sábado, 30 de novembro de 2024

5128) "A Diplomata": mulheres no comando (30.11.2024)



 
Acho que ainda não escrevi aqui sobre esta ótima série do Netflix, cuja primeira temporada assisti no ano passado. Estou vendo agora a segunda, que é ainda melhor.
 
A série acompanha a embaixadora Kate Wyler (Keri Russell) e seu marido Hal (Rufus Sewell) depois que ela é nomeada embaixadora dos EUA no Reino Unido. O casal tinha servido em missões diplomáticas no Oriente, e estavam os dois acostumados a uma maneira de viver, digamos, mais informal e mais pragmática. E de repente, lá estão os dois em pleno “circuito Elizabeth Arden”, tendo que aderir aos numerosos fricotes e rapapés do cargo. 



 
O fato de que o casal está em crise e que ela está sendo cotada para assumir a vice-presidência dos EUA traz para a história uma dimensão de conflito a mais. E de “manutenção da imagem pública” – essencial para a sobrevivência política. Os personagens de Nelson Rodrigues costumavam “calçar as sandálias da humildade”; os de Debora Cahn (a criadora da série) não sobrevivem sem o black-tie da hipocrisia. 
 
Debora Cahn tem no currículo (como roteirista e/ou produtora) séries respeitadas como Homeland (2011-2020), Grey’s Anatomy (2005-...) e The West Wing (1999-2006)
 
O saudoso dr. Ulysses Guimarães dizia que a arma do político é a saliva, e isto faz com que una narrativa desse tipo precise mostrar o tempo inteiro pessoas falando, negociando, divergindo, conspirando, mentindo, desmascarando, interrogando... 
 
O diálogo é a arma principal dessas tramas, até porque cada pessoa diz coisas totalmente opostas, dependendo do lugar onde se encontra e da pessoa com quem fala. 
 
O filme-de-política e o filme-de-diplomacia têm uma interface interessante com o filme-de-espionagem. Nunca sabemos quem é o espião infiltrado, quem é o informante secreto, quem é o traidor, quem é o colega que joga cascas-de-banana à nossa frente, quem é o carreirista que quer o nosso cargo, quem é o mentiroso contumaz que planta verde para colher maduro. 
 
Kate Wyler é uma personagem interessante porque é uma mulher esperta, inteligente, de raciocínio rápido, um tanto idealista (até onde é possível manter algum idealismo dentro do lamaçal de interesses que é a política), disposta a conversar e a negociar com todo mundo.  
 
Por outro lado, ela é jovem, é ainda um tanto “verde” na carreira. O fato do marido ser calejado e lhe dar orientações o tempo todo tanto ajuda quanto atrapalha. Aqui e ali ela é chamada por alguém de “caipira”, pela relativa inexperiência, e pelo modo desmazelado como cuida da própria aparência. Ela é bonita e atraente, mas veste qualquer coisa, não usa maquiagem, o cabelo parece o de Madame Min, e não tem paciência para as “coisas de mulherzinha”. 
 
A atriz dá um banho, criando essa personagem tensa, motivada, obcecada, de cabeça elétrica, capaz de meter os pés pelas mãos, reconhecer o erro em questão de segundos, sacudir a poeira e seguir em frente, como um atacante do futebol que perde um gol feito e volta correndo para marcar o contra-ataque, sem ficar com mimimi. 



(Rufus Sewell, como "Hal Wyler") 

 
Gosto de Rufus Sewell, que foi um excelente vilão em O Ilusionista (Neil Burger, 2006) e em O Homem do Castelo Alto (série de Frank Spotnitz, 2015-2019). Aqui, ele faz o papel ambíguo de quem não é vilão, mas é capaz mentir como quem dá um drible. E de, digamos, tomar certos atalhos éticos para facilitar as coisas. Hal Wyler é o que Zózimo Barrozo do Amaral chamava “uma raposa felpuda”. Alguém que é íntimo dos corredores do poder, está em dia com todas as intrigas e contra-intrigas, tem controle sobre os próprios escrúpulos, e sabe exatamente do que os vilões são capazes – alguém que “é da tribo, e conhece os caboclos”. 
 
O roteiro tem o cardápio dramático de histórias assim. O mundo da alta política se presta ao melodrama porque nele existe a mesma concentração de Poder (sobre vidas humanas, sobre fortunas, etc.) que havia em grandes vilões como Dr. Mabuse, Fantômas, Fu-Man-Chu, Prof. Moriarty... só que agora elevados a uma potência muito maior. São decisões e conflitos que não podem simplesmente derrubar um governo ou mandar gente para a cadeia – podem provocar uma nova Guerra Mundial. 
 
Andei peruando o que os críticos (e os diplomatas de verdade) comentam por aí. 
 
Os críticos elogiam (e eu concordo) a narração segura, veloz, que mal dá tempo da gente respirar. As tramas são bem articuladas, há surpresas e puxadas de tapete (geralmente verossímeis) a cada episódio. O elenco é muito bom. Os diálogos, excelentes. 
 
Os diplomatas criticam (com razão) as muitas liberdades que os autores tomam em relação ao assunto. “Nunca que na vida real da diplomacia aconteceria algo assim”, dizem eles. “Situações romantizadas”, “simplificação de uma realidade complexa”, “concessões ao gosto popular em detrimento da fidelidade aos fatos”. 
 
