sexta-feira, 31 de outubro de 2025

5205) O inesgotável G. K. Chesterton (31.10.2025)



 
Aqui no Brasil, Gilbert Keith Chesterton (1874-1936) foi nos anos mais recentes abduzido por uma ideologia conservadora, estreita demais para acomodar seu diâmetro e quebradiça demais para suportar seu peso.
 
Chesterton é o criador do Padre Brown, um dos grandes detetives de todos os tempos. Ao padre poderia se aplicar com perfeição aquele velho slogan do seriado radiofônico The Shadow, de que Orson Welles fez parte, há quase um século: “Quem sabe o Mal que se oculta no coração dos homens? O Sombra sabe!...”
 
O Padre Brown observa sem ilusões a comédia humana e a tragédia humana. Conhece os cordéis invisíveis que atuam sobre o pensamento destes homens e mulheres tão confortáveis no seu imaginário livre-arbítrio. Sabe que toda pessoa é (no dizer de Olavo Bilac) “capaz de horrores e de ações sublimes”. E age de acordo.




Leio o Padre Brown desde os doze ou treze anos. Comecei pelos livrinhos de bolso da saudosa Coleção Tucano (Ed. Globo de Porto Alegre). São, basicamente, cinco coletâneas de contos: A Inocência do Padre Brown (1911), A Sabedoria do Padre Brown (1914), A Incredulidade do Padre Brown (1926), O Segredo do Padre Brown (1927) e O Escândalo do Padre Brown (1935).



São 49 contos ao todo. Pelo menos um terço deles pode figurar com mérito em qualquer antologia dos melhores contos de mistério. Incluí dois deles em minhas antologias Contos Fantásticos no Labirinto de Borges, de 2005 (“A Honra de Israel Gow”) e Crimes Impossíveis, de 2021 (“A Maldição do Livro”).
 
Há uma série da TV inglesa adaptando as histórias do Padre Brown, mas não me identifiquei muito. O ator escolhido é bom ator, mas bonachão demais, gente-boa demais. Falta-lhe o que Jorge Luís Borges (um grande admirador de Chesterton) chamaria de “fulgor satânico”, e que eu encontro, por exemplo, nas feições e na atitude de Anthony Hopkins. Nele, sim, eu consigo visualizar um Padre que, apesar de seu compromisso definitivo com o Bem, conhece o Mal tanto quanto os criminosos que desmascara.



(Anthony Hopkins, em Dois Papas)

Brown vive a dualidade (e essa dualidade é a marca de Chesterton, o rei do paradoxo) de conhecer o Mal por experiência espiritual própria, se bem que não pela ação. Ele tem a palavra cristã de ética, empatia, humanismo e perdão, mas olha seus criminosos não com os olhos de um santo, e sim com os olhos azuis e frios de um Hannibal Lecter.


 
Seu romance The Napoleon of Notting Hill (1904) foi o primeiro a usar a data de “1984” para projetar uma Distopia futura (ao que se diz, George Orwell ignorava este detalhe). Seus escritos católicos tiveram grande influência. Tim Powers (autor de The Anubis Gates, On Stranger Tides etc) indicava The Everlasting Man (1925) como um livro que ajudou sua conversão ao catolicismo. Orthodoxy (1908) tem, paralelo à sua argumentação metafísica, um capítulo (“The Ethics of Elfland”) que é uma das melhores vindicações da literatura imaginativa.
 
O Homem Que Era Quinta-Feira (1908) é também, a seu modo, uma prefiguração do 1984 de Orwell – um homem é cooptado por uma organização subversiva, apenas para descobrir que quem o recrutou é da polícia. Diferentemente do que pode ocorrer com o livro de Orwell, cujo áspero realismo convoca uma vinculação emocional por parte do leitor, esse tipo de spoiler em nada atenua o interesse inesgotavelmente criativo do pesadelo de Chesterton (o subtítulo do romance é A Nightmare), nem o encanto da sua Londres saturada do insólito, do exótico e do absurdo.
 
Chesterton é criticado porque escreveu “excessivamente”. O auge de sua atividade ocorreu na imprensa londrina: não esqueçamos que em sua época os jornais e revistas eram, tanto quanto os livros, um escoadouro para a prosa de ficção. Romance, conto, poesia, ensaios, artigos, crônicas, polêmicas, em tudo ele se metia e de tudo ele se saía bem, inclusive em suas pelejas ideológicas (sempre elegantes e bem humoradas) contra autores tão talentosos quanto ele, gente como Bernard Shaw ou H. G. Wells, situados mais à esquerda do espectro político.


 
Conservador, religioso, tradicionalista; parece incrível, mas GKC se sentiria perfeitamente à vontade no mundo de hoje, o mundo da Internet e da conectividade. Mais do que qualquer outro de sua época ele se integraria com perfeição não só no ambiente acalorado das redes sociais, mas no estilo de escrita de cem anos depois.
 
Twitter, whatsapp, tik-tok, tudo isto ele tiraria de letra. Era o rei do aforismo inesperado, da frase definitiva, da piada matadora, do paradoxo desconcertante que inseria nos seus adversários o vírus fatal do esprit d’escalier. Em The Club of Queer Trades (1905) ele inventa indivíduos com profissões excêntricas; um deles é alugado para tomar parte (junto com seu “cliente”) em reuniões sociais onde lhe cabe dizer algo específico para que o cliente o conteste com uma resposta esmagadora, sob uma trovoada de risos.
 
Grandalhão, obeso, desarrumado, vestido de maneira pouco convencional, Chesterton era tido como um excêntrico, mas acabava sendo o centro de qualquer grupo de que fizesse parte. Foi homenageado por John Dickson Carr, o grande inventor dos “crimes de quarto fechado”, que usou sua figura para descrever o detetive Gideon Fell.  Neil Gaiman o trouxe para a série Sandman no papel do personagem “Fiddler’s Green”.


(Em Sandman: Fiddler's Green e Rose Walker)
 
  

Todo crime engenhoso é descoberto, em última análise, por causa de algum fato muito simples – um fato que em si não tem mistério algum. A mistificação começa no ato de encobrir o crime, em conduzir a atenção das pessoas para longe desse detalhe.

(“The Queer Feet”, trad. BT)

 




quinta-feira, 23 de outubro de 2025

5204) A vida na trincheira (23.10.2025)



(foto: Robert Capa)


A vida na trincheira é feita de horas de ouro, segundos de diamante. 
 
A fuzilaria não descansa, e quando menos se espera (por mais que se espere) desaba um bombardeio. 
 
