quinta-feira, 25 de setembro de 2025

5200) A forma e o conteúdo (25.9.2025)





Quando falamos em forma e conteúdo, isso nos evoca imagens visuais: a forma é algo que está fora, está ao redor, e o conteúdo é algo que está contido, abrigado, reunido dentro dessa forma.
 
A imagem mais frequente (já perguntei isso muitas vezes) é a de um copo dágua. O copo é a forma, a água é o conteúdo.  Algumas pessoas explicam: “E o conteúdo toma a forma do vaso que o contém.”
 
Para mim parece fazer algum sentido. É como dizer que num filme a forma são as imagens, e o conteúdo são os diálogos (também já ouvi esta explicação). Parece fazer sentido, sim.
 
Em todo caso, leituras antigas e conversas antigas já me sugeriram uma abordagem diferente, que por enquanto tem dado para o meu gasto.
 
O que chamamos de “conteúdo”, muitas vezes, eu prefiro chamar de o “tema” ou o “assunto” do livro/filme/quadro etc. Ou, de forma mais abrangente, o conjunto de idéias, histórias, situações etc. abordadas nessa obra.
 
Qual o conteúdo de Dom Casmurro, de Machado de Assis? Muita gente dirá que é o ciúme doentio de um homem inseguro da própria masculinidade, casado com uma mulher que além de ser bonita é bem mais esperta do que ele.
 
Qual o conteúdo do filme 2001, Uma Odisséia no Espaço? Muita gente dirá que é a evolução da espécie humana, desde os antropóides pré-históricos até o homem de hoje, conquistador do Sistema Solar, e o homem do futuro.
 
Qual o conteúdo de Ainda Estou Aqui, filme brasileiro recente, dirigido por Walter Salles? Muita gente dirá que é o modo como a repressão da ditadura militar destruiu famílias que mesmo assim se mantiveram firmes após as perdas que sofreram.
 
E assim por diante. Eu prefiro considerar, porém, nesses casos, que isto não é propriamente o “conteúdo” de cada filme, e sim o tema. São duas coisas que se misturam bastante em nosso juízo. O que as separa e as distingue? Provavelmente é a “forma”.



(o Tema, filtrado pela Forma, produz o Conteúdo)

 
Minha proposta de interpretação é:
 
O “tema” é um conjunto de idéias que orientaram a criação da obra, filtradas pela “forma” – na verdade, criadas pela forma, que é a obra em si (o texto, o filme, etc.,). Essas idéias, ao serem assimiladas pelo leitor/espectador, produzem uma terceira coisa que seria o “conteúdo”.
 
Por isso, existe uma dificuldade em separar a forma e o conteúdo, porque este é determinado por aquela, nessa obra específica. Se a forma não fosse aquela, fosse outra, o tema poderia ser o mesmo (ciúme, evolucionismo, repressão) mas o conteúdo seria necessariamente outro.
 
Acho que fica mais claro quando comparamos obras parecidas. A Última Ceia que aconteceu entre Jesus Cristo e seus apóstolos, por exemplo. É um tema muito familiar na cultura ocidental, deve haver dezenas de milhares de pinturas reproduzindo esta cena, esta ceia.
 
Aqui vão quatro delas.
 
Leonardo da Vinci:


Tintoretto:


Ugolino da Siena:


Salvador Dalí:



Eu não acho que estas quatro pinturas tenham o mesmo conteúdo. Que produzam a mesma resposta estética – em mim, ou em qualquer pessoa. O que cada uma delas nos diz é muito diferente. As associações de idéias e até mesmo a resposta emotiva, afetiva, provocada por cada uma é muito diferente.
 
O tema das quatro pinturas é o mesmo: é a ceia de Jesus com seus apóstolos. O tema é sempre exterior à obra: ele desencadeia a criação da obra, está presente em cada momento de sua criação, mas é exterior a ela.  
 
Essas quatro pinturas têm conteúdos diferentes porque a forma, ou seja, aquilo que somos capazes de enxergar no quadro, é diferente em cada caso.
 
O conteúdo, como eu o percebo e o sinto quando leio, vejo filmes, olho quadros, etc., é uma espécie de corrente eletromagnética (perdoem a metáfora tosca) que vibra entre a obra e a minha mente.
 
Como dizia a imortal definição do mestre Damon Knight: “Um conto não são aquelas páginas impressas, é o que acontece em sua mente quando você lê o que está escrito nelas.”
 
E que já adaptei assim:



 
Vendo as coisas dessa maneira, fica difícil a gente separar o conteúdo da forma. Seria, como numa comparação famosa (não lembro agora quem disse isso) tentar ver a dança sem o dançarino. A dança não existe sem aquele dançarino; o conteúdo não existe sem aquela forma.
 
Livros com o mesmo tema, escritos por diferentes escritores, acabam tendo necessariamente conteúdos muito distintos. Basta comparar, num exemplo mais que conhecido, Os Sertões de Euclides da Cunha e A Guerra do Fim do Mundo de Mario Vargas Llosa. 
 
Este meu ponto de vista não é uma teoria: é uma coisa para uso próprio, mas que pode ser útil para alguém mais. É uma espécie de guia-mapa que me ajuda a navegar por entre livros, filmes, canções e tudo o mais.
 
Faço um certo esforço, toda vez, para me livrar da noção persistente de que toda obra de arte tem um conteúdo que é algo pronto e previamente definido, guardado dentro da obra. E que a forma se encarregar de transmitir, revelar, entregar esse conteúdo ao leitor (etc.).
 
Essa noção dá origem àqueles questionários com que a gente começa a se acostumar desde a infância, a adolescência, os trabalhos escolares: “Qual é a mensagem do filme?... O que foi que o autor quis dizer com este poema?...”  Perguntas que deixam implícita a existência de uma resposta certa, uma resposta já pronta, e cabe ao aluno deduzir ou adivinhar qual é.
 
Como se o conteúdo, até por essa conotação material da própria palavra, fosse algo embrulhado e encaixotado para ser entregue ao consumidor. E cada comprador receberia uma caixa igual.
 