Se colocarmos esses dois conjuntos de opiniões num liquidificador, o que teremos é, no fim das contas, a essência do melodrama. O melodrama consiste em pegar uma realidade que o público seja capaz de reconhecer (mesmo sem conhecimento dela em primeira mão) e exagerar seus aspectos dramáticos até chegar a esse paradoxo – é um conjunto de exageros, em benefício da dramaticidade narrativa, que distorce uma realidade mas ela continua reconhecível. 
 
O melodrama é uma caricatura. Os críticos estão certos em perceber que tudo ali é distorcido em favor da emoção, do suspense, do mistério, do susto, das revelações psicológicas, da revelação do lado ridículo e do lado sinistro da alma humana. 


 
Os diplomatas (e mil outros profissionais) têm sua parcela de razão quando dizem que aquele retrato não é fiel à realidade. É muito raro que um retrato desse tipo, no cinema e na narrativa em geral, seja fiel. Porque não é um retrato – é uma caricatura. 
 
Raymond Chandler, um criador de melodramas com sucesso de crítica e de público, sabia disso. Sabia o quanto num romance assim (ou num filme) o realismo é apenas aparente. (Todo realismo narrativo é apenas aparente – mas esta é uma discussão filosófica que fica para oytra hora.) 
 
Numa carta para a agente literária Bernice Baumgarten, em 11 de março de 1949, Chandler explicava: 
 
O material do escritor de mistério é o melodrama, que é um exagero da violência e do medo muito além do que alguém experimenta normalmente na vida. (Estou falando “normalmente”: nenhum escritor jamais chegou perto da vida nos campos de concentração nazistas.)  Os meios que ele emprega são realistas no sentido de que coisas assim acontecem a pessoas como aquelas em lugares como aqueles; mas o realismo é superficial; o potencial de emoção é exagerado, a compressão de tempo e de espaço é uma violação das probabilidades, e embora tais coisas aconteçam, elas não acontecem com tal rapidez e dentro de limites lógicos tão estreitos a um grupo tão reduzido de pessoas. (trad. BT)
 
O romancista (tal como o roteirista de cinema/TV) é forçado a comprimir, simplificar, fazer vista grossa a processos lentos e complicados da vida real. Quantas vezes vemos gente se queixando de que nos filmes há sempre um táxi para atender um aceno, e as contas são pagas sem a perda daqueles longos minutos de passar troco, passar cartão, etc. 
 
Quando personagens reais (políticos, etc.) aparecem numa história, não se pode interromper a narrativa principal para “fazer jus” ao Figurão – ele diz as falas que tem para dizer, e desaparece. 
 
É utópico exigir de histórias assim uma verossimilhança rigorosa – embora, ao mesmo tempo, isso tenha que ser cobrado toda vez. Roteiristas e produtores precisam ser tão fiscalizados quanto empresários e políticos. São todos humanos, todos parecidos. 



(Raymond Chandler)
 

Mesmo quando essas narrativas são elogiadas, nem sempre o são pelos motivos certos. O próprio Chandler se sentia incomodado quando alguém super-valorizava sua atitude, como nesta carta para o editor do Harper’s Magazine, Frederick Lewis Allen, em 7 de maio de 1948:
 
Aqui estou eu agora, na metade de um novo romance sobre Marlowe, divertindo-me um pouco (até empacar de novo) e de repente me aparece esse tal de Auden e diz que estou escrevendo sérios estudos a respeito de um ambiente criminal. E agora fico olhando para cada coisa que escrevo e dizendo a mim mesmo: Lembre-se, meu velho, isso tem que ser um sério estudo de um ambiente criminal. Você está sendo sério? Não. Isso é um ambiente criminal? Não, somente a corrupção mediana da vida, com o ângulo melodramático um pouco exagerado, não porque eu seja maluco pelo melodrama em si, mas porque sou realista o bastante para conhecer as regras do jogo.
 


(Debora Cahn, criadora da série, e Keri Russell, "Kate Wyler")
 


quarta-feira, 27 de novembro de 2024

5127) O mundo perdeu o centro (27.11.2024)

 

 
Num dos ensaios de Stand Still Like the Hummingbird (New Directions, 1962) Henry Miller celebra a figura de Walt Whitman, um poeta que, segundo ele, a América jamais compreendeu, e preferiu “celebrar Lincoln, uma figura histórica inferior”. 

Miller diz interessar-se mais pelo Whitman visionário do que propriamente pelo poeta, e a certa altura comenta: 
 
Talvez o único poeta com quem ele possa ser comparado seja Dante. Mais do que qualquer outra figura, Dante simboliza o mundo medieval. Whitman é a encarnação do homem moderno. (trad. BT) 
 
Não pode haver dois poetas mais diferentes, e talvez seja isso que dá consistência à comparação de Miller. São dois universos completamente distintos. 
 
Alguém talvez argumente que Dante Alighieri e a Divina Comédia têm uma importância muito maior para a Humanidade, numa escala muito mais grandiosa, do que Whitman e suas Folhas de Relva. Mesmo assim, esse argumento corrobora a visão de Miller e mostra por que motivo Whitman representa bem a nossa época. 
 
Seria possível reproduzir a oposição entre os dois poetas em várias fórmulas parecidas. 
 
Dante exprime uma época que acreditava no Universo como uma série de esferas concêntricas, com a Terra no dentro de tudo; Whitman é o poeta da era que propôs o universo sem forma definida e em constante expansão. 
 