Não é proibido dormir, mas se adormecer é proibido acordar. 
 
Eu me arrasto naquele sulco lamacento, buscando um barranco mais firme. A deslocação de ar arremessa aos ares meus amigos mais próximos. Ufa.  Achei.  Escapei.  Por enquanto.  Para sempre. 
 
De noite, as balas traçantes costuram o ar com riscos luminosos. A escuridão é traiçoeira, mentirosa, finge que nos protege, mas bem-ou-mal nos agasalha, parece apagar em parte aquela matilha de assassinos. 
 
Aqui na trincheira é preciso cuidado. Tem granadas que enguiçaram. Tem cacos de óculos. Tem formigueiros de escorpiões. Tem documentos alheios, amarrotados, cheios de manchas coaguladas, que a gente olha, dobra e bota no bolso, com aquela fé infantil de estar salvando alguma coisa. 
 
Trégua. Pausa. Cilada?... Compartilhamos as latinhas de carne em conserva, abertas com baioneta, comidas com os dedos. Comparamos as de hoje com as de ontem: é uma forma de contar o tempo. Precisamos sentir que alguma coisa avançou. Achar um cantil de água virgem nos emociona. Para adormecer, conto as emoções mais recentes, sinto nelas um avanço, sinto que a esfera de que sou centro se torna mais real. 
 
E de repente tudo desanda, é metralha, é shrapnel, é ricochete, é bala retinindo, é borrifo de sangue pra todo lado, eu me arrasto em joelhos e cotovelos, a capa empapada de lama, o fuzil inútil servindo para afastar os corpos que impedem a passagem. Passagem para onde? Tanto faz. Tudo é importante. Tudo é verdadeiro. Tudo tem a beleza-bruta de estar acontecendo. 
 
Outra pausa. Colo o corpo ao chão. Contraio os dedos dos pés dentro das botas ensopadas, para me certificar de que continuam ali. 
 
Todo dia é isso. Esse dia infernal que não avança, que apenas circula sobre si mesmo. 
 
Um obus de última geração explode numa tenda. Cubro a cabeça com os braços enquanto chovem pedregulhos, canos de metal, pedaços de carne vestida. Um colega a meu lado soergue o corpo para avaliar. O instinto me faz agarrar seus cabelos e puxá-lo para baixo. A bala do sniper se espatifa no barranco a meio metro. Uma fagulha de luz cega meu olho. 
 
Vejo tudo pela metade. Esse meio-inimigo invisível que me vê, esse inimigo que me toca e que não posso tocar. 
 
É a vida na trincheira, e eu não a trocaria por nenhuma outra. Que fiquem os outros com suas salas e suas visitas, seus bares e seus lares, seus reveions e seus Natais, suas adegas e seus domingos. Eu não quero o véu de Maya, não quero as tranças de Circe, eu quero estar positivo-operante, eu quero estar acordado, eu quero a trincheira. 
 
Na trincheira tudo é pão-pão queijo-queijo, quem tem o bem dá o bem, quem tem o mal dá o mal, quem nada tem recebe tudo e mata o seu tipo de fome. 
 
Luz de trincheira, mesmo em noite de chuva, é um meio-dia que nunca passa, uma revelação-de-relâmpago sacudindo a gente e mandando: Morde esse fio elétrico, morde com toda força, pra tu ver o que é a vida. 
 
Eu não quero o paraíso terrestre, eu quero a trincheira. 
 
Me cubram na porrada, me descubram no inverno, me isolem, me exilem no inferno das quengas. Batam, que eu rebato.  Cobrem, que eu me recobro, me recomponho, me revenho, me reponho em pé a cada baque, quebro a cara mas depois lavo o rosto, pago o mico, pego a reta, armo meu circo tomara-que-não-chova em qualquer comarca desprotegida capaz de comprar o bonde do meu currículo. 
 
Eu poderia estar amando, estar ganhando, estar gastando, estar flanando, estar causando, estar plantando flores de retórica para a colheita dos biógrafos; mas estou na trincheira, estou na luta, estou no trampo, estou no tranco, estou no sacolejo do busão, estou no passe-sênior do metrô. Eu poderia ter buscado a cobertura avarandada e me esqueci. Eu poderia ter contratado uma percentagem vitalícia e não contratei. Não importa; tinha outra porta que já estava entreaberta e eu passei. A paz é pra quem merece a paz. O descanso é para quem honestamente cansou. Eu não quero o calor do cachimbo, eu quero o frio da navalha. Eu não quero o fogo da lareira, eu quero a luz da batalha. 
 
Dois mil e vinte e cinco?!  Quem diria. BANG. Zuiiinnn... Caramba, essa passou raspando. Vida que segue. And so it goes.  





quinta-feira, 16 de outubro de 2025

5203) "Artur e Isadora na Cidade Subterrânea" (16.10.2025)

 


De vez em quando venho aqui para ajudar na divulgação dos livros que publico.  Dar uma força e uma mão-na-roda aos colegas das editoras com quem trabalho, um pessoal bacana que rala e se esfalfa para fazer com que meus livros circulem, sejam vistos, sejam comprados, sejam lidos. 

O tsunami dos livros impressos diariamente no Brasil é tão grande que se o próprio autor não arregaçar as mangas e for também à luta, é bem provável que seu livrinho passe despercebido. 

No presente caso, o livrinho é Artur e Isadora na Cidade Subterrânea, lançado pela Editora 34, de São Paulo, com a qual venho mantendo uma saudável parceria há mais de trinta anos.

O livro é uma espécie de continuação de um título anterior pela mesma editora: A Pedra do Meio Dia, ou Artur e Isadora. Ambos são romances de cordel: narrativas fantasiosas, em verso, usando a métrica e os modelos de estrofe da literatura de cordel nordestina – no caso, a estrofe é a sextilha, que é algo como o átomo de hidrogênio da poesia popular. A unidade mais simples, da qual decorrem todas as outras. 


Artur e Isadora são um casal de jovens que se conhecem no primeiro livro, desencantam um reino, e depois casam. Fim da história?  De jeito nenhum.  Por sugestão de Alberto Martins, meu editor na “34”, peguei o jovem casal de aventureiros e os projetei numa aventura diferente. 

Quem disse que o casamento é o fim das aventuras?! Aí estão numerosas duplas/casais literários desmascarando esta falácia:  Nick e Nora Charles, Tommy e Tuppence Beresford, Peter e Iris Duluth, Jeff e Haila Troy... Parece que o romance policial se dedica a provar que o crime talvez não, mas o casamento compensa. 