Vejo o conteúdo (se temos mesmo que usar esta palavra) como um resultado, ligeiramente diferente em cada leitor, e até mesmo em cada leitura do mesmo leitor. O resultado, numa primeira etapa, de tudo que a forma fez com o tema ou conjunto de temas utilizados; e, numa segunda etapa, de como aquele primeiro resultado foi percebido e interpretado pelo leitor.
 
Claro que diferentes críticos darão diferentes pesos seja às intenções do autor seja às interpretações dos públicos variados. Todo autor é cheio de intenções!  O importante é reconhecer que não há um conteúdo já-pronto, à espera de ser decodificado: há um conjunto de estímulos variados (verbais, visuais, etc.) que sofrerá inúmeras decodificações diferentes e produzirá, em cada pessoa, um conteúdo diferente.
 
Sempre dentro (o bom senso nos indica) das possibilidades colocadas pelo livro ou filme, pela forma daquela obra.
 
Ninguém poderá dizer que o conteúdo de Dom Casmurro é a evolução da espécie humana, desde os antropóides pré-históricos até o homem de hoje e o homem do futuro.
 
Muitos críticos, por exemplo, veem no livro A Náusea  de Jean-Paul Sartre um romance pessimista, sombrio, que afirma a falta de sentido da existência humana. 

Eu vejo nele outro conteúdo: uma afirmação otimista da falta de sentido, a priori, do Universo e da humanidade, e em consequência disto a nossa enorme e vertiginosa liberdade de inventar o sentido que quisermos para tudo isto.
 
Quem produz o conteúdo do Universo somos nós, e nossa única limitação é termos que usar o que o Universo nos oferece, ou seja, a forma do Universo. O qual, como dizia Sir James Jeans, “não se parece com um mecanismo, e sim com um pensamento”.
 






quinta-feira, 18 de setembro de 2025

5199) Os hermetismos pascoais (18.9.2025)




Eu tinha pensado em publicar aqui uma daquelas crônicas-obituários, mas dei uma olhada na página do blog e me deu um arrepio ao ver como esses necrológios estão se enfileirando. Vôte. Daqui a pouco vou ficar sem outro assunto senão me despedir dos amigos e das pessoas que mais admiro. 
 
Me vieram à mente as vozes de Jessier Quirino e Jorge Filó: “A morte é um doido limpando mato”. É a sabedoria visual dos cantadores de viola, capazes de criar, em uma linha, um cartum inesquecível. Dê uma foice e uma instrução a um doido, e ele vai sair cortando o que aparece pela frente, seja touceira de urtiga ou o galho da roseira. 
 
Por falar nisso, passei recentemente uma madrugada assistindo clipes de vídeo e de áudio com as performances musicais de Hermeto Paschoal. Eu só, não: eu e a torcida do Treze. (Não boto “eu e a torcida do Flamengo” porque esta anda bastante alegrinha, e o momento é de certa melancolia.) 
 
O primeiro show de Hermeto Paschoal que eu assisti foi ali por volta de 1979 ou 1980, quando eu morava em Salvador. Algum produtor inspirado pelas musas trouxe para o palco do Teatro Castro Alves ele e Sivuca, só os dois, sem banda (“sem outros músicos atrapalhando”, como dizia um amigo meu de maus-bofes). Foi um diálogo bate-rebate, um pingue-pongue, um barra-a-barra, os dois se divertindo pra valer, tocando juntos e separados. 



(Hermeto e Sivuca) 

 
Separados no berço, disse alguém na época.  Dois sanfoneiros albinos parecem uma dupla de personagens inventada por Salman Rushdie ou João Ubaldo Ribeiro, que são chegados a um “realismo histérico”. Não importa. Um era paraibano, o outro alagoano, mas era como se alguém tivesse preparado uma fórmula mágica e pingado em dois tubos-de-ensaio diferentes, deixando maturar ali durante algumas décadas para ver os resultados. 
 
Em todo caso, não é Sivuca a figura com quem geralmente me ocorre comparar Hermeto, e sim com outro companheiro seu de geração, o baiano Tom Zé, que vi há poucas semanas no Circo Voador. 
 
Tom Zé é poucos meses mais novo que Hermeto (os dois são de 1936). As trajetórias dos dois são muito diferentes, mas como eu os acompanho há seis décadas sempre percebi alguns pontos em comum. Os principais são: erudição, experimentalismo-lúdico e pés no chão. 
 
Primeiro, a erudição. Músico erudito, no meu dicionário pessoal, é músico que sabe ler e escrever partitura. Não importa se é pianista da sinfônica de Berlim ou trombonista da orquestra-de-frevo da Bomba do Hemetério. Para mim, que olhando no papel não distingo um dó de um ré, ele é erudito. É alfabetizado, e eu não. 



(partitura de Hermeto) 

 
Claro que não basta isso, mas isso pesa. A música é uma língua estrangeira: a notação musical, a linguagem musical, as noções estabelecidas de harmonia, ritmo, contagem de compassos, modulações e o escambau...  Tudo isto é um idioma secreto que eles compartilham e nós espiamos pelo lado de fora. 
 
Vemos os resultados e podemos apreciá-los: qualquer pessoa mediana pode sentir a beleza de um quarteto de Mozart, mesmo que não saiba os nomes das notas que estão sendo tocadas. Mas uma coisa é reconhecer a beleza (ou a mera complexidade) quando a vemos, e outra coisa é ser capaz de reproduzi-la. 
 
Digo isto porque grande parte do respeito que um músico como Hermeto desperta lá fora do Brasil (onde chegava sem ninguém saber quem era ele) vem da percepção imediata, com quinze minutos de show no palco, de que “aquele cara sabe do que está falando”. Ele não era um mero talento bruto, primitivo, “uma força da natureza” – algo também importante. Era um cara que tinha domínio sobre essa língua universal, a linguagem-escrita da música. 



 
E aí me refiro a uma coisa importante na vida artística (como na vida em geral), que é o respeito entre seus pares. Ser respeitado pelas pessoas que praticam aquilo. Pode até ser que o público em geral, o público parecido comigo, esteja vendo o show e remungue: “Que som complicado, não estou entendendo nada”. Mas o músico profissional que está de pé ao meu lado, lata de cerveja em punho, fala baixinho: “Cara, esse sujeito é muito bom.”  E isso pesa. 
 