 
Dante é o poeta da monarquia e da aristocracia, com o poder se concentrando cada vez mais num número cada vez menor de indivíduos, desde o doge de Veneza até o Papa ou o rei; Whitman é o poeta da democracia, do mundo em que o Poder emana de cada indivíduo, cada um deles detentor de um voto de igual peso. 
 
Dante é um poeta de uma época verticalizada, de valores dispostos numa escala hierárquica que tem no topo um conjunto de valores Absolutos. Whitman é o poeta de um mundo horizontal, onde todos os valores são equilibrados, contidos e relativizados por outros valores. 



 

O universo de Dante Alighieri era um universo fechado, nítido, aconchegante, em forma de mandala. Um  universo fundado em simetrias, em regularidades lógicas, consequentes; em formas harmônicas que por essa mesma natureza se tornavam previsíveis. 
 
Whitman existe num universo sem contornos definidos e em expansão assimétrica, como uma nuvem; um universo sujeito ao Acaso, à Incerteza, à Indeterminação, sem referência hierárquica e sem eixo central, cujo ponto de vista prevalente não é a Divindade, mas o “Eu” do poeta. 




(Norman Rockwell, The Connoisseur, 1952)


O poema de Dante, por mais que esteja povoado de criaturas, tem uma estrutura rígida, de precisão arquitetônica. Como diz Carmelo Distante em seu prefácio à edição da Divina Comédia da Editora 34 (1998, trad. Italo Eugenio Mauro): 
 
A arquitetura da Comédia se assemelha perfeitamente à de uma catedral gótica traçada com absoluta racionalidade geométrico-matemática, como de resto ocorre sempre quando se trata de arte simbólica. Tudo na Comédia é subdividido e organizado com lógica consequência. (pág. 12) 
 
É um mecanismo regido pelos conceitos do Uno e da Trindade, subdividido em módulos ternários: os três livros, a terça rima, os nove círculos, etc.  Uma “construção em constrição”, como observou Augusto de Campos (Invenção). 
 
Já as Folhas de Relva de Whitman são uma superfície vasta, coberta de forma aparentemente caótica por figuras em diferentes escalas, superpostas, misturadas, ocultando-se parcialmente, produzindo efeitos de choque e contraste, sem nenhuma grade organizadora aparente. 
 
A Divina Comédia se apresenta como obra pronta e acabada, ao passo que as Folhas de Relva brotaram por acreção, ao longo da vida do autor; o mesmo livro, cada vez maior e mais ampliado a cada reedição. Consta que a primeira edição de Leaves of Grass tinha uma dúzia de poemas, e a última mais de 400. Poemas longuíssimos ou extremamente curtos, extensos monólogos, epigramas fugazes, tudo em verso livre, com um sopro rítmico bem pessoal mas explodindo as formas fixas consagradas, abolindo a rima. O império da assimetria, do improviso, da inspiração aleatória. 




Jorge Luís Borges confessa que na juventude considerou a poesia de Whitman como a única que prestava, e que não imitá-lo era sinal de ignorância (Perfis: um Ensaio Autobiográfico, Globo/MEC, 1971). 
 
Diz ele também, em Borges: El Misterio Esencial (Sudamericana, 2021)
 
Whitman pensou que seus pensamentos eram “os pensamentos de todos os homens em todas as épocas e países”. Disse: “Não são pensamentos originais meus.” Queria ser todos os demais; queria ser todos os homens. Considerava-se um panteísta, ainda que o mundo relutasse em aceitar isto. (trad. BT) 
 
Henry Miller vai mais longe:
 
Whitman foi chamado de panteísta. Muitos já se referiram a ele como o grande democrata. Outros disseram que possuía uma consciência cósmica. Todas as tentativas de lhe aplicar um rótulo ou uma categoria acabaram caindo por terra. Por que não aceitá-lo como um puro fenômeno? (...) Ele não é um democrata: é um anarquista. (pág. 109-110) 
 
Apesar da enorme distância cronológica entre os dois (Dante nasceu em 1265, Whitman em 1819), assemelham-se na grandiosidade do projeto que conceberam e executaram. Exemplos de quando um conjunto poético capta o espírito de seu tempo e, por alguns momentos, “o que está embaixo é igual ao que está em cima”.  
 
Dante Alighieri exprimia a solidez, a clareza e a imobilidade de um mundo visto pelos olhos da religião. Whitman exprime a turbulência, a indefinição e o movimento caótico de um mundo visto pelos olhos da ciência. 
 
W. B. Yeats dizia, em “The Second Coming”: “The center cannot hold”. O centro não se sustenta. É a imagem de um mundo implodido pela Guerra e pela convulsão social. No mundo de Whitman, também não existe mais centro, mas isso deve ser visto não como uma catástrofe, mas como um novo ponto de partida. Faz apenas um século, um século e meio, que essa percepção vem se impondo ao nosso espírito. É cedo ainda para a humanidade se sentir confortável. 
 
 
 
 





domingo, 24 de novembro de 2024

5126) A arte de não dizer dizendo (24.11.2024)




(Matsuo Bashô, 1644-1694)

 
Existe uma artezinha específica dentro da grande Arte que consiste na habilidade de “não dizer, dizendo”. Afirmar alguma coisa sem afirmá-la de forma explícita. 
 
É o que faz Matsuo Bashô, o poeta japonês tido como um dos mestres do haicai. 
 
Um poema famoso dele diz: 
 
Feliz daquele
que vendo um relâmpago não diz: 
“a vida é breve”. 
 