Neste segundo livro, Artur e Isadora estão fazendo uma curta viagem a um reino vizinho quando descobrem um enorme barranco aberto na noite anterior por uma forte tempestade, seguida por tremores de terra. O chão se abriu. 

E em certo ponto eles descobrem a entrada para um túnel misterioso. Dentro desse túnel, são surpreendidos por um grupo de pessoas estranhas, de pequena estatura – e descobrem que ali embaixo da terra existe um verdadeiro reino subterrâneo, cheio de cavernas, túneis, galerias e abrigos para centenas de pessoas, talvez milhares.

O mundo subterrâneo habitado é um tema antigo da fantasia e da ficção científica. Quando Jules Verne levou um trio de exploradores a fazer sua clássica Viagem ao Centro da Terra (1864), usou como acesso as galerias subterrâneas de um vulcão extinto na Islândia. A aventura revelou um mundo fascinante mas deserto – a não ser pelo vulto fugaz de um habitante das profundezas, visto à distância, mas que foge ao contato com os exploradores. 

Povos subterrâneos, do ponto de vista literário, ficam numa zona cinza entre a fantasia e a ficção  científica. A balança pende ora para um lado ora para o outro, a depender das liberdades narrativas que o autor terá tomado, principalmente quanto à verossimilhança dos detalhes práticos sobre essa vida no subsolo.  Como essas pessoas vivem, como respiram, como se alimentam, como se livram dos dejetos, como se relacionam com as populações da superfície, etc. 

Muitas “cidades subterrâneas” da ficção científica se situam no futuro. São remanescentes de nossa civilização, que precisou se proteger no subsolo devido a algum tipo rotineiro de catástrofe mundial: guerra nuclear, crise ambiental, pandemias mortíferas, etc.  Em casos assim, essas moradas subterrâneas são ambientes de alta tecnologia, capazes de produzir a própria energia, a própria comida, a água potável, o ar respirável. São ambientações high-tech criadas justamente para salvar uma parte da humanidade e evitar que seja dizimada como terá acontecido com os que ficaram acima do solo. 


Artur e Isadora na Cidade Subterrânea não tem nada disso, porque procurei manter o clima levemente fantasioso dos romances de cordel, onde os ambientes mais improváveis são descritos sem muita preocupação com a verossimilhança técnica ou científica. São ambientes de fantasia, mesmo que não seja de uma fantasia tão alucinante quanto a da Viagem a São Saruê  de Manuel Camilo dos Santos.

Em Artur e Isadora na Cidade Subterrânea a intenção é criar um ambiente fantástico que sirva de suporte a uma pequena aventura – porque o leitor jovem está geralmente mais interessado na aventura em si do que em explicações técnicas sobre renovação de oxigênio, possibilidade de fotossíntese, etc.  (O que não quer dizer que não haja aqui e ali alguma tentativa de explicação, sem nenhum propósito científico mais aprofundado!)

A literatura de cordel vem assimilando uma infinidade de temas sugeridos pela ficção científica literária: voos espaciais, robôs , androides,  contatos com alienígenas, discos voadores... O cordel (nunca é demais lembrar) não tem tema específico, não tem qualquer limitação nem orientação de assunto. O cordel é uma combinação de regras poéticas (métrica, rima, oração, estrofes), modelo editorial (folhetinhos finos, xilogravuras) e o vínculo com uma tradição que vem de séculos e que pede continuidade em nosso tempo.

Para escrever cordel, é preciso: conhecer o universo, dominar a técnica, e estar imbuído do espírito. Talvez a parte do “espírito” seja a mais difícil, porque é aquela onde não cabem regras, regulamentos nem conselhos. É uma questão de conhecer vastamente aquele universo, entender o que é, como surgiu, como sobreviveu, como se renova a cada novo poema publicado.



 


 

 

 

 

 





quinta-feira, 9 de outubro de 2025

5202) A Zona crepuscular (9.10.2025)

 


(Annihilation, de Alex Garland, baseado na obra de Jeff Vandermeer)


 
A ficção científica tem, por um lado, uma liberdade imaginativa sem limites. Claro que por outro lado existe o compromisso com a Ciência, mesmo quando é apenas da boca para fora. 
 
A Ciência serve de bússola. Aponta para a realidade do mundo material. E por isso é útil, mesmo quando estamos falando de coisas impossíveis neste mundo – viagens no tempo, viagens mais rápidas que a luz, teleporte de seres vivos que chegam vivos (e idênticos, e lúcidos!...) do lado oposto... 
 
A Ciência, na FC, serve como o Norte magnético apontado pela bússola. Não quer dizer que o navegador tenha que viajar para o Norte. Ele precisa apenas saber em que direção fica. 
 
Se o autor consegue se situar nas quatro direções dessa rosa-dos-ventos ou desse eixo-cartesiano, ele é livre para imaginar o que bem entender. É literatura.
 
Quem dá as coordenadas na FC é a imaginação, não a Ciência. E se muitas vezes uma parece contradizer a outra, tanto melhor: é essa tensão que acumula energia mental no escritor e o leva a ser mais engenhoso, mais ardiloso, mais convincente. 
 
Quando não parece haver nada mais para inventar, a FC tira da cartola uma imagem surpreendente. A Encyclopedia of Science Fiction registra (https://sf-encyclopedia.com/entry/cliches) uma imagem “da FC de fins do século 20, e que não poderia ter sido prevista”: espaçonaves em forma de árvore!  O verbete dá exemplos de Stephen Baxter, Larry Niven, Dan Simmons – este em Hyperion, recentemente traduzido no Brasil pela Ed. Aleph. 
 
Outra imagem recorrente é a Zona. 




Não a Rua das Vitrines em Amsterdam, se bem que esta mereceria uma versão FC, por que não?  Eu me refiro à Zona, que todos nós conhecemos, do filme Stalker (Andrei Tarkovsky, 1979), e do romance Roadside Picnic (1972, Arkady e Bóris Strugatski; no Brasil, Piquenique na Estrada, Ed. Aleph). 
 
É um local onde aparentemente houve um pouso e permanência de extraterrestres. Depois que foram embora, deixaram para trás uma grande quantidade de objetos incompreensíveis, e graves distorções no espaço-tempo. Uma espécie de Chernobyl ultra-dimensional, cheia de armadilhas invisíveis e perigosas. (O romance dos Strugatsky é anterior ao desastre de Chernobyl, mas pode ter se inspirado em outro, mais antigo.) 
 