Ser erudito parece um pouco com ser rico. Que graça tem ser rico sozinho?!  E Hermeto tinha um aspecto formador, distributivo, de canalizar essa riqueza teórico-prática e passá-la adiante. Formou gerações de músicos. 
 
A erudição não salva ninguém. Na música, na literatura, na filosofia, onde quer que seja. O sujeito pode saber de cor todos os clássicos e todos os Manuais de Escrita Criativa disponíveis no mercado, mas isso não garante que seja capaz de produzir uma crônica que se aproveite. 
 
Aí entra um aspecto desconcertante que Hermeto tinha, o tal “experimentalismo lúdico”. Aquilo que faz o músico de concerto dar um passo adiante na direção do desconcerto. Uma curiosidade incessante de inventar formas novas, redescobrir formas esquecidas, fazer algo que nunca foi feito, aproximar coisas que estavam em universos separados... É para isso que serve a erudição. Tem muito erudito que se refestela no conforto, na repetição, mas essa técnica toda que acumulou poderia também lhe servir de estímulo para aventurar-se no desconhecido, mas com fundamento, com base, com um GPS auditivo que o mantenha na rota. 
 
E experimentar de maneira lúdica – brincando, divertindo-se, desafiando a si mesmo e aos outros, jogando na mesa pequenas provocações criativas, despertando os sonolentos, chacoalhando os rotineiros... Experimentar com prazer. Não o prazer egoísta de quem tenta deixar os outros do lado de fora, mas o prazer de abrir um novo espaço e tentar puxar alguém para dentro. 




Tem uma anedota que contam de Hermeto, com várias versões. Numa delas ele estava executando um número com sua banda e a certa altura um músico tinha a incumbência de soltar moedas numa bacia de metal. Alguém da platéia reagiu: “Ei, eu vim aqui para ouvir música, isso não é música!...”  Hermeto, ao piano, mandou o músico jogar outra moeda, ouviu o “plin!...”, e tocou o mesmíssimo som numa tecla do piano: “É música, sim.” 
 
Isso quer dizer que qualquer barulho, qualquer som  é uma nota musical? Não. Uma nota musical é a depuração de um som, a destilação, a purificação de um som num conjunto de vibrações alinhadas entre si. A nota musical é o tipo de som mais puro que existe. A nota musical está para o som assim como o vidro está para a areia. 
 
Hermeto não disse isto, quem está dizendo sou eu, todo animadinho com meu boné de teórico na cabeça. E isso só está me vindo à mente porque ele mandou o músico jogar uma moeda na bacia. 
 
Joguem moedas na bacia, que o músico está precisando. 
 
Botem notas na bandeja, porque os cantadores ao pé-da-parede estão precisando. Criar o que não existe também é trabalho. 
 
E isso nos traz ao terceiro elemento que está na obra (e acho que na vida) de Hermeto: pés no chão. Parecia ser o sujeito menos hermético do mundo, um camarada simples, sem pose. Não precisava chamar a atenção de ninguém – a natureza já tinha se encarregado disso. A pose, em si, não desmerece nem desvaloriza um artista, mas tem gente que recorre à pose por mera insegurança íntima, por mera necessidade ansiosa de imaginar-se superior; e o sujeito entra numa sala como se fosse um boneco do carnaval de Olinda. Não precisa. 
 
O famoso “passeio na rua” em que Hermeto arrebanhava uma platéia inteira para sair do teatro atrás dele e dar a volta ao quarteirão era a sua versão pessoal (uma versão pés-no-chão, uma versão desconstrutora!) desse carisma de liderança, de flautista-de-Hamelin, de líder capaz de conduzir multidões. Bora sair, bora dar uma volta na calçada, bora chamar a atenção do povo, bora botar o povo pra dançar, os “pobe” tão voltando do trabalho, todo mundo cansado, nem jantou ainda, aí eles veem a gente tocando e vêm atrás, dançam um tiquinho, o caba se distrai, volta pra casa mais leve, dá um cheiro na mulher, dá um cheiro nos menino. Agora pronto, vamos voltar pro teatro, que minha bolsa ficou lá.  
 

(Hermeto e banda)
 
 
 
 
 




 


 

quinta-feira, 11 de setembro de 2025

5198) Atirem no pianista (11.9.2025)



 
O circuito « Estação Net » (em Botafogo, no Rio de Janeiro) está exibindo até o próximo dia 17 de setembro uma retrospectiva da obra de François Truffaut, num total de 23 filmes de longa e curta metragem. Estou aproveitando para ver e rever alguns deles.
 
 
Um antigo clichê do filme de faroeste é o confronto armado em pleno salloon, com mocinhos e bandidos sacando as armas, as coristas fugindo numa revoada de saias e de rendas... e o pianista se agachando por trás do piano.
 
Quem não lembra do cinéfilo Belchior cantando:
 
Eu sou apenas um rapaz latino-americano
sem dinheiro no banco...
Por favor, não saque a arma no “salloon”:
eu sou apenas o cantor...
 
A canção é de 1976, época de ditadura e de guerrilha, e esse verso era lido por muita gente como: “Eu não faço da parte da luta armada, me deixem em paz, estou só cantando canções de rádio”.



 

O segundo filme de François Truffaut, Tirez sur le pianiste (1960) é a história de um músico mais perdido do que pianista em tiroteio. Charles Aznavour faz “Charlie”, pianista de um daqueles enfumaçados bares parisienses. Ele mora com um irmão adolescente, Fido, e tem dois outros irmãos metidos com assaltos e roubos. O filme começa quando os conflitos deles com alguns mafiosos vazam para dentro da vida de Charlie, que é introvertido, suave, quer apenas viver em paz.
 
Uma boa parte do cinema de Truffaut (e de seus colegas da Nouvelle Vague) transcorre na zona cinzenta entre a lei e o crime. Fossem filmes feitos aqui, alguém invocaria sem demora o “jeitinho brasileiro” para justificar as acrobacias morais dos personagens que praticam o delito, a bravata armada, a contravenção, a esperteza, a coerção ameaçadora, o pequeno furto, o pequeno assédio.
 