Bashô consegue colocar nessas três linhas uma observação da natureza, uma reflexão filosófica sobre a condição humana, e um comentário irônico a respeito das limitações e dos perigos da imagem poética. 
 
Digressão: não vou tocar no assunto de quantas sílabas tem um haicai, nem falar de métrica ou de rimas. O haicai acima tem inúmeras traduções diferentes, com variadas verbalizações, mas o que quero examinar aqui é a idéia básica, presente em todas essas formas. 
 
Outra versão diz: 
 
Admirável
aquele que diante do relâmpago
não diz: a vida foge. 
 
Este haicai tem três passos estruturados em ordem inversa. Se o vemos como uma pequena “historinha”, podemos reconstituir a sucessão dos fatos: 
 
1)      A pessoa vê o relâmpago
2)      A pessoa diz: “a vida é breve”
3)      O poeta ironiza esse clichê



 

Bashô provavelmente já viveu a experiência de observar um relâmpago no céu e sentir-se tentado a fazer essa comparação. O poeta profissional faz comparações desse tipo o dia inteiro. É quase um reflexo instintivo, como o de quem faz trocadilhos a respeito de tudo. E por essa mesma longa prática o poeta percebe que esta expressão lhe ocorreu do mesmo modo como já ocorreu a dezenas de outros; já foi dita por centenas de outros; foi escutada por milhares. Pode até ser uma imagem bonita, mas a esta altura é um lugar-comum. 
 
Comparar a duração da vida à brevidade do relâmpago é uma imagem poética aceitável, como tantas outras. O que a desgasta é a repetição, especialmente a repetição que se acha originalíssima, “descobrindo a pólvora”. 
 
A imagem, fora desse contexto que a transforma em clichê, continua dizendo alguma coisa. Bashô quer preservar essa “alguma coisa”, quer dizer mais uma vez isto que tantos já disseram, e ao mesmo tempo reconhece que está num impasse, diante do risco de parecer banal. 
 
O que faz o poeta? Ele descobre uma maneira de fazer as duas coisas. Ou, como se diz em inglês, “to have his cake and eat it too” – ao pé da letra, “comer o bolo, e continuar tendo um bolo para si”.  E ele usa o clichê com o álibi de criticá-lo. 
 
Como se dissesse: “Se é para repetir um lugar-comum, é melhor ficar calado. Não diga.” O silêncio pode estar carregado de sentimento poético, e às vezes (na falta de uma expressão original, vívida), é melhor a não-fala, o não-gesto. 
 
Como dizia Carlos Drummond: 
 
Vontade de cantar. Mas tão absoluta
que me calo, repleto.
(“Canto Esponjoso”, em Novos Poemas, 1946-47) 
 
Com esse recurso sutil da crítica ao clichê, Bashô consegue dizer, suspirando, que a vida é breve, e ao mesmo tempo alertar os alunos (nós todos) de que essa sensação, por mais lírica e filosófica que seja, fica meio banal quando comparada ao relâmpago. (Ou – aqui o recado iria para os poetas românticos – à vida breve de uma rosa.) 



(Edgard Navarro)

 
Esse pulo-do-gato do poeta japonês me lembra uma reflexão que vi numa palestra do cineasta baiano Edgard Navarro. Quem conhece o cinema de Edgard sabe de sua proximidade epidérmica com o melodrama, as situações extremas, as emoções, os afetos, os lances dramáticos, tudo aquilo que vemos nas telenovelas e nos folhetins eletrônicos. 
 
Todos nós gostamos de melodrama, e nesse “todos” incluo Federico Fellini, Luís Buñuel, François Truffaut, Francis Coppola, Pedro Almodóvar, Woody Allen... Todos gostamos, mas todos temos consciência do quanto a narrativa melodramática se coagulou em torno de algumas dezenas de clichês obrigatórios. 
 
O que fazer? Edgard propunha usar o melodrama misturado a elementos que de certa forma o diluem, ou o criticam, ou o relativizam de alguma maneira. 
 
Escrevi a respeito disto aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2009/08/1180-sobrevida-do-melodrama-24122006.html
 
Resumindo, Edgar propõe usar o melodrama relativizado por quatro elementos:
 
1)      Visão crítica
2)      Humor impiedoso
3)      Distanciamento brechtiano
4)      Narrativa fragmentada
 
Tudo isto, segundo ele, nos ajuda a usar o poder hipnótico e sedutor das situações melodramáticas tradicionais, que arrebatam a platéia: as paixões, os ódios, as vinganças, os deus ex machina, as coincidências, o fatalismo, os salvamentos no derradeiro minuto, etc. Usá-las, com açúcar e com afeto, mas disciplinando-as através desses pontos de vista capazes de nos fazer ver além do clichê. 
 
O poeta Bashô descobriu, no seu modesto haicai, uma maneira de dizer o que o clichê diz, mas avisar a todo mundo que não é bobo, que sabe que aquilo é um clichê. É sua maneira pessoal de não dizer, dizendo. 



 
Outro haicai de Bashô, comentado por Paulo Leminski em sua excelente biografia do poeta (em Vida - 4 Biografias, Companhia das Letras) diz: 
 
Dia dos Mortos.
Assim como estão,
dedico as flores.
 
Leminski explica que no Dia dos Mortos os japoneses têm, tal como nós, a tradição de colocar flores no túmulo dos antepassados. Bashô (ou o seu “eu-lírico”, tanto faz) sente o impulso de colher as flores bonitas que está vendo e levá-las ao túmulo de alguma pessoa querida. Mas, em vez de fazer isso, o poeta as dedica mentalmente a esse morto querido e as deixa em paz – e assim celebra ao mesmo tempo a morte e a vida. 
 