Os stalkers são sujeitos ousados que aprendem a se deslocar naquela zona perigosa, e o fazem para trazer de lá objetos, souvenirs, que vendem bastante caro. E às vezes servem de guia (como num safari) para pessoas que querem curtir a aventura de entrar na Zona Proibida. 
 
Sobre algum possível simbolismo do filme, Tarkovsky declarou: 
 
A Zona não simboliza nada, não mais do que qualquer outra coisa que aparece em meus filmes. A Zona é uma zona qualquer, é a vida, e quando um homem a atravessa ele pode ser destruído ou pode chegar intacto do lado oposto. 
(IMDB, trad. BT)
 
Uma versão recente desse ambiente é a “Área X” imaginada por Jeff Vandermeer em sua série de romances Annihilation, Authority, Acceptance (todos 2014) e Absolution (2024). Os três primeiros saíram no Brasil pela Ed. Intrínseca, com tradução minha. 


 
A Área X de Vandermeer fica, aparentemente, na região de mangues e pântanos da Flórida. Alguma coisa ocorreu ali, e deixou essa área cercada por uma espécie de campo de força invisível que a bloqueia nos dois sentidos. O Exército descobre uma passagem, e começa a mandar destacamentos de soldados e cientistas para investigar. Ali dentro ocorrem estranhas mutações biológicas. Há um farol abandonado, e um poço que desce (com escadaria em espiral) terra adentro, como uma torre invertida. Quem emerge da Área X volta amnésico, e morre de câncer pouco depois. 
 
Vandermeer explora de maneira brilhante nos três primeiros livros (ainda não li o quarto) esses acontecimentos bizarros, deixando claro que o Farol é o ponto crucial de tudo, e sugerindo que alguns personagens foram “copiados” e transportados para outro ponto do espaço. 


 

E agora estou encerrando a leitura de Nova Swing (2007), romance de M. John Harrison ambientado num planeta distante, nas proximidades de uma zona misteriosa do espaço denominada “o Território Kefahuchi” (“the Kefahuchi Tract”), onde por alguma razão as leis da física não funcionam. A premissa do livro é que um fragmento desse Território caiu no planeta, em cima de uma cidade à beira-mar chamada Saudade. 
 
Sim, “Saudade” mesmo, em português. Harrison explica o significado da palavra (e nas notas do final do livro agradece a dica a “Luis Rodrigues”). 
 
Saudade é uma mistura de cidade de policial noir e cidade futurista, mistura que rapidamente se tornou clichê depois de filmes como Blade Runner (1982) e livros como Neuromancer  (1984).  Em casos assim, a originalidade, se houver, tem que vir nos detalhes e no espírito. Felizmente, Harrison é bom nas duas coisas. 
 
Vic Serotonin é um stalker que conduz pessoas em visitas à Zona, ou ao “site”, que ocupa uma parte considerável da cidade, entrando pelo mar adentro. A Zona é protegida por cercas e vigiada pela polícia, mas sempre é possível encontrar uma brecha. Esse conceito dramatúrgico vem sendo desenvolvido de maneira coerente por estes autores (Strugatski, Tarkovsky, Harrison, Vandermeer), em que cada um pede emprestados detalhes dos demais e os reutiliza, como se todos estivessem se referindo a um só lugar. 



 
No livro de Harrison, acontece de vez em quando uma invasão de gatos, uma proliferação inexplicável; na obra de Vandermeer, são coelhos. 
 
Chuva, sol, vento, luz – esses efeitos surgem de forma desencontrada em todas essas zonas. Como se o espaço tivesse se estilhaçado e cada fragmento pertencesse a um instante diferente do tempo. 
 
M. John Harrison assim se refere à Zona de Saudade, citando a “auréola” (uma espécie de halo intermediário que a rodeia, mas não propriamente um campo-de-força intransponível): 
 
Não havia auréola nenhuma, afinal; havia ali apenas a mais delgada das películas entre diferentes estados de coisas. Você de repente penetrava na pior parte daquilo, sem se dar conta. 
(p. 149)
 
Não importa o que acontecesse, as sombras eram projetadas em ângulos absurdos para a época do ano, como se a geografia estivesse se lembrando de alguma coisa coisa. 
(p. 164)
 
Saudade é uma cidade à beira-mar e ao mesmo tempo um espaçoporto. É outro clichê nostálgico da FC. As histórias de viagens espaciais herdaram algumas figuras dramatúrgicas das velhas histórias de marinheiros e navios. Um deles é o ambiente meio lumpen de um cais do porto, fervilhante de vagabundos, desempregados, descuidistas, misturados a marujos calejados e competentes que não se destacam na multidão. 
 
Uma viagem ao espaço é um equivalente literário de uma viagem ao oceano. Pelo menos três romances de Samuel R. Delany começam com um capitão de espaçonave perambulando no cais-do-espaçoporto e recrutando “no olho” uma tripulação heterogênea: Empire Star (1966), Babel-17 (1966) e Nova (1968). 
 
Saudade, como todo espaçoporto, está impregnada dessa nostalgia pelo espaço. 
 
“Alguns viajantes marítimos,” ela havia escrito, “nunca conseguem re-adaptar suas pernas ao solo firme. Desembarcam no cais, mas daí em diante caminham no solo com a dificuldade de quem tenta caminhar sobre um colchão.Sentar quieto é pior ainda, ou tentar adormecer. Quando andam, pelo menos os sintomas diminuem”. 
(p. 143)
 
Há uma correspondência poética entre essa Zona proibida, composta de estilhaços do espaçotempo, e a cidade em si. Ali, as pessoas andam em Cadillacs da década de 1950, fumam cachimbo, escutam jazz ou tango (ou “New Nuevo Tango”) no bar. Mas há uma pessoa com braço prostético cheio de telas e painéis de comunicação; a engenharia genética pode redesenhar um corpo à vontade do cliente, que pode ser transformado numa réplica de Albert Einstein ou de Audrey Hepburn. 
 
Fora da Zona (ou melhor: no entorno da Zona) o tempo parece também ter se fraturado e recomposto, só que agora com cacos de cultura, memória, hábitos... Os resíduos de uma História terrestre que todos eles conhecem vagamente de ouvido, como nós de hoje conhecemos coisas tipo “Idade Média” ou “Antiguidade”. 
 
John Clute, um dos meus críticos favoritos de FC, diz, ao comentar o livro: 
 
A palavra em português “saudade” implica numa nostalgia romântica, e uma aspiração sonhadora de que aquilo que foi perdido possa ser recuperado novamente; a diferença deste sentimento para com termos como desideratum ou Sehnsucht reside precisamente nessa pungente persistência da esperança. 
 