Atirem no Pianista parece existir no mesmo universo de filmes como Bande À Part (1964, Jean-Luc Godard): a mesma narrativa propositalmente desconjuntada (para o horror dos autores de “Manual do Roteiro”), os mesmos protagonistas amorais, disponíveis, um tanto simpáticos, não tão inteligentes quanto pensam ser. São os mesmos crimes desnecessários, planejados como uma fantasia de adolescente, executados sem crueldade, e até com certa excitação lúdica. E acabam resultando em mortes reais.
 
São uma versão light, uma versão pop do absurdo sombrio de O Estrangeiro (1942) de Albert Camus, outro admirador dos romances policiais noir norte-americanos.

Os intelectuais franceses tinham uma fascinação pelo gênero policial noir, fosse nos filmes B em preto-e-branco ou nos romances de bolso. Boris Vian chegou a virar “Vernon Sullivan” para escrever Vou Cuspir No Seu Túmulo (1946), uma espécie de fanfic sob pseudônimo.




 Era um verdadeiro parque-de-diversões, para os cultores do existencialismo e do absurdo, essa literatura de personagens meio sonâmbulos, morando em cortiços e pardieiros, bebendo, usando drogas, fazendo sexo sem vontade, cultivando paixões incoerentes. Homens e mulheres sem ideologia, sem leitura, que não conseguem se ajustar nem se rebelar. O crime, quando finalmente acontece, não justifica nada, e basta-se a si mesmo.
 
Nos filmes de Truffaut, esses jovens se rebelam contra os mesmos moedores-de-carne: o Estado, a Burguesia, a Igreja, a Polícia, a Família, a Escola. O crime e a arte serviam como dois túneis de escape dessa prisão. Godard dizia que seus personagens eram “filhos de Marx e da Coca-Cola”, e pode-se dizer também que eram netos de André Breton e primos de Bonnie e Clyde.
 
Atirem no Pianista é livremente adaptado de um romance de David Goodis (1917-1967), um autor bastante conhecido no Brasil. Seus livros sombrios, doloridamente humanos, cheios de mulheres fatais e homens explosivos, foram publicados nos anos 1950-60 pelas Edições de Ouro: Paixão Criminosa, Viúva de Um Vivo, O Ladrão, Crepúsculo Violento, etc.
 
Meus preferidos são Fogo na Carne I1957) e A Mulher de Cassidy (1951).


 

 
Goodis teve muitos livros adaptados para o cinema. Além do Atirem no Pianista de Truffaut, há dois filmes bem conhecidos: em Dark Passage (Delmer Daves, 1947), Humphrey Bogart é um fugitivo da cadeia que, ajudado por Lauren Bacall, faz uma cirurgia plástica para não ser reconhecido, e tenta provar sua inocência do crime que lhe atribuem; e A Lua na Sarjeta (Jean-Jacques Beneix, 1983), com Gérard Depardieu e Nastassia Kinski, foi um projeto ambicioso mutilado pelos produtores.
 
Personagens de filmes assim vivem o tempo todo bordeando a tragédia. Lá pelo meio de Atirem No Pianista, um flash-back nos informa que Charlie era um pianista clássico, de concerto, mas ficou seriamente abalado pelo suicídio da esposa, e acabou se afastando das salas de concerto.
 
Uma garçonete do bar onde ganha a vida, Lena (Marie Dubois), decide recuperá-lo. Lena é uma daquelas personagens que podem ser chamadas “A Mulher Vital” – o oposto da “Mulher Fatal” que só provoca paixões e desgraças. 

As mulheres vitais são essas mulheres metade resolutas, metade ingênuas, que arranjam os namorados mais improváveis e dizem a todo mundo: “Ele é um cara bacana, tudo que ele precisa é uma mulher que organize a vida dele.”



(Marie Dubois e Charles Aznavour)

 
Não sei se é o machismo residual na alma de quem escreve, ou se é a fatalidade estatística, mas mulheres assim, nos filmes, estão condenadas a uma morte trágica nos últimos dez minutos.
 
E Charlie volta, no fim do filme, para onde? Para o piano, para o teclado, talvez o único lugar  onde ele tem alguma noção do que está fazendo e algum controle sobre o resultado.
 
Como dizia o cinéfilo Bob Dylan, no poema “11 Outlined Epitaphs” (1964):
 
(...)
existe um filme chamado
Atirem no Pianista
em que a última frase diz
“música, cara, isso é tudo que conta”
é uma frase religiosa
lá fora, soam os carrilhões
e eles ainda
estão soando.
(trad. BT)
 
Ou, mais uma vez, como avisava o nosso Belchior:
 
Mas se depois de cantar
você ainda quiser me atirar
mate-me logo à tarde, às três
que à noite tenho um compromisso e não posso faltar
por causa de vocês...
 
Atirem no pianista – mas errem, porque o show não pode parar.
 


(David Goodis ao piano)
 


 
 





sexta-feira, 5 de setembro de 2025

5197) Silvio Tendler, 1950-2025 (5.9.2025)



 
O cinema brasileiro perdeu hoje um diretor que dedicou sua vida inteira ao documentário e construiu com sua obra “uma sala por onde todo mundo tem que passar”, como dizia um amigo meu. 
 
Não conheço a maior parte da obra de Silvio Tendler, que é numerosa. Suas compilações sobre a história do Brasil, enfocando Juscelino Kubitschek, João Goulart, Milton Santos, Glauber Rocha, Josué de Castro, etc., são registros preciosos não apenas da nossa História mas da maneira de abordá-la. 
 
A maneira de abordá-la!  Quanta tinta tem sido gasta na tentativa de equacionar esse problema.   
 
Silvio, que não cheguei a conhecer pessoalmente, foi um dos entrevistados da série televisiva A Persistência da Memória de Paola Vieira (Canal Curta, 2023), em cujo roteiro colaborei. A série aborda o fenômeno “memória” de vários ângulos; um deles é a reconstrução da memória pessoal e coletiva através do cinema, especialmente do documentário. 
 
