sábado, 31 de agosto de 2024

5097) Traduzir é perder (31.8.2024)



 
Traduzir é perder, porque traduzir é transformar, e toda transformação implica em abandonar a forma inicial. Quando traduzimos um texto em inglês para nossa língua, a primeira decisão que tomamos é perder o texto em inglês, abrir mão dele, sacrificá-lo, porque nossa intenção, em tese, é recriar aquele texto para pessoas que não leem em inglês (em russo, em árabe, em vietnamita, etc.). 
 
Por este raciocínio, traduzir é também ganhar? Porque afinal de contas a nova forma do texto vai trazer, inevitavelmente, elementos, estímulos, efeitos que não havia no original. 
 
Eu só traduzo do inglês, e este é um idioma relativamente cômodo, porque muitos brasileiros que leem literatura têm alguma idéia da língua inglesa. Não direi que todos são capazes de avaliar criticamente uma tradução, mas pelo menos podem pegar uma edição bilingüe e ficar olhando lá e cá, vendo os dois textos, onde coincidem, onde divergem. Deve-se pensar nesses leitores, quando se traduz algo. Ajuda a policiar os nossos excessos. 
 
É diferente quando se está traduzindo do idioma basco ou do húngaro. Em casos assim, um leitor como eu fica totalmente às mãos do tradutor. E de certo modo deve-se também pensar num leitor assim, num certo estágio do processo tradutório: o leitor que jamais aprenderá a língua original daquele livro, e que dependerá para sempre da nossa tradução. 
 
Por esta lógica, podemos afirmar, sim, sem muita fanfarra, que traduzir é ganhar, porque a perda de uma forma é simultânea ao aparecimento de outra, no momento em que o texto se transpôs para outra linguagem. 
 
Uma máxima fundamental da tradução é: “A tradução é um jogo onde geralmente se perde, na melhor das hipóteses se empata, e é proibido ganhar”. Ou seja: geralmente produzimos frases inferiores às do original, às vezes conseguimos algumas tão-boas-quanto, mas não temos o direito de redigir frases melhores.” 
 
Isto não impede que, na selva selvagem da vida real, haja tradutores “melhorando” adoidado os textos indefesos que lhes caem nas mãos. Paciência. 
 
Esta é uma questão importante, porque quando pensamos em “ganhar” tendemos a interpretar isto como “escrever algo melhor que o original” – e não se trata disto, absolutamente. Na tradução, é proibido melhorar o original, e esta é uma das questões mais desequilibrantes do ofício. Porque quando nos deparamos com uma frase meio desajeitada (principalmente quando traduzimos literatura best-seller e equivalentes) nossa tendência é entender o que o autor está tentando dizer, e dizê-lo de forma “ajeitada” em português. 
 
Inconscientemente, buscamos evitar os barbarismos do original, as incoerências do original, a má sonoridade, a sentença atravancada ou involuntariamente ambígua. E acabamos, involuntariamente, escrevendo “melhor” do que o original. Pelo mero impulso maquinal de tentar escrever bem. 
 
Um tipo de perda/ganho muito frequente – principalmente na tradução de poesia – é quando transferimos um efeito de um lugar para outro. Às vezes, digamos, o autor original usa um arcaísmo, uma palavra antiga, com um efeito premeditado; acontece que não temos um equivalente em português que produza o mesmo efeito. Uma solução às vezes possível é usar um arcaísmo equivalente em outra frase, em outro verso; resgata-se o efeito, mesmo mudando-o de endereço. 
 
Isso vale sempre? Não. Às vezes o arcaísmo (pode ser também uma gíria, ou um jargão técnico, ou uma palavra inventada, etc.) só funciona naquela frase. Outras vezes, porém, é um mero efeito retórico do autor, que poderia vir em qualquer outro trecho; um efeito estilístico usado para reforçar a voz-narrativa-geral daquele livro, e não uma frase específica. Desse modo, usar um efeito semelhante algumas linhas depois preserva a intenção do autor, revela o tipo de recurso que ele emprega ao escrever. 
 
Perde-se aqui, recupera-se acolá – é uma tática permanente ao traduzir. Em grande parte dos textos literários, frases são como pinceladas de tinta num quadro de grandes dimensões: não estão ali para ser avaliadas com régua e microscópio, estão apenas contribuindo para uma visão geral, distanciada, um efeito de conjunto. 
 