É curioso este comentário final. Alguém, famosamente, já definiu saudade como “vontade de ver de novo”, mas nem sempre essa aspiração é satisfeita. Não há como não lembrar a sextilha igualmente famosa de Severino Pinto do Monteiro: 
 
Essa palavra saudade
conheço desde criança...
Mas a saudade do ausente
não é saudade, é lembrança;
saudade só é saudade
quando morre a esperança.
 


 
 
 
 





sábado, 4 de outubro de 2025

5201) Contracapa de Gemini (4.10.2025)

 


(Al-Jazari, "The Elephant Clock")

 
 
&  a superstição é um mapa que a pessoa desenha e depois segue 
 
&  aquele goleiro agarra até meteoro 
 
&  no futuro vão nos implantar um telefone no ouvido e um despertador sei lá onde 
 
&  ganhei uma balança com três pratos e ainda estou me orientando 
 
&  elas dizem que é um clube de leitura, mas tudo indica que é uma seita de bordadeiras vudu 
 
&  no meio dessa turma eu me sinto uma zebra de listras horizontais 
 
&  todo escultor é um Orfeu que olhou para trás 
 
&  isso que vocês me pedem só vou poder atender no dia de São Sempre 
 
&  quando o absurdo da vida se torna um problema, o jeito é usá-lo também como solução 
 
&  vivo imbuído daquela sensação de heroísmo anônimo que pulsa em todo tijolo de represa 
 
&  quem tem forma e conteúdo é almofada; livro tem letras e eletricidade 
 
&  o problema da literatura de hoje é que além do Alzheimer da memória existe um da imaginação 
 
&  minha relação com ela não é bem de amor platônico, é mais uma espécie de mestre-sala e porta-bandeira 
 
&  o impossível é apenas um painel onde nem todos os botões foram apertados 
 
&  um filme de Kubrick não é muito diferente de um cubo de Rubik
 
&  toda traição acarreta um salto da mentira para a verdade 
 
&  a poesia é como a luz das estrelas, que não projeta sombras 
 
&  um fagote é um foguete cujo som espesso é capaz de fagocitar o da orquestra inteira 
 
&  quem vai a um baile no castelo do inimigo corre o perigo de não ter com quem dançar 
 
&  certos talentos são solúveis no fracasso, outros no sucesso 
 
&  o vento que traz a canção é o mesmo que leva embora o cantor 
 
&  é difícil viver num mundo onde cada pessoa tem um megafone 
 
&  a morte só é tragédia na juventude, quando temos certeza de que somos imortais 
 
&  passei direto do catecismo para o ceticismo 
 
 







quinta-feira, 25 de setembro de 2025

5200) A forma e o conteúdo (25.9.2025)





Quando falamos em forma e conteúdo, isso nos evoca imagens visuais: a forma é algo que está fora, está ao redor, e o conteúdo é algo que está contido, abrigado, reunido dentro dessa forma.
 
A imagem mais frequente (já perguntei isso muitas vezes) é a de um copo dágua. O copo é a forma, a água é o conteúdo.  Algumas pessoas explicam: “E o conteúdo toma a forma do vaso que o contém.”
 
Para mim parece fazer algum sentido. É como dizer que num filme a forma são as imagens, e o conteúdo são os diálogos (também já ouvi esta explicação). Parece fazer sentido, sim.
 
Em todo caso, leituras antigas e conversas antigas já me sugeriram uma abordagem diferente, que por enquanto tem dado para o meu gasto.
 
O que chamamos de “conteúdo”, muitas vezes, eu prefiro chamar de o “tema” ou o “assunto” do livro/filme/quadro etc. Ou, de forma mais abrangente, o conjunto de idéias, histórias, situações etc. abordadas nessa obra.
 
Qual o conteúdo de Dom Casmurro, de Machado de Assis? Muita gente dirá que é o ciúme doentio de um homem inseguro da própria masculinidade, casado com uma mulher que além de ser bonita é bem mais esperta do que ele.
 
Qual o conteúdo do filme 2001, Uma Odisséia no Espaço? Muita gente dirá que é a evolução da espécie humana, desde os antropóides pré-históricos até o homem de hoje, conquistador do Sistema Solar, e o homem do futuro.
 
Qual o conteúdo de Ainda Estou Aqui, filme brasileiro recente, dirigido por Walter Salles? Muita gente dirá que é o modo como a repressão da ditadura militar destruiu famílias que mesmo assim se mantiveram firmes após as perdas que sofreram.
 
E assim por diante. Eu prefiro considerar, porém, nesses casos, que isto não é propriamente o “conteúdo” de cada filme, e sim o tema. São duas coisas que se misturam bastante em nosso juízo. O que as separa e as distingue? Provavelmente é a “forma”.



(o Tema, filtrado pela Forma, produz o Conteúdo)

 
Minha proposta de interpretação é:
 
O “tema” é um conjunto de idéias que orientaram a criação da obra, filtradas pela “forma” – na verdade, criadas pela forma, que é a obra em si (o texto, o filme, etc.,). Essas idéias, ao serem assimiladas pelo leitor/espectador, produzem uma terceira coisa que seria o “conteúdo”.
 
Por isso, existe uma dificuldade em separar a forma e o conteúdo, porque este é determinado por aquela, nessa obra específica. Se a forma não fosse aquela, fosse outra, o tema poderia ser o mesmo (ciúme, evolucionismo, repressão) mas o conteúdo seria necessariamente outro.
 
Acho que fica mais claro quando comparamos obras parecidas. A Última Ceia que aconteceu entre Jesus Cristo e seus apóstolos, por exemplo. É um tema muito familiar na cultura ocidental, deve haver dezenas de milhares de pinturas reproduzindo esta cena, esta ceia.
 
Aqui vão quatro delas.
 
Leonardo da Vinci:


Tintoretto:


Ugolino da Siena:


Salvador Dalí:



Eu não acho que estas quatro pinturas tenham o mesmo conteúdo. Que produzam a mesma resposta estética – em mim, ou em qualquer pessoa. O que cada uma delas nos diz é muito diferente. As associações de idéias e até mesmo a resposta emotiva, afetiva, provocada por cada uma é muito diferente.
 
O tema das quatro pinturas é o mesmo: é a ceia de Jesus com seus apóstolos. O tema é sempre exterior à obra: ele desencadeia a criação da obra, está presente em cada momento de sua criação, mas é exterior a ela.  
 