Bashô parece sugerir aos poetas esse tipo de desprendimento: veja o relâmpago, filosofe calado, e não diga nada, não escreva nada, é melhor do que escrever uma banalidade. Ou faça como eu (diz ele): escreva a banalidade, mas aproveitando o que ela tem de bom e deixando claro o que tem de banal. 
 
O poema dele equivale a dizer: “Eu não vou repetir, como tanta gente, que a vida é breve como o relâmpago, embora o seja.” 
 
Na figura retórica chamada de paralipse, temos exatamente este mesmo processo: dizemos que não nos interessa falar de algo, mas no mesmo instante o fazemos. Como Machado de Assis, no famoso trecho de abertura do conto “Cantiga de Esponsais” (1884, em Histórias Sem Data), ele se dirige à sua “leitora”: 
 
Sabem o  que é uma missa cantada; podem imaginar o que seria uma missa cantada daqueles anos remotos. Não lhe chamo a atenção para os padres e os sacristães, nem para o sermão, nem para os olhos das moças cariocas, que já eram bonitos nesse tempo, nem para as mantilhas das senhoras graves, os calções, as cabeleiras, as sanefas, as luzes, os incensos, nada. Não falo sequer da orquestra, que é excelente; (...) 
 
Não é o mesmo caso de Bashô. Machado traça em algumas linhas um excelente retrato visual e sonoro da cena inicial do conto, mas o faz dizendo, com eufemismos, que não pode perder muito tempo com essa descrição, porque o que lhe interessa de verdade é contar o drama pessoal vivido pelo seu personagem, o Mestre Romão, regente dessa missa. 
 
E assim, desculpando-se por não poder mostrar a missa, ele a mostra. 


 
 
 
 




quinta-feira, 21 de novembro de 2024

5125) As cidades invisíveis de Calvino (21.11.2024)

 


 

É um dos livros mais famosos e mais comentados de Ítalo Calvino, e é curioso que o seja, quando rompe com duas das convenções mais enraizadas da literatura de hoje: 

 

1) a de que um livro precisa ter um gênero nítido, definido (ser “um romance” ou ser “um livro de contos”, no caso); e 

 

2) a de que um texto de ficção precisa ser uma obra narrativa, com começo, meio e fim. 

 

As Cidades Invisíveis (Companhia das Letras, 1991, trad. Diogo Mainardi; edição original, 1972) se esquiva desses dois compromissos. É uma narrativa múltipla, auto-geradora, que brota de seu próprio centro, sem avançar na direção de um final. Não é uma narração, é um conjunto de descrições. 

 

Marco Polo descreve para Kublai Khan as cidades que encontrou nas suas viagens: esta é a narrativa-moldura que contém todas as outras, mas é uma narrativa que não se modifica, não “avança”, não contém conflito algum, nem desenvolvimento, nem resolução. Uma situação estática, de dois homens trocando idéias, e examinando exemplos – como se percorressem uma galeria de quadros, comentando cada um deles. 

 

Calvino subdivide o livro em várias categorias: “As Cidades e os Símbolos”, “As Cidades e a Memória”, “As Cidades e o Desejo”, etc.  São ao todo 55 cidades imaginárias, bizarras, surrealistas, fantasiosas, utópicas, sinistras... 



Sua enumeração faz do livro algo semelhante àqueles quadros de Brueghel onde o artista acumula, num mesmo espaço, lado a lado, exemplos de brincadeiras de crianças ou de ditados populares. São as “obras por agrupamento”, obras cuja natureza não é narrativa (=contar uma história), e sim descritiva ou enumerativa. 

 

Essa técnica de agrupamento deixa o livro numa oscilação permanente entre um “romance” e uma “coletânea de contos”, sem se definir claramente por nenhuma das duas fórmulas costumeiras. 

 

E no entanto, o livro é fascinante, é movimentado, tem sucesso junto ao público. Por que? 



(ilustração: Cecilia Reeve)

 

Um dos motivos, talvez o principal, é a riqueza da imaginação de Calvino, uma imaginação exuberante, variada, detalhada, que se realiza principalmente através de sugestões visuais vívidas, descrições capazes de valer por narrativas inteiras.  

 

No centro de Fedora, metrópole de pedra cinzenta, há um palácio de metal com uma esfera de vidro em cada cômodo. Dentro de cada esfera, vê-se uma cidade azul que é o modelo para uma outra Fedora. (p. 32) 

 

Estátuas e escudos reproduzem imagens de leões delfins torres estrelas: símbolo de que alguma coisa – sabe-se lá o quê tem como símbolo um leão ou delfim ou torre ou estrela. Outros símbolos advertem aquilo que é proibido em algum lugar – entrar na viela com carroças, urinar atrás do quiosque, pescar com vara na ponte – e aquilo que é permitido – dar de beber às zebras, jogar bocha, incinerar o cadáver dos parentes. (p. 17) 

 

A riqueza desses detalhes torna este livro equivalente àqueles quadros em que cada figura minúscula está pintada com verossimilhança anatômica, de atitude, de figurino; cada pequena ação congelada no momento sugere todo um enredo; e em cada um desses detalhes há algo de inesperado, de pitoresco, de absurdo, de característico... 