Se um autor recorre o tempo todo, digamos, a aliterações, repetição de sons parecidos, séries de palavras com as mesmas iniciais ou as mesmas sílabas em outra ordem, é preciso ter isto em mente e reproduzir esse efeito, mesmo que não seja nas mesmas frases em que ele aparece no original. O ideal é que seja na mesma frase, mas às vezes as palavras em português não cumprem esse requisito. Neste caso, que as aliterações apareçam em algum momento próximo, quando o vocabulário de língua de chegada (o português) o favorecer. 
 
Em casos assim, não se trata de um ganho propriamente, e sim da recuperação de algo que foi perdido um pouco antes. Como se o tradutor dissesse: “É assim que o autor escreve.” 
 
Existem os ganhos involuntários, por certo. Há um filme inglês cujo título original é There’s a Girl in My Soup (filme de Roy Boulting, peça teatral de Terence Frisby). Traduzido ao pé da letra, vira Tem uma Moça na Minha Sopa – sugerindo o trocadilho com “tem uma mosca na minha sopa”, inexistente no original. A coincidência de sons em português (moça/mosca) não existe em inglês (girl/fly). É um ganho involuntário. 
 
 
 
 









quarta-feira, 28 de agosto de 2024

5096) Episódios kafkeanos (28.8.2024)



 
 
Franz Kafka nasceu no ano da morte de Karl Marx, e morreu no ano do nascimento de Osman Lins. 
 
Os fatos enunciados acima não têm nenhuma relação causal ou simbólica entre si. São o que se pode chamar de justaposições inevitáveis, não são significativos. Todo ano nasce e morre gente, e nem sempre há uma relação causal, concreta, entre esses fatos. O problema com a relação simbólica é que ela depende apenas da nossa vontade e da nossa capacidade de inventar argumentos. 
 
Eu posso dizer (por exemplo) que a morte de Marx e o nascimento de Kafka, ambos ocorridos em 1883, marcam o fim da última tentativa de impor a Razão às sociedades humanas (o socialismo científico) e o começo da civilização do Absurdo, a civilização do capitalismo terminal (“terminal” para a humanidade, é claro), em que os processos de produção, lucro, informação e controle, desencadeados mais de um século antes, tomaram as próprias rédeas e transformaram os seres humanos (políticos, militares, bilionários) em meros executores, deslumbrados com a própria “riqueza” e o próprio “poder”. 
 
Poso dizer também que o fato de Kafka morrer em 1924 e Osman Lins nascer no mesmo ano constitui um marco divisório, agora no âmbito da Literatura. Morre o profeta do Absurdo, e nasce o futuro profeta da ordem estrutural: o romancista para quem um romance deveria ter a mesma complexidade de simetrias e equilíbrios que encontramos numa catedral gótica, num vitral, num bordado, num relógio de pêndulo, num observatório astronômico. 
 
Nenhuma dessas “teses” acima se sustentaria por muito tempo, mas é de teses assim que vive o jornalismo cultural (que é como eu classifico este blog e as publicações parecidas) e vivem os estudos acadêmicos. 
 
A Humanidade procura descobrir significado em tudo, precisa de significado, tem ânsia por sentido. Procura descobri-lo onde ele pode estar oculto, e procura inventá-lo onde ele não há. 
 
Jogue no colo de uma pessoa inteligente cinco ou seis informações aleatórias e prometa-lhe um prêmio se ela conseguir descobrir um nexo de significado entre todas elas – e aguarde o resultado. É como mostrar uma foto do céu estrelado e dizer: “Escolha algumas dessas estrelas, trace uma constelação e dê-lhe um nome.” Qualquer pessoa medianamente inteligente é capaz disso. 



 
Numa entrevista que pode ser vista no YouTube (em alemão, com legendas em inglês) Max Brod cita um episódio curioso de sua amizade com Kafka, na juventude. Kafka foi visitar Brod para bater papo, e ao chegar lá teve que atravessar uma sala onde o pai de Brod estava deitado num canapé, dando um cochilo. Ele deve ter feito algum ruído ao caminhar, porque o homem, semi-adormecido, fez algum movimento, e Kafka, muito discretamente, disse em voz baixa: “Considere-me um sonho”, e saiu da sala. 
 