Essas quatro pinturas têm conteúdos diferentes porque a forma, ou seja, aquilo que somos capazes de enxergar no quadro, é diferente em cada caso.
 
O conteúdo, como eu o percebo e o sinto quando leio, vejo filmes, olho quadros, etc., é uma espécie de corrente eletromagnética (perdoem a metáfora tosca) que vibra entre a obra e a minha mente.
 
Como dizia a imortal definição do mestre Damon Knight: “Um conto não são aquelas páginas impressas, é o que acontece em sua mente quando você lê o que está escrito nelas.”
 
E que já adaptei assim:



 
Vendo as coisas dessa maneira, fica difícil a gente separar o conteúdo da forma. Seria, como numa comparação famosa (não lembro agora quem disse isso) tentar ver a dança sem o dançarino. A dança não existe sem aquele dançarino; o conteúdo não existe sem aquela forma.
 
Livros com o mesmo tema, escritos por diferentes escritores, acabam tendo necessariamente conteúdos muito distintos. Basta comparar, num exemplo mais que conhecido, Os Sertões de Euclides da Cunha e A Guerra do Fim do Mundo de Mario Vargas Llosa. 
 
Este meu ponto de vista não é uma teoria: é uma coisa para uso próprio, mas que pode ser útil para alguém mais. É uma espécie de guia-mapa que me ajuda a navegar por entre livros, filmes, canções e tudo o mais.
 
Faço um certo esforço, toda vez, para me livrar da noção persistente de que toda obra de arte tem um conteúdo que é algo pronto e previamente definido, guardado dentro da obra. E que a forma se encarregar de transmitir, revelar, entregar esse conteúdo ao leitor (etc.).
 
Essa noção dá origem àqueles questionários com que a gente começa a se acostumar desde a infância, a adolescência, os trabalhos escolares: “Qual é a mensagem do filme?... O que foi que o autor quis dizer com este poema?...”  Perguntas que deixam implícita a existência de uma resposta certa, uma resposta já pronta, e cabe ao aluno deduzir ou adivinhar qual é.
 
Como se o conteúdo, até por essa conotação material da própria palavra, fosse algo embrulhado e encaixotado para ser entregue ao consumidor. E cada comprador receberia uma caixa igual.
 
Vejo o conteúdo (se temos mesmo que usar esta palavra) como um resultado, ligeiramente diferente em cada leitor, e até mesmo em cada leitura do mesmo leitor. O resultado, numa primeira etapa, de tudo que a forma fez com o tema ou conjunto de temas utilizados; e, numa segunda etapa, de como aquele primeiro resultado foi percebido e interpretado pelo leitor.
 
Claro que diferentes críticos darão diferentes pesos seja às intenções do autor seja às interpretações dos públicos variados. Todo autor é cheio de intenções!  O importante é reconhecer que não há um conteúdo já-pronto, à espera de ser decodificado: há um conjunto de estímulos variados (verbais, visuais, etc.) que sofrerá inúmeras decodificações diferentes e produzirá, em cada pessoa, um conteúdo diferente.
 
Sempre dentro (o bom senso nos indica) das possibilidades colocadas pelo livro ou filme, pela forma daquela obra.
 
Ninguém poderá dizer que o conteúdo de Dom Casmurro é a evolução da espécie humana, desde os antropóides pré-históricos até o homem de hoje e o homem do futuro.
 
Muitos críticos, por exemplo, veem no livro A Náusea  de Jean-Paul Sartre um romance pessimista, sombrio, que afirma a falta de sentido da existência humana. 

Eu vejo nele outro conteúdo: uma afirmação otimista da falta de sentido, a priori, do Universo e da humanidade, e em consequência disto a nossa enorme e vertiginosa liberdade de inventar o sentido que quisermos para tudo isto.
 
Quem produz o conteúdo do Universo somos nós, e nossa única limitação é termos que usar o que o Universo nos oferece, ou seja, a forma do Universo. O qual, como dizia Sir James Jeans, “não se parece com um mecanismo, e sim com um pensamento”.
 






quinta-feira, 18 de setembro de 2025

5199) Os hermetismos pascoais (18.9.2025)




Eu tinha pensado em publicar aqui uma daquelas crônicas-obituários, mas dei uma olhada na página do blog e me deu um arrepio ao ver como esses necrológios estão se enfileirando. Vôte. Daqui a pouco vou ficar sem outro assunto senão me despedir dos amigos e das pessoas que mais admiro. 
 
Me vieram à mente as vozes de Jessier Quirino e Jorge Filó: “A morte é um doido limpando mato”. É a sabedoria visual dos cantadores de viola, capazes de criar, em uma linha, um cartum inesquecível. Dê uma foice e uma instrução a um doido, e ele vai sair cortando o que aparece pela frente, seja touceira de urtiga ou o galho da roseira. 
 
Por falar nisso, passei recentemente uma madrugada assistindo clipes de vídeo e de áudio com as performances musicais de Hermeto Paschoal. Eu só, não: eu e a torcida do Treze. (Não boto “eu e a torcida do Flamengo” porque esta anda bastante alegrinha, e o momento é de certa melancolia.) 
 
O primeiro show de Hermeto Paschoal que eu assisti foi ali por volta de 1979 ou 1980, quando eu morava em Salvador. Algum produtor inspirado pelas musas trouxe para o palco do Teatro Castro Alves ele e Sivuca, só os dois, sem banda (“sem outros músicos atrapalhando”, como dizia um amigo meu de maus-bofes). Foi um diálogo bate-rebate, um pingue-pongue, um barra-a-barra, os dois se divertindo pra valer, tocando juntos e separados. 



(Hermeto e Sivuca) 

 
Separados no berço, disse alguém na época.  Dois sanfoneiros albinos parecem uma dupla de personagens inventada por Salman Rushdie ou João Ubaldo Ribeiro, que são chegados a um “realismo histérico”. Não importa. Um era paraibano, o outro alagoano, mas era como se alguém tivesse preparado uma fórmula mágica e pingado em dois tubos-de-ensaio diferentes, deixando maturar ali durante algumas décadas para ver os resultados. 
 
Em todo caso, não é Sivuca a figura com quem geralmente me ocorre comparar Hermeto, e sim com outro companheiro seu de geração, o baiano Tom Zé, que vi há poucas semanas no Circo Voador. 
 
Tom Zé é poucos meses mais novo que Hermeto (os dois são de 1936). As trajetórias dos dois são muito diferentes, mas como eu os acompanho há seis décadas sempre percebi alguns pontos em comum. Os principais são: erudição, experimentalismo-lúdico e pés no chão. 
 