Aqui:
https://canalcurta.tv.br/series/a-persist%C3%AAncia-da-mem%C3%B3ria
 
Peço licença a minha diretora e à Luni Produções para transcrever aqui alguns trechos das respostas de Silvio, quando entrevistado em 2021. O cinema chamado de “documentário” é algo menos imparcial e menos objetivo do que vulgarmente se entende por aí afora. A palavra “documento” é uma palavra enganosa: sugere a existência de uma verdade que ninguém ousaria contestar, algo objetivo, invulnerável à crítica. Isso não existe. 




Cada “documentarista” cria sua própria verdade. É um documento? É, mas é como se uma pessoa pegasse um retângulo de papel e desenhasse ali uma carteira-de-identidade, desenhando a própria foto, a própria impressão digital, as próprias informações, e depois assinasse com sua própria assinatura. 
 
Dizia Silvio, a certa altura: 
 
São coisas que você vai guardando da infância, da adolescência... E aí, quando você vai fazer cinema, você vê com muito mais simpatia, então eu acho que esse desejo que a gente tem, de contar histórias, está profundamente ligado às lembranças da infância. Eu acho que memória é aquilo que a gente quer lembrar, né? Você tem também uma lembrança oculta que você não quer contar. Você sabe coisas de você que você não revela pra ninguém: é só tua memória oculta, a tua lembrança que você guarda só pra você mesmo, e se te perguntarem você vai negar de pés juntos até a morte – mas você sabe da existência daquela memória. Acho que memória é isso, memória é desejo. Eu olho muito do ponto de vista da história, a memória não como âncora, mas como bússola. 
 
A “pessoalidade” (o contrário de “impessoalidade”) que orienta o documentário é exemplificada por Silvio com uma memória de sua própria infância, memória criadora de um vínculo emocional que acabou, muitos anos depois, direcionando seu trabalho como cineasta. 
 
Eu fui fazer [um filme] usando JK por uma lembrança de infância. Eu tinha dez anos de idade, em 1960, estava no carro com meu pai ali no recém construído Aterro do Flamengo. No final, já, do governo JK, o Rio de Janeiro estava deixando de ser a capital, estava se transformando em [Estado da] Guanabara. E um dia nós estávamos indo para a Zona Sul vindo do centro, para casa, para Copacabana, e meu pai emparelhou com um carro (...) e eu olhei para o carro ao lado e era o JK, o Juscelino Kubitschek, aí eu olhei e abri a janela pra ver o Presidente. E ele me viu, viu que eu estava olhando pra ele, ele abriu a janela e deu aquele sorrisinho dele, e me cumprimentou com aquele aceno clássico. A criança nunca mais esquece isso, essa é a coisa que você nunca mais esquece. E isso está na raiz de um filme político, que é Os Anos JK (1980). 
 
Pode soar parecido com o narcisismo e o umbiguismo que hoje vigoram nas redes sociais, em que o Eu é sempre o centro de tudo. O Eu, no entanto, é o mais frágil dos centros. É “o centro que não consegue se sustentar”, no dizer do poeta Yeats. O que mais rapidamente desmorona no sumidouro da inexistência (ou no da insignificância, que é maior e mais fundo). Não importa: o Eu é tudo que cada um de nós possui, e no caso de quem faz algum tipo de arte é o ponto para onde convergem (para onde parecem convergir) todas as linhas do mundo.  



Um artista, e ainda mais um documentarista de cinema, tem uma percepção mais vasta do quanto a História é um oceano onde bóia o torrão de sal do Eu antes que se dissolva. E sabe o quanto são significativos, para as pessoas comuns, esses contatos de raspão com a História, com o mundo das Pessoas Importantes. O mundo dos “olimpianos”, como dizia Edgar Morin, aqueles de quem ouvimos falar diariamente, mas que sabemos existir num universo paralelo a que dificilmente teremos acesso. 
 
E tentamos compensar isso com esses momentos breves: o autógrafo do autor best-seller, a selfie com o astro pop.  Nesse momento, o fã anônimo se sente existir pela primeira vez no “mundo de verdade”, o mundo das pessoas famosas que aparecem na TV e nas revistas. 
 
Para uns, o mundo do Glamour. Para outros, o mundo do Poder. 
 
E a verdade é que no momento da filmagem (inclusive da entrevista filmada) e principalmente no momento da montagem (ou da “edição”, como está se dizendo agora) o Documentarista é um deus-pequenino manipulando as figuras históricas como se fossem action figures de seu jogo pessoal. 
 
O conceito de documentário tem fronteiras distantes, inquietantes, movediças; é uma espécie de “Área X” onde quem penetra volta transformado.  E essas fronteiras não são um marco de cimento no meio de uma imensa pradaria deserta. São como aquela fronteira Brasil/Uruguai bem no meio de uma cidade super movimentada, uma calçada fica num país e a calçada em frente já está no outro. 




Fazer documentário envolve uma porção de gente identificando material, preservando, restaurando, indexando, acessando, escolhendo, reeditando, reinterpretando, refazendo. Uma cadeia de pessoas que em geral trabalham silenciosamente, anonimamente, à revelia umas das outras, às vezes separadas por intervalos de milhares de quilômetros ou de dezenas de anos. 
 
Olha, esse trabalho é fundamental, essas pessoas apaixonadas por fotogramas, que adoram o cheiro de acetato, de ácido acético, né? São maravilhosas, né? Eu tenho o orgulho e a honra de ter começado talvez com o mais brilhante deles, que foi o Chico Moreira. Ele começou comigo no Anos JK, ele era um estudante de cinema da UFF e aí eu fui trabalhar na Embrafilme, dirigia um programa chamado “Coisas Nossas” e me deram o Chico como assistente. Aí, durante a realização desse programa, eu percebi que ele conhecia muito mais cinema do que eu, ele era um apaixonado por cinema, ele ia todas as noites ao cinema, conhecia todos os filmes, tinha uma coleção de lentes, coleção de revistas, etc. Aí quando eu comecei a fazer o som do JK, a colecionar aquele material na Cinemateca do MAM, o Cosme Alves Neto me convidou para organizar o arquivo do MAM e eu falei, “Cosme, não, eu vou botar na mão da pessoa que mais entende disso, não sou eu, é o Chico”. Aí o Cosme ficou chateado, achou que era mentira, que eu não estava querendo pegar o trabalho, mas o Chico aceitou e foi longe, continuou nessa carreira, fez curso no exterior, foi pra FIAF [Federação Internacional de Arquivos de Filmes] e tal...  Então eu acho que ele é o primeiro grande conservador do cinema brasileiro. Depois a Cinemateca Brasileira organizou isso também, se equipou, conseguiu equipamentos e profissionais muito bons, tem o João Sócrates, que hoje mora em Londres, que também organizou essas técnicas para você recuperar e preservar acervos... Você tinha em Curitiba o Valêncio Xavier, com essa gama de pessoas apaixonadas por cinema... Você tem a Myrna Brandão e o marido dela aqui no Rio de Janeiro, que também começaram a salvar filmes... A Alice Andrade, que salvou o acervo do Joaquim Pedro, você tem a Paloma Rocha que salvou o acervo do Glauber, e a Maria Hirszman que salvou o acervo do Leon, né?  
 
