam ao som do Rock-BR – cujo repertório serve de guia às cinco seções em que esta Exposição se organiza. 

 

High tech and low life. Alta tecnologia nas mãos de gente de baixa classe social. O motto dos cyberpunks parecia ter sido feito olhando para o Brasil, para esta patriamada disposta a “colocar nas mãos do índio o botão da informática”. O Brasil era um Chevrolet Malibu 1964 levando na mala alguma coisa brilhante, preciosa e mortal, como em Repo Man (Alex Cox, 1984). Um país-geringonça com manutenção precária, arrastando consigo um latifúndio de tesouros. Tesouros que ele ou não conhece ou não sabe como aproveitar. 

 

A serpente mudou de casca sem deixar de ser serpente. Deixou e recolheu pelo caminho ditaduras tecnocráticas, cristianismo neo-liberal, milagres truculentos, constituições quebradiças... Fugindo sempre ao eterno perseguidor que a ameaçava: o povo que a devorava viva enquanto era devorado vivo. 

(do Catálogo)

 

 


“Nossa linda juventude, página de um livro bom...”  O livro era bom, mas, como o Livro de Areia do conto de Borges, depois que o livro se fecha ninguém consegue achar de novo aquela página. 

 

 



segunda-feira, 4 de novembro de 2024

5119) Ser urbanóide (4.11.2024)

 



 

Ser urbanóide é preferir morar perto de um supermercado do que de um pomar de árvores frutíferas. 

 

Ser urbanóide é saber olhar para o trânsito, num viaduto ao longe, como algumas pessoas olham para um regato murmurejante. 

 

Ser urbanóide é ir passando a pé por uma rua bem conhecida e de repente virar a esquina e entrar numa ruazinha transversal, só para ver o que tem ali. 

 

Ser urbanóide é ser capaz de parar na porta de um bar, olhar para dentro, e dois segundos depois pensar: “Aqui não”, e seguir em frente. 

 

Ser urbanóide é ver poesia em nomes de lojas, de salões de manicure, de borracharias, de oficinas, de botequins pé-sujo, de malharias. 

 

Ser urbanóide é atravessar uma rua larga de olho no carro que se aproxima, e à distância negociar direções e velocidades com o motorista. 

 

Ser urbanóide é olhar cada janela de edifício acesa, e mandar uma energia boa para os companheiros de madrugada. 

 


  

 

Ser urbanóide é acompanhar todas as crueldades, as explorações e as violências que se praticam na cidade, e não botar na cidade a culpa. 

 

Ser urbanóide é passar uma tarde numa biblioteca só para saber quem foi Fulano de Tal que deu nome à rua em que a gente mora. 

 

Ser urbanóide é ir à feira livre, voltar carregado de sacolas, deixá-las em casa, e depois voltar, só pra curtir a feira. 

 

Ser urbanóide é ter três ou quatro percursos diferentes para ir e para voltar dos lugares habituais – para colorir a rotina. 

 

Ser urbanóide é não se entristecer nem com o outono das demolições nem com a primavera dos projetos imobiliários. 

 

Ser urbanóide é perceber em si mesmo, de repente, uma certa rivalidade com esse pessoal do bairro vizinho, quem pensam eles que são?! 

 

Ser urbanóide é ver numa exposição a foto de uma parede e lembrar onde fica. 

 

Ser urbanóide é chegar numa metrópole desconhecida, deixar as coisas no hotel, e sair andando pelas ruas com olhos de começo de namoro. 

 

Ser urbanóide é cochilar no metrô e acordar pontualmente na estação onde vai descer. 

 

Ser urbanóide é estar numa fila, num vagão de trem, numa sala de espera, olhar todos aqueles rostos e pensar: “Nunca mais estaremos todos juntos novamente”. 

 

 

Ser urbanóide é ter um sexto sentido sempre ligado para perceber as bicicletas que surgem na contramão ou cruzando a calçada. 

 

Ser urbanóide é ter saudade de uma linha de ônibus que foi desativada. 

 

Ser urbanóide é não ter problema para dormir enquanto trinta pessoas cantam Tim Maia a plenos pulmões no bar da esquina. 