Primeiro, a erudição. Músico erudito, no meu dicionário pessoal, é músico que sabe ler e escrever partitura. Não importa se é pianista da sinfônica de Berlim ou trombonista da orquestra-de-frevo da Bomba do Hemetério. Para mim, que olhando no papel não distingo um dó de um ré, ele é erudito. É alfabetizado, e eu não. 



(partitura de Hermeto) 

 
Claro que não basta isso, mas isso pesa. A música é uma língua estrangeira: a notação musical, a linguagem musical, as noções estabelecidas de harmonia, ritmo, contagem de compassos, modulações e o escambau...  Tudo isto é um idioma secreto que eles compartilham e nós espiamos pelo lado de fora. 
 
Vemos os resultados e podemos apreciá-los: qualquer pessoa mediana pode sentir a beleza de um quarteto de Mozart, mesmo que não saiba os nomes das notas que estão sendo tocadas. Mas uma coisa é reconhecer a beleza (ou a mera complexidade) quando a vemos, e outra coisa é ser capaz de reproduzi-la. 
 
Digo isto porque grande parte do respeito que um músico como Hermeto desperta lá fora do Brasil (onde chegava sem ninguém saber quem era ele) vem da percepção imediata, com quinze minutos de show no palco, de que “aquele cara sabe do que está falando”. Ele não era um mero talento bruto, primitivo, “uma força da natureza” – algo também importante. Era um cara que tinha domínio sobre essa língua universal, a linguagem-escrita da música. 



 
E aí me refiro a uma coisa importante na vida artística (como na vida em geral), que é o respeito entre seus pares. Ser respeitado pelas pessoas que praticam aquilo. Pode até ser que o público em geral, o público parecido comigo, esteja vendo o show e remungue: “Que som complicado, não estou entendendo nada”. Mas o músico profissional que está de pé ao meu lado, lata de cerveja em punho, fala baixinho: “Cara, esse sujeito é muito bom.”  E isso pesa. 
 
Ser erudito parece um pouco com ser rico. Que graça tem ser rico sozinho?!  E Hermeto tinha um aspecto formador, distributivo, de canalizar essa riqueza teórico-prática e passá-la adiante. Formou gerações de músicos. 
 
A erudição não salva ninguém. Na música, na literatura, na filosofia, onde quer que seja. O sujeito pode saber de cor todos os clássicos e todos os Manuais de Escrita Criativa disponíveis no mercado, mas isso não garante que seja capaz de produzir uma crônica que se aproveite. 
 
Aí entra um aspecto desconcertante que Hermeto tinha, o tal “experimentalismo lúdico”. Aquilo que faz o músico de concerto dar um passo adiante na direção do desconcerto. Uma curiosidade incessante de inventar formas novas, redescobrir formas esquecidas, fazer algo que nunca foi feito, aproximar coisas que estavam em universos separados... É para isso que serve a erudição. Tem muito erudito que se refestela no conforto, na repetição, mas essa técnica toda que acumulou poderia também lhe servir de estímulo para aventurar-se no desconhecido, mas com fundamento, com base, com um GPS auditivo que o mantenha na rota. 
 
E experimentar de maneira lúdica – brincando, divertindo-se, desafiando a si mesmo e aos outros, jogando na mesa pequenas provocações criativas, despertando os sonolentos, chacoalhando os rotineiros... Experimentar com prazer. Não o prazer egoísta de quem tenta deixar os outros do lado de fora, mas o prazer de abrir um novo espaço e tentar puxar alguém para dentro. 




Tem uma anedota que contam de Hermeto, com várias versões. Numa delas ele estava executando um número com sua banda e a certa altura um músico tinha a incumbência de soltar moedas numa bacia de metal. Alguém da platéia reagiu: “Ei, eu vim aqui para ouvir música, isso não é música!...”  Hermeto, ao piano, mandou o músico jogar outra moeda, ouviu o “plin!...”, e tocou o mesmíssimo som numa tecla do piano: “É música, sim.” 
 
Isso quer dizer que qualquer barulho, qualquer som  é uma nota musical? Não. Uma nota musical é a depuração de um som, a destilação, a purificação de um som num conjunto de vibrações alinhadas entre si. A nota musical é o tipo de som mais puro que existe. A nota musical está para o som assim como o vidro está para a areia. 
 
Hermeto não disse isto, quem está dizendo sou eu, todo animadinho com meu boné de teórico na cabeça. E isso só está me vindo à mente porque ele mandou o músico jogar uma moeda na bacia. 
 
Joguem moedas na bacia, que o músico está precisando. 
 
Botem notas na bandeja, porque os cantadores ao pé-da-parede estão precisando. Criar o que não existe também é trabalho. 
 
E isso nos traz ao terceiro elemento que está na obra (e acho que na vida) de Hermeto: pés no chão. Parecia ser o sujeito menos hermético do mundo, um camarada simples, sem pose. Não precisava chamar a atenção de ninguém – a natureza já tinha se encarregado disso. A pose, em si, não desmerece nem desvaloriza um artista, mas tem gente que recorre à pose por mera insegurança íntima, por mera necessidade ansiosa de imaginar-se superior; e o sujeito entra numa sala como se fosse um boneco do carnaval de Olinda. Não precisa. 
 
O famoso “passeio na rua” em que Hermeto arrebanhava uma platéia inteira para sair do teatro atrás dele e dar a volta ao quarteirão era a sua versão pessoal (uma versão pés-no-chão, uma versão desconstrutora!) desse carisma de liderança, de flautista-de-Hamelin, de líder capaz de conduzir multidões. Bora sair, bora dar uma volta na calçada, bora chamar a atenção do povo, bora botar o povo pra dançar, os “pobe” tão voltando do trabalho, todo mundo cansado, nem jantou ainda, aí eles veem a gente tocando e vêm atrás, dançam um tiquinho, o caba se distrai, volta pra casa mais leve, dá um cheiro na mulher, dá um cheiro nos menino. Agora pronto, vamos voltar pro teatro, que minha bolsa ficou lá.  
 

(Hermeto e banda)
 
 
 
 
 




 


 

quinta-feira, 11 de setembro de 2025

5198) Atirem no pianista (11.9.2025)



 
O circuito « Estação Net » (em Botafogo, no Rio de Janeiro) está exibindo até o próximo dia 17 de setembro uma retrospectiva da obra de François Truffaut, num total de 23 filmes de longa e curta metragem. Estou aproveitando para ver e rever alguns deles.
 