Max Brod:
https://www.youtube.com/watch?v=v8iNnpP5tc4
 

 
Nesta entrevista, Max Brod comenta vários aspectos de sua amizade com Kafka, inclusive destacando o grupo de quatro amigos que se visitavam e se reuniam com frequência em suas respectivas casas (Kafka era o único solteiro, e que ainda morava com os pais): Kafka, Brod, o filósofo Felix Weltsch (1884-1964) e o poeta e músico cego Oskar Baum (1883-1941). 



(Felix Weltsch)




(Oskar Baum)


Sobre o famoso pedido de Kafka para que Brod destruísse seus manuscritos após sua morte, Brod esclarece que esse pedido não foi feito pessoalmente, nem através de um testamento formal. Foi apenas um bilhete, sem data, que Brod achou entre os papéis do amigo. Para Brod, Kafka tinha oscilações (como qualquer pessoa) entre momentos de otimismo e de pessimismo, mas que em seus últimos dias estava num momento feliz, principalmente através de seu relacionamento com Dora Diamant (1900?-1952). 
 
A palavra de Brod vale alguma coisa? “Amigo é pressas coisas”, diz a sabedoria popular. Brod tornou-se uma espécie de executor testamentário informal com relação à obra do amigo. Suas opiniões ganharam visibilidade, por um lado, e perderam credibilidade, por outro. Depois que uma pessoa morre e não pode comentar, fica fácil dizer coisas elogiosas ou desairosas a seu respeito. 
 
Walter Benjamin critica, num texto de 1938, essa atitude de Max Brod, que ele qualifica como uma “intimidade ostentosa”: algo que encontramos com frequência em biógrafos, confidentes, melhores-amigos, e até em pessoas que em algum momento conviveram com o morto ilustre. “Às vezes, ele costumava desabafar comigo, e dizer que...” Não há poucos casos de amigos que, cuidando da obra póstuma de alguém, querem impor sua visão da obra como a única válida, pela proximidade que tiveram com o autor.  
 
No centenário da morte de Kafka, ocorrido pouco tempo atrás, a imprensa fervilhava de cogitações e especulações sobre sua vida e sua morte. 
 
Para mim, a imagem mais forte de toda a obra de Kafka não é o rapaz transformado em inseto (A Metamorfose), nem a Estátua da Liberdade empunhando uma espada (América), nem o faquir que se deixa morrer de fome numa jaula porque nenhuma comida lhe apetece (Um Artista da Fome), nem o homem que se considera inocente mas é degolado “como um cão” num terreno baldio (O Processo)... 
 
É a máquina de tortura em Na Colônia Penal, em que o condenado é amarrado e um mecanismo complicado usa agulhas pontudas para escrever na sua pele a sentença que lhe foi destinada.  O prisioneiro fica tentando atribuir sentido às linhas dolorosas que a máquina desenha em seu corpo, sem poder enxergá-las. Atribuir sentido à própria dor, por confiar que existe um sentido (=verbal) na dor que sente. 
 
Jorge Luís Borges elogiava em Kafka sua disposição em inventar parábolas estranhas mas não lhes atribuir uma “moral da história”, como procurava fazer, por exemplo, Nathaniel Hawthorne. O adjetivo “kafkeano” está agora acoplado às reflexões sobre o nazismo, o inchaço burocrático, as tarefas insensatas, a infinita procrastinação das tarefas, a passividade diante da violência alheia... 
 
Além disso tudo, Kafka tinha uma queda pelos animais como protagonistas ou figurantes bizarros de seus textos (“Josefina, a Cantora”, “Investigações de um Cão”, “A Toupeira”, “Relato Para uma Academia”, o sonho do Macaco de Tinta). Usava regiões remotas, em geral no Oriente, para situar suas parábolas políticas. Suas ficções, longas ou curtas, têm um clima crepuscular, claustrofóbico, inquisitorial, parecem acontecer no sótão do mundo. Sucedem-se comportamentos bizarros que não sabemos se devemos atribuir à imaginação do autor ou aos hábitos de sua cultura. 
 
Enfim, lemos Kafka como um tcheco talvez leia Jorge Amado: sob a impressão de que tudo aquilo tanto pode ter a intenção do realismo quanto a do absurdo, porque basta-nos viajar pelo mundo para constatar o quanto é falso vincular o conceito de Realidade à nossa bolha sociológica. 