(ilustração: Pooja Patel)

 

Existe a enumeração incessante de cidades, e em cada cidade uma enumeração de pessoas, de lugares, de logradouros, de acontecimentos. O “formato” do livro não é, portanto, o de uma seta que parte do princípio até atingir o fim. Ele se assemelha a um cacho de bolhas, em que novas bolhas vão surgindo e crescendo, cada vez mais numerosas, mas sem uma direção, sem um fim em vista. 

 

As Cidades Invisíveis é, em tese, um livro que poderia ser indefinidamente prolongado, multiplicado, sem que se alterasse o seu formato, a sua estrutura interna. Uma estrutura composta por acréscimo, não por desenvolvimento. 



(ilustração: Karina Puente)

 

Eufêmia (As Cidades e as Trocas, 1) é a cidade onde se cultua a imaginação, onde basta um mote para gerar uma narrativa: 

 

À noite, ao redor das fogueiras em torno do mercado, sentados em sacos ou em barris ou deitados em montes de tapetes, para cada palavra que se diz – como “lobo”, “irmã”, “tesouro escondido”, “batalha”, “Sarna”, “amantes” – os outros contam uma história de lobos, de irmãs, de tesouros, de sarna, de amantes, de batalhas. E sabem que na longa viagem de retorno, quando, para permanecerem acordados bambaleando no camelo ou no junco, puserem-se a pensar nas próprias recordações, o lobo terá se transformado num outro lobo, a irmã numa irmã diferente, a batalha em outras batalhas, ao retornar de Eufêmia, a cidade em que se troca de memória em todos os solstícios e equinócios.” (p. 38-39) 

 

Teodora (As Cidades Ocultas, 4) é a cidade que se dedica ao extermínio dos animais incômodos, em ondas sucessivas de chacinas: corvos, serpentes, aranhas, cupins, ratos, todas as espécies daninhas vão sendo liquidadas em massa, até desaparecerem por completo. Mas... 

 

“Relegada por longas eras a esconderijos apartados, desde que fora despojada do sistema das espécies agora extintas, a outra fauna retornava à luz dos porões da biblioteca onde se conservavam os incunábulos, saltava dos capitéis e dos canais, empoleirava-se no travesseiro dos dormentes. As esfinges, os grifos, as quimeras, os dragões, os hircocervos, as harpias, as hidras, os unicórnios, os basiliscos retomavam a posse de sua cidade.” (p. 145) 

 

Será exagero ver nisto uma “vingança” da literatura fantástica contra o realismo documental?... 




(ilustração: Eda Akaltun)

 

Cada cidade vale como metáfora ou alegoria de alguma coisa: algum processo mental, algum arquétipo coletivo, algum exagero bizarro, alguma demonstração pelo absurdo. 

 

As cidades de Calvino têm todas elas nomes de mulheres: Esmeraldina, Leandra, Irene, Cecília, Armila, Eudóxia... A certa altura o leitor brasileiro se depara até com uma Olinda (As Cidades Ocultas, 1). 



(ilustração: Leighton Connor)

 

Por que mulheres?...  Talvez porque as cidades são múltiplas, mercuriais; contraditórias, mas vivendo dessas contradições. Talvez porque sejam, alternada e simultaneamente, acolhedoras e inabarcáveis. Talvez porque digamos “minha cidade” como dizemos “minha mulher”, não como indicativo de posse, mas de amálgama. 

 

Cidades onde predomina um senso de justiça que muitas vezes não alcançamos, é ela que nos alcança e nos explica a nós mesmos, como em Berenice (As Cidades Ocultas, 5): 

 

“Na origem da cidade dos justos está oculta, por sua vez, uma semente maligna: a certeza e o orgulho de serem justos – e de sê-lo mais do que tantos outros que dizem ser mais justos do que os justos --  fermentando rancores, rivalidades, teimosias, e o natural desejo de represália contra os injustos se contamina pelo anseio de estar em seu lugar e fazer o mesmo que eles” (p. 147) 

 

Calvino tem uma imaginação fractal, no sentido de que cada detalhe de uma história sua é rico o bastante para sugerir um subtexto tão complexo quanto a história principal. Daí o sucesso deste livro. Percorrê-lo não é (como seria num romance convencional) acompanhar a vida de uma pessoa, é caminhar através de uma cidade. 


(ilustração: Sofia Correa) 

 

 

 





segunda-feira, 18 de novembro de 2024

5124) "Uma aventura na Martinica" (18.11.2024)



Comento aqui de vez em quando a antiga arte de pegar uma idéia alheia e dar-lhe outro desenvolvimento. Já li um comentário de algum roteirista de Hollywood, não sei mais quem, dizendo, mais ou menos: “A idéia alheia é um trampolim. Serve de apoio inicial para a gente tomar impulso e ir para um lugar completamente diferente”. Concordo totalmente. 


Mais do que dizer que “é uma coisa natural”, eu diria que é uma coisa essencial. Todo mundo precisa de um chão para pisar e para tomar impulso. E as idéias alheias, principalmente quando já estão publicadas, mesmo que não estejam ainda em domínio público são de conhecimento público. 

 

E para mim, vale a regra básica – você pode até pegar uma idéia alheia, desde que faça algo melhor ainda ou totalmente original. Como fez James Joyce pegando a estrutura da Odisséia para o seu Ulisses, ou como fez Shakespeare pegando velhos relatos históricos europeus para suas tragédias. 