 
Um antigo clichê do filme de faroeste é o confronto armado em pleno salloon, com mocinhos e bandidos sacando as armas, as coristas fugindo numa revoada de saias e de rendas... e o pianista se agachando por trás do piano.
 
Quem não lembra do cinéfilo Belchior cantando:
 
Eu sou apenas um rapaz latino-americano
sem dinheiro no banco...
Por favor, não saque a arma no “salloon”:
eu sou apenas o cantor...
 
A canção é de 1976, época de ditadura e de guerrilha, e esse verso era lido por muita gente como: “Eu não faço da parte da luta armada, me deixem em paz, estou só cantando canções de rádio”.



 

O segundo filme de François Truffaut, Tirez sur le pianiste (1960) é a história de um músico mais perdido do que pianista em tiroteio. Charles Aznavour faz “Charlie”, pianista de um daqueles enfumaçados bares parisienses. Ele mora com um irmão adolescente, Fido, e tem dois outros irmãos metidos com assaltos e roubos. O filme começa quando os conflitos deles com alguns mafiosos vazam para dentro da vida de Charlie, que é introvertido, suave, quer apenas viver em paz.
 
Uma boa parte do cinema de Truffaut (e de seus colegas da Nouvelle Vague) transcorre na zona cinzenta entre a lei e o crime. Fossem filmes feitos aqui, alguém invocaria sem demora o “jeitinho brasileiro” para justificar as acrobacias morais dos personagens que praticam o delito, a bravata armada, a contravenção, a esperteza, a coerção ameaçadora, o pequeno furto, o pequeno assédio.
 
Atirem no Pianista parece existir no mesmo universo de filmes como Bande À Part (1964, Jean-Luc Godard): a mesma narrativa propositalmente desconjuntada (para o horror dos autores de “Manual do Roteiro”), os mesmos protagonistas amorais, disponíveis, um tanto simpáticos, não tão inteligentes quanto pensam ser. São os mesmos crimes desnecessários, planejados como uma fantasia de adolescente, executados sem crueldade, e até com certa excitação lúdica. E acabam resultando em mortes reais.
 
São uma versão light, uma versão pop do absurdo sombrio de O Estrangeiro (1942) de Albert Camus, outro admirador dos romances policiais noir norte-americanos.

Os intelectuais franceses tinham uma fascinação pelo gênero policial noir, fosse nos filmes B em preto-e-branco ou nos romances de bolso. Boris Vian chegou a virar “Vernon Sullivan” para escrever Vou Cuspir No Seu Túmulo (1946), uma espécie de fanfic sob pseudônimo.




 Era um verdadeiro parque-de-diversões, para os cultores do existencialismo e do absurdo, essa literatura de personagens meio sonâmbulos, morando em cortiços e pardieiros, bebendo, usando drogas, fazendo sexo sem vontade, cultivando paixões incoerentes. Homens e mulheres sem ideologia, sem leitura, que não conseguem se ajustar nem se rebelar. O crime, quando finalmente acontece, não justifica nada, e basta-se a si mesmo.
 
Nos filmes de Truffaut, esses jovens se rebelam contra os mesmos moedores-de-carne: o Estado, a Burguesia, a Igreja, a Polícia, a Família, a Escola. O crime e a arte serviam como dois túneis de escape dessa prisão. Godard dizia que seus personagens eram “filhos de Marx e da Coca-Cola”, e pode-se dizer também que eram netos de André Breton e primos de Bonnie e Clyde.
 
Atirem no Pianista é livremente adaptado de um romance de David Goodis (1917-1967), um autor bastante conhecido no Brasil. Seus livros sombrios, doloridamente humanos, cheios de mulheres fatais e homens explosivos, foram publicados nos anos 1950-60 pelas Edições de Ouro: Paixão Criminosa, Viúva de Um Vivo, O Ladrão, Crepúsculo Violento, etc.
 
Meus preferidos são Fogo na Carne I1957) e A Mulher de Cassidy (1951).


 

 
Goodis teve muitos livros adaptados para o cinema. Além do Atirem no Pianista de Truffaut, há dois filmes bem conhecidos: em Dark Passage (Delmer Daves, 1947), Humphrey Bogart é um fugitivo da cadeia que, ajudado por Lauren Bacall, faz uma cirurgia plástica para não ser reconhecido, e tenta provar sua inocência do crime que lhe atribuem; e A Lua na Sarjeta (Jean-Jacques Beneix, 1983), com Gérard Depardieu e Nastassia Kinski, foi um projeto ambicioso mutilado pelos produtores.
 
Personagens de filmes assim vivem o tempo todo bordeando a tragédia. Lá pelo meio de Atirem No Pianista, um flash-back nos informa que Charlie era um pianista clássico, de concerto, mas ficou seriamente abalado pelo suicídio da esposa, e acabou se afastando das salas de concerto.
 
Uma garçonete do bar onde ganha a vida, Lena (Marie Dubois), decide recuperá-lo. Lena é uma daquelas personagens que podem ser chamadas “A Mulher Vital” – o oposto da “Mulher Fatal” que só provoca paixões e desgraças. 

As mulheres vitais são essas mulheres metade resolutas, metade ingênuas, que arranjam os namorados mais improváveis e dizem a todo mundo: “Ele é um cara bacana, tudo que ele precisa é uma mulher que organize a vida dele.”



(Marie Dubois e Charles Aznavour)

 
Não sei se é o machismo residual na alma de quem escreve, ou se é a fatalidade estatística, mas mulheres assim, nos filmes, estão condenadas a uma morte trágica nos últimos dez minutos.
 
E Charlie volta, no fim do filme, para onde? Para o piano, para o teclado, talvez o único lugar  onde ele tem alguma noção do que está fazendo e algum controle sobre o resultado.
 
Como dizia o cinéfilo Bob Dylan, no poema “11 Outlined Epitaphs” (1964):
 
(...)
existe um filme chamado
Atirem no Pianista
em que a última frase diz
“música, cara, isso é tudo que conta”
é uma frase religiosa
lá fora, soam os carrilhões
e eles ainda
estão soando.
(trad. BT)
 
Ou, mais uma vez, como avisava o nosso Belchior:
 
Mas se depois de cantar
você ainda quiser me atirar
mate-me logo à tarde, às três
que à noite tenho um compromisso e não posso faltar
por causa de vocês...
 
Atirem no pianista – mas errem, porque o show não pode parar.
 


(David Goodis ao piano)