É uma conspiração de pessoas que habitam porões com ar condicionado e salas escuras. O documentário – e aqui penso no “documentário na mão de quem monta”, mais do que “na mão de quem filma” – sobrevive por essa guilda de gente para quem o cheiro de vinagre é carregado de poesia. 




Mal comparando, a montagem de documentários a partir de material de arquivo (material antigo, já existente, não filmado pelo mesmo diretor) é uma espécie de quebra-cabeças. No joguinho de quebra-cabeças, ou puzzle, temos que encaixar peças umas nas outras a partir de dois critérios: 1) As peças precisam se encaixar fisicamente (as curvas das bordas precisam coincidir com exatidão); 2) Depois de encaixadas, as peças precisam reproduzir um desenho, que o jogador vai descobrindo aos poucos (ou já vem proposto na própria caixa do brinquedo). 
 
No documentário, é preciso haver esse encaixe no corte, na passagem de uma imagem para a seguinte (por corte seco, fusão, escurecimento, etc.). Mas a figura que vai ser revelada no final é uma criação do documentarista. Não estava prevista em cada peça isolada. É como se as peças do puzzle estivessem todas em branco, e à medida que as encaixasse uma na outra ele fosse pintando um quadro. Uma Obra.  
 
Dizia Silvio, lembrando um ensaio famoso de Walter Benjamin: 
 
São duas questões diferentes: o excesso de informação, e a permanência. O Benjamin, quando escreveu A Obra de Arte na Época da sua Reprodutibilidade Técnica ele estava tirando a aura do cinema como objeto único. Hoje a coisa se inverteu. O cinema é objeto único, porque apesar de você ter inúmeras cópias, você não se dispersa na quantidade de informação que você recebe. Você assiste um filme inteiro, e o filme transmite uma idéia de começo, meio e fim. Você tem ali uma continuidade. Ao contrário do que há no “zap” e todas essas outras informações que circulam por todos os meios: elas são fragmentadas, elas são dispersas, então você recebe tanta massa de informação por dia que no final do dia você não lembra quem te mandou o quê... Essa informação se perde porque teu cérebro não tem a capacidade de armazenar toda essa informação que a gente recebe. Agora – o “objeto único” tem. Então, quando você quer falar de uma Era, você não cita um filmete que você recebeu por zap, que você não lembra nem onde ele está. Você cita um filme que você assistiu e que vai te falar daquele momento. 
 
O filme-pronto se salva porque tem começo, meio e fim. Tem um fio de pensamento costurando tudo, e é esse fio que o salva. Tem uma mente ordenadora por dentro de todos aqueles fragmentos. E o resto que fica fora do filme é apenas uma farofa de grãos de imagem. 



 
 
 
 




sábado, 30 de agosto de 2025

5196) Luís Fernando Verissimo, 1936-2025 (30.8.2025)





O maior escritor brasileiro em atividade estava inativo há alguns anos, quando sofreu um AVC que agravou seu estado já debilitado pelo Mal de Parkinson. Não, não é esta a melhor maneira de começar um texto sobre uma pessoa tão pouco melodramática quando Luís Fernando Verissimo. 
 
Um cartunista, um saxofonista e um torcedor do Inter entram num bar e sentam no balcão. O barman pergunta: “O senhor vai querer o quê?”. Também não é a melhor saída. O pastiche é a mais avarenta forma de homenagem. 
 
Hoje é o dia em que todo sujeito como eu, que ganha (perde) a vida batucando num teclado sente-se no dever agradecido de pegar uma pedrinha qualquer na beira da estrada e vir colocá-la aos pés da deusa invisível que habitou aquele sujeito simpático e tartamudo. 
 
Devemos muito a ele aqui no Brasil, porque o fato de termos um DNA barroco não nos condena a afundar no barroquismo unânime. Precisamos do contrário, que não sei aqui como nomear, mas seria uma prosa com elementos de coloquialismo, maleabilidade, nitidez, simplicidade na-mosca, imprevisibilidade constante. 
 
A prosa de Verissimo tinha um segredo, que não revelarei aqui, mas era o mesmo segredo que fez os egípcios moverem aqueles blocos de granito como se fossem pacotinhos de algodão. Ele passou a vida fazendo isso diante dos olhos de todo mundo. 
 
Em algum texto antigo já me referi aos “começos-de-conto” de Verissimo e denominei esse modo de escrever “o estilo Saíram-Do-Bar-E-Foram-Andando”.   
 
Porque bastava a ele um pontapé-inicial desse tipo para se instalar, com 100% de credibilidade, ao volante da mente do leitor, e conduzi-lo para onde bem quisesse.
 
Saíram do bar e foram andando. De repente, João bateu com a mão no bolso traseiro da calça.
-- Minha carteira!  Perdi.
-- Perdeu não, idiota. Você deu de presente à garçonete, e nem foi à bonitinha, foi à que parecia com Robert de Niro.
 
Isso aí não é de Verissimo, claro, é meu, improvisei agora, para testar pela milésima vez o poder mágico desse mote inicial. Saíram do bar e foram andando! As palavras, especificamente, pouco importam. Basta que sejam capazes de invocar um portal de simplicidade e consenso. Perguntem a Nelson Rodrigues, a Fernando Sabino, a Mario Quintana. 
 