 

Ser urbanóide é pedir ao porteiro que receba a encomenda e mande pelo elevador. 

 

Ser urbanóide é ouvir um tiroteio na madrugada e prestar atenção para ver quantos calibres estão envolvidos. 

 

Ser urbanóide é vir pela calçada e atravessar a rua só pra olhar os livros sobre uma lona na calçada oposta. 

 

Ser urbanóide é voltar a uma certa rua trinta anos depois, ver uma certa porta e ter vontade de tocar de novo a campainha. 

 

Ser urbanóide é ter na memória uma agenda instantânea informando eletricista, pedreiro, loja de conveniência, “vende-se gelo”, mecânico, conserto de malas, quentinha caseira. 

 

Ser urbanóide é chegar à faixa de pedestres com o sinal fechado para os carros, mas esperar primeiro que abra para eles, depois que feche de novo, e só então atravessar com segurança. 

 

Ser urbanóide é saber que cidades e florestas morrem e renascem o tempo todo, de um modo tão parecido e tão diferente. 

 

Ser urbanoide é estar andando numa cidade estrangeira e distante, pensando em mil outras coisas, e ao virar uma esquina se deparar com uma cópia fiel de um recanto de uma cidade querida, um lugar que talvez nem exista mais. 

 



(ilustrações: "Bing", Inteligência Artificial)

 

 

 

 



sexta-feira, 1 de novembro de 2024

5118) Tavinho Paes, 1955-2024 (1.11.2024)



O Rio de Janeiro ficou menor, menos inteligente e menos alegre com a partida do poeta Tavinho Paes. Tavinho estava hospitalizado há um tempão. Acompanhei pelo Facebook as suas postagens relatando os exames, a angústia da espera (“quando vão liberar a cirurgia?”, "autoriza, Unimed!"), os adiamentos, depois o começo da sofrida recuperação. E então... um silêncio. E por fim a notícia. 

 

Nem fui dos que conviveram muito com ele, e não devo ter muitos episódios pessoais para contar. Eram encontros na rua, no bar, na festa, em camarim de show. Quem conviveu com ele foi o Rio, a cidade que ele percorria como uma lançadeira, sem parar, impedindo que as águas estagnassem. Principalmente a Zona Sul, é claro, porque foi ali que o conheci, provavelmente nas mesas da Pizzaria Guanabara ou nos agitos do CEP 20.000, que ele ajudou a fundar. 



Fizemos parte dessa misteriosa entidade chamada de Poesia Marginal. Num tempo em que todo mundo se batia para ser publicado pelas grandes casas editoras, houve centenas de poetas jovens que deram de ombros, e começaram a publicar seus versos de forma precária, mas por conta própria. Mimeógrafo, offset, xerox, cordel. 

 

Quando cheguei aqui no Rio, percebi que para o carioca em geral, inclusive a imprensa, “marginal” era sinônimo de assassino, ladrão, bandido, estuprador. O rótulo “Poeta Marginal” vinha tingido disso tudo. 

 

Surpresa para mim, que visualizava o mercado editorial como um rio poderoso, carregando em seu “mainstream” os empaletozados poetas oficiais, enquanto nós caminhávamos no mesmo rumo – mas na margem. 

 

Íamos a pé pela margem, porque naquele tempo (Drummond já se queixava) “era livre a navegação, mas proibido fazer barcos”. 



Tavinho tinha um barco – o barquinho de papel que salva todos os poetas – e tinha um vento próprio que lhe enfunava as velas: o vento da fala, da recitação, do riso, da conversa, o sopro de vida que muitas vezes nem lembramos quando lemos o livro de alguém, mas está sempre presente quando alguém sobe num palco (numa cadeira, num caixote, num degrau) e manda ver. 

 

Seu formato preferencial era o livreto, de que a bolsa estava sempre cheia. 

 

“Toma, toma esse aqui, é o mais novo, esse aqui também é bom, leva dois, esse aqui eu lembro que você já tem, mas leva mais um e passa adiante.”  “Tavinho, eu estou sem bolsa.”  “Bota no bolso da calça. Você anda de metrô, que eu sei. Lê no metrô. Se gostar de alguma coisa, fica em pé e recita, grita, porra, acorda aquele pessoal.” 