 

Uma Aventura na Martinica (“To Have And Have Not”, 1943), de Howard Hawks, é um bom filme que está à disposição no streaming do saite Belas Artes À La Carte, cujo acervo eu sempre frequento e recomendo. (São cerca de 12 reais por mês: se você assistir um único filme, já economizou.) 

 

 

É um filme que Hawks, um cineasta competente como poucos, fez com um olho no público e outro em Casablanca, sucesso recente de Bogart, que era nesse tempo o ator mais bem pago de Hollywood.  A II Guerra Mundial ainda era o fato mais importante do mundo, e muitos filmes, como o próprio Casablanca, optavam por deixá-la ao fundo de uma história de tensões e emoções entre poucas pessoas. 

 

A Guerra serve como um diapasão emocional para todos, deixando-os num fio de navalha entre a vida e a morte, a fortuna ou a desgraça. 

 

Essas pessoas estão reunidas num lugar exótico, fazendo o possível para sobreviver, dando pequenos golpes, fazendo pequenas transgressões, mantendo-se honestas num cenário de corrupção e violência. E alguns são idealistas: pessoas envolvidas numa missão, arrebatadas por uma ideologia, pessoas que aproveitam a iminência do fim do mundo para tentar transformar o mundo num lugar mais justo. 



Esses elementos estão presentes em Casablanca, cuja direção foi oferecida a Hawks, e que foi parar nas mãos também competentes de Michael Curtiz e virou um clássico. Hawks afirma que não gostou de certos aspectos de Casablanca, e que jamais seria capaz de filmar uma cena como a dos frequentadores da boate cantando “A Marselhesa” na cara dos nazistas. Compreende-se: é uma cena que lida com um patriotismo idealizado e apela para o sentimentalismo. Nada mais distante do cinema de Howard Hawks. 

 

Em todo caso, ele acabou extraindo de Ernest Hemingway a autorização para filmar o romance To Have And Have Not, e o resultado foi um Casablanca totalmente diferente. Bogart vive nos dois filmes o sujeito durão, cético, que sabe se virar nas dificuldades mas não tem um credo político dizendo-lhe o que fazer. E as circunstâncias o levam a ajudar os rebeldes da Resistência Francesa contra os nazistas, com risco da própria vida. Por quê? Porque (diz ele) havia dois grupos lutando entre si, e ele gostou deste grupo e não gostou do outro. 

 

E também porque havia uma mulher envolvida e envolvendo-o.  

 

Em Casablanca, era Ingrid Bergman, casada com (e apaixonada por) um militante de esquerda. Em Uma Aventura na Martinica, essa personagem feminina se desdobra em duas, e esta variante estrutural é um dos detalhes mais interessantes do filme: há a esposa (Dolores Moran) do militante que precisa de ajuda urgente, mas há também uma aventureira que antes mesmo do surgimento do casal monopoliza a atenção de Bogart: é “Slim”, Lauren Bacall estreando no cinema, aos dezenove anos e com um olhar proibido para menores de dezoito. 



Os críticos enumeram um cardápio completo de semelhanças com Casablanca, desde atores secundários que aparecem em ambos os filmes até a presença simpática de um pianista que cantarola em conjunto com a estrela. Nada disso é apontado para diminuir a importância do segundo filme. Pelo contrário: uma sessão dupla com os dois sendo vistos nesta ordem mostra o que um roteiro bem concebido pode trazer de novo a uma situação já familiar ao espectador. 

 

O filme acontece quase todo no ambiente fechado do hotel, com umas poucas saídas marítimas. A presença de Bogart traz à mente O Falcão Maltês (John Huston, 1941) e aqueles confrontos claustrofóbicos, um apartamento com vários homens de arma engatilhada, negociando quem morre e quem não. 



Hawks e Huston (que era dez anos mais novo) são especialistas nesse tipo de situação “teatral”, fechada, baseada totalmente em suspense, diálogo e presença física dos atores. É uma das qualidades do cinemão norte-americano. Huston foi roteirista para Hawks no começo da carreira; é lícito dizer que cada um aprendeu alguma coisa com o outro. 

 

A amizade entre os dois diretores gerou outro exemplo de “pegar idéia alheia” neste filme. 

 

Uma Aventura na Martinica acaba com a fuga de Bogart e Bacall pela porta do hotel, depois de salvar os membros da Resistência e punir os colaboradores dos nazistas. 

 

Hawks pretendia terminar o filme com uma perseguição-e-combate em alto mar (presente no livro original, de Ernest Hemingway), mas a minutagem já estava grande e ele desistiu. Em vez disso, repassou a idéia (e certamente esboços de roteiro) para Huston, que estava preparando um filme bem parecido com este – o ótimo Key Largo (“Paixões em Fúria”, 1948), também com Bogart e Bacall no elenco. (O barco pilotado por Bogart era inclusive o mesmo nos dois filmes.) 




(Bogart, Bacall e o diretor Howard Hawks)

 

 




sexta-feira, 15 de novembro de 2024

5123) Eles passarão (15.11.2024)



 

Quando  ando pelas ruas do centro da cidade, aquele rio de gente, aquelas correntezas contrárias que se entrelaçam tão bem, nunca deixo de pensar como seria aquele trecho de calçada cinquenta anos atrás, cem anos atrás, duzentos. A calçada estava ali, e quem passava por ela passou sem deixar rastro, como a sombra de um pássaro na água de um rio. 