Em teatro e música existe um conceito que a gente chama às vezes de “presença de palco”. É um mini-carisma específico, uma magia-de-bolso que serve para aquilo e para nada mais; mas serve. A atriz surge no palco, avança alguns passos.  Antes que ela diga um oi, baixa o silêncio; todo mundo engole em seco e prende a respiração. 
 
Existe uma Presença ali, e essa presença dá credibilidade (ou seja, no dizer do poeta: Verdade e Beleza) a qualquer coisa que aconteça em seguida. 
 
Escrever é como discursar diante de um teatro repleto, mas com os olhos vendados. Nunca temos certeza de nada, mas é preciso exibir segurança em tudo.  A segurança de um dançarino de tango que já dá o primeiro passo sabendo o que vai fazer, e a segurança de um folião de rua que ao som do frevo começa a marcar o passo sem ter a mínima idéia do movimento que vai fazer em seguida. Existe uma equação do Tao embutida em tudo. Precisamos do Flexível capaz de se firmar, e do Firme que saiba fluir.   
 
Eu estava há pouco deslizando telas no celular e vendo nelas todas as mesmas Duas-Datas-Fatídicas, e o mesmo rosto bonachão e de óculos, com aquele meio sorriso de quem tenta se tornar invisível pelo mero esforço da vontade; e do-nada tropeço numa entrevista de George Martin, o quinto Beatle. 
 
Eu estava no estúdio quando me disseram: “Vamos trazer um grupo novo para você dizer se vale a pena produzir.” O nome era um nome brega, The Beatles, com A. Quando eles entraram... As canções eram banais, mas havia neles uma eletricidade, um carisma, uma presença... Quando eles saíram, eram como se alguém tivesse ido embora. E eu pensei: Se eu me senti assim, o público talvez se sinta também. 
 
Dou esse contra-exemplo porque Verissimo (disclaimer: nunca o encontrei pessoalmente) parecia fazer o possível para se esvaziar de carisma. Lembrava aquela conversa de Paulo Coelho, de que certas práticas da magia ritual tornam possível alguém cruzar um salão cheio sem ser visto por ninguém. 
 
Todo o carisma de Verissimo, por assim dizer, foi investido na sua escrita, como alguém que deposita todo o seu dinheiro no mesmo banco. 
 
Verissimo apostou todas as suas economias literárias (e eu acrescentaria: toda a sua herança, que não foi pouca) numa fórmula simples que não precisarei descobrir, porque Ítalo Calvino (Seis Propostas Para o Próximo Milênio) já o fez por mim: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade, consistência. 
 
Nada disso vem às nossas mãos para cancelar ou desmentir o nosso lado barroco, onde habitam Guimarães Rosa, o Padre Vieira, Coelho Neto, Jorge de Lima, Ariano Suassuna, Osman Lins, Euclides da Cunha e outros igualmente imprescindíveis.  
 
A contrapartida da exuberância barroca é a escrita dos que limpam a prosa até deixar o osso alvejando, dos que com dois ou três riscos de tinta permitem ver uma catedral ou uma ninfa nua, dos que em três linhas de verso conjuram uma floresta invernal, dos que nas dez páginas de um conto embutem a biblioteca do absurdo. 
 
Precisamos do Muito que se apóia no Pouco, e do Pouco que contém o Muito. 
 
Numa homenagem ao mestre acontecida alguns anos atrás, amigos gaúchos (alô, Fraga!) me pediram uma colaboração, e enviei um texto, “Verissimo e a Marca do Zorro”, onde dizia: 
 
(...) Verissimo ganhava a gente (o leitor jovem) por diferentes motivos: o humor, o nonsense, a linguagem, as situações, a comédia humana... No meu caso, era isso tudo e mais uma coisa: o exemplo de uma escrita de destreza absoluta, capaz de jogar qualquer leitor dentro de qualquer situação com duas ou três linhas, às vezes menos do que isto.
 
Temos entre nós a tendência ao nariz de cera, ao prelúdio interminável, por isso eu admiro quem apresenta uma situação complexa “em rápidas pinceladas”, como se diria antigamente. Como Machado – que nem sempre fazia isso, mas quando o fazia parecia a espada do Zorro traçando um “Z” mais depressa do que o olho podia acompanhar. (...)
 
Duas ou três linhas; e a isca foi mordida. Mordi o anzol de Verissimo com vinte e poucos anos, e até hoje deixo que ele me leve para onde está indo. 
 




segunda-feira, 18 de agosto de 2025

5195) I. A. -- a salsicha literária (18.8.2025)



 

Entre o “texto literário produzido por uma Inteligência Artificial” e o “texto literário produzido por uma pessoa” existe um parentesco indiscutível, e ao mesmo tempo uma distância abissal. Ainda não sei qual dos dois é maior, se o parentesco, se a distância. 

Um está para o outro assim como uma salsicha está para um bife. 

Minha impressão é que o texto da I. A. (Inteligência Artificial) obedece aos mesmos princípios produtivos da acumulação de carnes de toda natureza, que são moídas, homogeneizadas e embutidas em formatos-padrão, por meios puramente mecânicos. A interferência humana vai somente na linha da criação e eventual supervisão desse processo. Uma vez posto em movimento, o processo procede por si só. 

Muita gente prefere negar a existência da Inteligência Artificial. Ou melhor: negar-lhe o direito à existência, na esperança de que diante de muitas negativas as empresas que investiram centenas de bilhões de dólares nessa tecnologia fechem as portas e peçam desculpas. 

Como se diz na Paraíba: “cochila!...”. 

“Cochila!” quer dizer “perca as esperanças!”, mas duvido que alguma I. A. saiba disso. Dificilmente terá pirateado algum texto onde essa expressão apareça. 

Minha resistência pessoal à I. A. é pela sua incapacidade robótica de distinguir, entre os hectares de texto que consulta em fração de segundo, entre Baden Powell, o fundador do escotismo, e Baden Powell, o violonista dos “afro-sambas”. 