 

Onde estão os livretos, agora que preciso deles?! Desaparecem no meio das estantes, nas gavetas, por entre as revistas, enfiados em algum livro grande. Livro pequeno é um problema. Os dele eram menores do que um folheto de cordel. 

 

“Isso aqui é um mini-cordel.”  “Chama do que você quiser, mas espalha, passa adiante.” “Você vende por quanto cada um?”  “Depende, não é essa a questão, vender é projeto, vender acontece, mas o importante é circular.” 

 

Vivia (penso eu) mergulhado naquela filosofia do “bendito quem semeia livros, livros à mão cheia...” 




E os recitais, que ele encarava com uma displicente segurança, mandando-ver com o destemor dos que têm na palavra falada o seu aviãozinho de papel. Aquela bossa de quem se sente à-vontade no fio da navalha do palco iluminado, e com aquele sotaque de malandro-erudito. 

 

Falei que ele circulava pela Zona Sul carioca?  Não tem problema, circulou por Campina Grande também, recitou nos meus bares, nos meus teatros, como quem se sente em casa. “Ô paraíba, tu tem música gravada por teu conterrâneo Genival Lacerda?...”  “Ih, rapaz... tenho não. Quem me dera.”  “Pois eu tenho.” 

 

Será que tinha mesmo? Não importa: ele tem música gravada pelo Trio Nordestino (“Parada Boa”) e eu não.  

 

É curioso, e triste, que em poucos dias a poesia carioca tenha perdido Antonio Cícero e Tavinho, dois poetas tão próximos e tão diferentes. 

 

Cícero era o filósofo, tímido em público, mas fluente e cristalino na escrita. O verso pensado, polido, engastado, mas na hora da leitura dando aquela impressão de que corre fácil como água da torneira. 

 

Tavinho era um camelô-de-si-mesmo, sempre com um livreto novo na ponta do braço e um trocadilho mordaz na ponta da língua. Criando e produzindo o tempo todo, dando a impressão de ser um barril transbordando, do qual a gente só percebia o que sobrava. E o que se derramava dava aquele barato que a gente só sente diante da frase brilhante, da frase salto-mortal. 



“Camelô” não é ofensa, e eu me chamo assim com frequência. O camelô descobre um belo dia que se não descer à calçada e apregoar sua água-de-coco as pessoas vão morrer de sede por não saberem que ela existe. 

 

Somos camelôs das redes sociais. Volta e meia estamos aqui compartilhando poemas, textos publicados, capas de livro, fotos de palestra, fonogramas gravados pelos amigos. Com esses tijolinhos (todos diferentes uns dos outros) estamos criando um edifício que não será nenhum Taj-Mahal – será algo que não existia antes e cujo formato final não chegaremos a ver. 

 

É a poesia que não se destina aos livros, mas à vida, ao momento, às pessoas de carne e osso. Algma coisa, claro, vai ter que resultar em livro, porque livro é uma coisa tão boa de se ter na mão, de se ter à vista, de entregar a alguém, de receber. O livro recolhe aquela parte que não se evaporou no fim de tantas conversas, tantos chopes, tantos cafés, tanto recitais, tantos bares enfumaçados. A poesia roda, roda, roda e acaba num livro, assim como a noite roda, roda, roda, e acaba no dia. 


A CIDADE DOS 1000 POETAS

Tavinho Paes

 

Eu nasci num subúrbio da maravilhosa

Cidade dos 1000 Poetas.

Nasci na noite do Iguana,

numa maternidade

ao sopé do Morro dos Ventos Uivantes

de cujo cume

o beato Sebastião via a ilha

que o cangaceiro Satanás cria ser real.


Minha mãe, naquela noite de luzes,

foi tão natural quanto a de Máximo Gorki.

 Meu pai,

cercado de famas e cronópios,

permaneceu acordado noite adentro,

fumando charutos da mesma marca

dos prediletos de Gabo

comprados naquela Tabacaria

que Pessoa via de sua janela.

Leia o resto aqui:

http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/rio_de_janeiro/tavinho_paes.html