 

Entro num ônibus cheio, num vagão de metrô, fico olhando aqueles rostos, e penso comigo: “Eles passarão.” Passaremos todos, pelo que me consta. Passarão inclusive os passarinhos que cantavam ao ouvido do poeta Quintana. E o poeta os entendeu tanto que voou também. 

 

Os poetas, os artistas criadores em geral, têm a chance de deixar uma sobra, uma imagem, um resíduo de si mesmos. A obra não é a pessoa, mas por isto mesmo tem direito a uma existência própria, num mundo à parte. Shakespeare e Machado de Assis já se dissolveram em moléculas; de sua pessoa, deixaram lembranças de lembranças de lembranças, que a cada transmissão tornaram-se mais esmaecidas. Ou mais autônomas. 

 

A obra ficou, e é de natureza a ficar ainda mais. 

 

Pessoa e obra permanecem ligadas por um laço invisível qualquer. Como aquelas partículas sub-atômicas ligadas pelo que os físicos chamam de “conexão não-local”. Duas partículas que foram submetidas juntas a tais-e-tais medições e experimentos tornam-se uma espécie de espeho ou reflexo uma da outra. Há entre elas uma conexão, uma conexão que não sabemos como funciona, sabemos apenas que está ali. O que acontece a uma acontece à outra, mesmo que estejam a um milhão de quilômetros de distância. 



Com o Artista e a Obra ocorre uma conexão ainda mais misteriosa do que esta. Uma das partículas morre; deixa de existir; a matéria de que se compunha está agora “anônima e dispersa”, como dizia o poeta. Restou apenas a segunda partícula, a Obra, e aí ocorre algo estranho. Por um lado, cada nova descoberta que fazemos sobre o Artista se reflete na nossa percepção da Obra, e cada nova descoberta que fazemos sobre a Obra muda, aos nossos olhos, a idéia da pessoa do Artista

 

Nossa primeira impressão, lá atrás, era de que após a morte do Artista ele vai para o reino do Nunca Mais, e a Obra transpõe o portão do Para Sempre.  É meio assim, mas não totalmente assim. Os dois continuam como se vivessem juntos, e toda luz que se projeta sobre um deles lança algum reflexo sobre o outro. 

 

O poeta Capinam dizia, numa canção antiga gravada por Maria Bethânia: 

 

As coisas passam, e eu quero

é passar com elas...




(José Carlos Capinam)


O ser humano sonha em ser imortal, e os nossos acadêmicos literários criaram esse mito inofensivo de que a Academia imortaliza alguém – no sentido de que pelo menos a segunda partícula, a Obra, jamais morrerá. 

 

Porque a imortalidade física deve ser um fardo injusto, uma maldição. Em toda a literatura não me lembro de um só imortal que seja feliz. Não que a felicidade deva ser um objetivo obrigatório, mas esses personagens parece que a procuram, sim, procuram-na com ansiedade e angústia, e a procuram primeiramente recusando-se a morrer – e aceitando para isto qualquer pacto, qualquer beberagem, qualquer turbinação high-tech. 

 

Tim Powers, o autor de Os Portais de Anúbis (1983) e O Palácio dos Pervertidos (1985), usa a imortalidade como recurso dramatúrgico em seus romances fantásticos, mas com um certo calafrio quanto a essa perspectiva: 

 

Muitos autores neste gênero literário se inscreveram em algum desses projetos onde eles cortam sua cabeça depois da morte e a congelam, confiando na teoria de que daqui a 100 anos ou daqui a 500 a ciência será capaz de descongelá-la e providenciar seu transplante para um clone mais jovem. Muita gente pensa, instintivamente: “Ah, eu quero!...”. Eu, instintivamente, penso: “Que pesadelo. Eu faria qualquer coisa para escapar disso.” 

(Locus, fevereiro de 2002, trad. BT) 

 


Penso no protagonista do conto “O Imortal” (1882) de Machado de Assis, o homem que tomou a poção do pajé e ficou com a possibilidade de ser eterno. Viveu duzentos anos. Enfastiou-se da vida. enfastiou-se tanto quanto quem vive setenta, e resolveu seu problema com um recurso que deixo para os que não leram ainda esta história inquietante, uma das melhores de nosso conto fantástico. 

 

Diz a literatura vampiresca que os nosferatus são quase imortais. Podem ser mortos com estacas, alho, luz do sol, etc., mas se nada disto ocorrer durarão para sempre. 

 

Um aspecto que me assusta nos vampiros nem é sua ferocidade, é a aterrorizante velhice que eles transpiram. Séculos de egoísmo, solidão e idéia fixa. O imenso desdém que adquirem pelos seres humanos, vistos não apenas como fonte de alimentação, mas também como criaturas que nascem, piscam o olho, e desaparecem. Que outro valor tem, para um vampiro, essa nuvem de insetos, cuja vida dura apenas o tempo de torná-los importunos? 

 

Quem quiser que pense em Brad Pitt ou Tom Cruise, quando lembra os vampíros; Hollywood está aí para isso mesmo. Eu penso nos dois vampíros mais verossímeis do cinema, a criatura-gêmea que encarnou no Max Schreck de Nosferatu (F. W. Murnau, 1922) e no Klaus Kinski de Nosferatu the Vampyre (Werner Herzog, 1979). Ali está toda a sequiosidade dos muito velhos, dos que cambaleiam rumo à vítima, dos que um dia foram tigres mas regrediram a percevejos, dos que se recusam a morrer por medo da própria ausência, e tornam a imortalidade uma obrigação sem propósito. 



(Klaus Kinski, como o Nosferatu)