 


Amigos meus já consultaram o Chat GPT a meu respeito e obtiveram a resposta de que nasci no Rio de Janeiro em 1965, e sou autor de meia dúzia de livros cujos títulos li de cima a baixo e nunca vi mais gordos. 

Quem pode confiar numa engenhoca tão incompetente?!   

O pior é que quando dizemos “você está errado” o robozinho abre um sorriso parvo e diz: “Peço desculpas! De fato eu estava errado na minha resposta.” E fica por isso mesmo. Ainda bem que é consulta sobre literatura! Se fosse consulta médica (como tem muita gente fazendo) o paciente já estaria rumo ao crematório. 



A I. A. é um mero processo estatístico de cortar-e-colar textos alheios baseando-se em índices de probabilidade, mas é um processo meramente mecânico. Não existe uma inteligência por trás. Não existe uma mente humana (ou um conjunto delas) olhando, interpretando, avaliando, decidindo. Existe uma impressão de presença humana, muito espertamente preparada por quem manipula esses algoritmos. Mas ela é tão humana quanto aquelas gravações dos saites das empresas, aquelas aveludadas vozes femininas que nos dizem: “Por favor, permaneça na linha! Sua ligação é muito importante para nós!”. Você acha que ela está sendo sincera?... 

Ferramentas desse tipo não parecem com uma inteligência criando; são um mero desenvolvimento dos corretores ortográficos que ficam nos sugerindo a complementação de palavras. Quando numa caixa-de-diálogo eu digito “BRA...”, ele me sugere “Brasil”, “Braulio”, “Brasa”... Ele pesquisa em fração de segundo quais as palavras que mais frequentemente foram escritas por quem digitou essas três letras iniciais, e pergunta: “É isso aqui que você está querendo dizer?” 

Corretores ortográficos dessa natureza têm uma orientação estatística. Tendem a sugerir as palavras que aparecem com maior frequência. E no caso dos geradores de texto tendem a sugerir as frases que aparecem com mais frequência nas centenas de milhões de páginas que acumulam nos seus arquivos.  

(Aqui entraria uma digressão interminável sobre a legitimidade ou não do uso desses milhões de páginas sem autorização dos autores; mas esta é outra discussão. Eu, que sou autor, considero isto um roubo, aquilo que a gente chama “tomar na mão-grande”. Há milhares de ações correndo na Justiça, no mundo inteiro, mas não sou otimista quanto ao resultado. Tem muito dinheiro pesando no lado de lá da balança.) 


O uso dos ChatGPTs e similares me lembra a anedota que se conta sobre Horace Gold (1914-1996), o antigo editor da revista Galaxy, uma das principais publicações de ficção científica dos anos 1950-60. Diz-se que Gold, um reescrevedor incansável dos contos alheios que publicava, era capaz de transformar uma história medíocre numa história boa, e uma obra-prima numa história boa. Ele medianizava tudo. 

Um artigo de Kyle Chayka no The New Yorker, “A. I. Is Homogenizing Our Thoughts”, comenta assim os “Modelos de Linguagem em Larga Escala” (LLMs, Large Language Models): 

A Inteligência Artificial é uma tecnologia das frequências médias. Os Modelos de Linguagem em Larga Escala (LLMs) são treinados para detectar a ocorrência de padrões dentro de imensos volumes de dados; as respostas que encontram têm portanto uma tendência para o consenso, tanto na qualidade da escrita, que é repleta de clichês e banalidades, quanto no calibre das idéias.


 

É uma reiteração do mais frequente, do que foi utilizado mais vezes e com isto demonstra o quanto é útil.  

É útil mesmo?  Sem dúvida. Se eu quiser redigir uma “Carta de Anuência” confirmando minha participação num projeto, basta fornecer à I. A. os dados do projeto e ela redige para mim esse texto que tem forçosamente que ser reto, enxuto, padronizado, sem nuances, sem lugar para dúvidas. 

Se eu precisar de um contrato de locação de imóvel, de uma autorização para viagem de um menor de idade, de um relatório de viagem de trabalho, é só fornecer os dados em-bruto e o programa organiza tudo, bonitinho, com um texto enxuto e esclarecedor. (Ou pelo menos é esta a esperança de quem usa.) 

Por esse motivo os usos principais dos LLMs, ao que se diz, estão nas atividades ligadas a Tecnologia, Negócios, Direito, Comércio etc. – onde a produção de textos não visa a originalidade, mas a clareza / objetividade / eficiência / etc. 

Nessas áreas, pelas estatísticas que vi circulando por aí, o uso de Inteligência Artificial chega a 75%; curiosamente (ou talvez não) na área da Literatura ocorre uma das menores percentagens de uso da I. A.  Penso eu: “É claro, porque a literatura, embora tenha seus usos para clareza e objetividade, lida também, e muito, com a polissemia, a ambiguidade, a elipse, a metáfora, ou seja, usos subjetivos da linguagem”. 


A questão é que dentro da área da Literatura, mesmo sendo uma das menores percentagens, ela chega a 40%. É muito. É muita literatura mediana sendo produzida, mas... Vamos pegar o feijão-com-arroz literário de dez anos atrás, de trinta anos, de cinquenta anos atrás. Não estarão ali, com frequência aterradora, e como consequência apenas de escolhas humanas, os mesmos clichês, as mesmas expressões consagradas, as mesmas idéias cediças, os mesmos lugares-comuns ideológicos, as mesmas opiniões padronizadas que circulam numa população ansiosa por aceitação, acolhida, reconhecimento sem muita polêmica? 

A I. A. não inventou o texto-salsicha, apenas turbinou sua produção. 

O algoritmo das Inteligências Artificiais é de uma natureza específica, mas as escolhas humanas têm também o seu algoritmo, se as observarmos numa escala de milhões de exemplos. Somos mais estatísticos do que imaginamos. Nossas “opiniões pessoais” são mais coletivas do que gostaríamos de admitir. A Inteligência Artificial está surgindo, talvez, para nos dar uma sacudida. Quando percebemos o quanto ela na verdade é burra e cega, percebemos também o quanto, ao longo dos séculos, nossa mente humana coletiva também tem sido cega e burra. 


(Em breve: um artigo em defesa da I.A.)