Pouco tempo atrás, num prefácio para Contemplação, livro de estréia de Kafka, publicado em 2021 pela Ed. Bandeirola (com tradução de Marcus Tulius Franco Morais), escrevi: 
 
[O mundo de Kafka] é o mundo dos labirintos de videogames, onde o avançar cria mais e mais bifurcações à frente do jogador que avança; onde, a meia distância, existe apenas uma nuvem cinza de probabilidades, mas um novo espaço aparentemente real começa a brotar no instante em que o personagem para lá se encaminha.  É um mundo imóvel onde o personagem está sempre no centro, andando sem parar. 
 
Essa sensação de irrealidade ativa, em que temos plena liberdade de movimentos mas nada que fazemos tem sentido, perpassa também os Sonhos e os Diários de Kafka, esse indivíduo tímido, arguto, obstinado, que enxergou nosso mundo melhor do que nós. 
 
“Considere-me um sonho,” disse ele, e saiu. 






 
 





sábado, 24 de agosto de 2024

5095) A literatura e seus ismos (24.8.2024)




Uma das coisas mais fáceis do mundo é inventar um nome para uma doutrina estética, pregar nesse nome meia dúzia de características meio abstratas, e pronto: está criado mais um movimento artístico (ou filosófico) que será discutido daqui a cem anos com toda seriedade. 
 
Como aconteceu com o Surrealismo, o Impressionismo, o Expressionismo, o Cubismo, o Simbolismo, o Modernismo, e vários outras surtos de criatividade (e de teorização). 
 
Estes rótulos foram aplicados a conjuntos de obras na literatura, no cinema, nas artes plásticas. Alguém pode até não gostar deles, mas não pode negar o impacto que tiveram. Eles e muitos outros fazem parte da História. 
 
Uma consequência disto, uma espécie de efeito colateral, são os numerosos movimentos artísticos que foram definidos com um rótulo desse tipo mas por um motivo ou outro nunca decolaram. Alguns por falta mesmo de repercussão. Outros porque não tinham intenção de decolar. Outros, ainda, porque eram fictícios, foram inventados por um autor para serem usados pelos personagens de uma narrativa. 



(Fernando Pessoa) 


Tenho folheado nos últimos tempos a obra de Fernando Pessoa e me lembro do Sensacionismo que ele inventou e propôs. Pessoa era, além de poeta excepcional, um teórico de primeira linha. É um dos poucos poetas que produziram páginas de teoria e de comentários literários à altura de sua poesia. 
 
Falando em nome de seu heterônimo Álvaro de Campos, Pessoa produziu vários textos defendendo a idéia do Sensacionismo, mas, ao que eu saiba, o movimento nunca “pegou”, não produziu seguidores em número e qualidade suficientes para se propagar. 
 
A intenção de Pessoa era produzir um movimento de verdade? Ou era apenas um gesto literário a mais, o gesto de um poeta desfraldando uma bandeira apenas para que o sol a veja? 


 
Em Os Detetives Selvagens (1998) Roberto Bolaño descreve com riqueza de detalhes pitorescos a vida dos poetas marginais ou poetas independentes (como se dizia aqui no Brasil) da Cidade do México. Liderados pela dupla Arturo Belano e Ulises Lima, eles criam um movimento a que dão o nome de “realismo visceral” ou “real-visceralismo”. 
 
A vanguarda fictícia de Bolaño é uma homenagem à clef ao seu amigo Mario Santiago Papasquiaro (o “Ulises Lima” do romance) e seu “Infrarrealismo”.  Santiago morreu em 1998, e seu Infrarrealismo não chegou a provocar (pelo que sei) nenhum grande tremor nos sismógrafos literários do Ocidente. Bolaño (=”Arturo Belano”) resgatou a si mesmo e ao colega de juventude nesse romance caudaloso, irônico, romântico, visceral. 
 
O México foi palco (desta vez na vida real) ao Estridentismo que ali ferveu durante a década de 1920, e que pode não ter deixado muitas marcas além do excelente nome. 
 
Nome é importante, e naquela mesma década o Brasil estava regando a plantinha do Penumbrismo, uma poética intimista cultivada, entre outros, pelo paulista Guilherme de Almeida, autor dos inesquecíveis versos: 
 
Busca a Sombra, o Silêncio, e a Solidão: três “esses”,
três serpentes do teu paraíso interior;
colhe o fruto, que, assim, tu mesma te ofereces:
chama-se Pensamento, e é até melhor que o Amor.

 

 

 
Outro movimento satírico é o Bokononismo, criado por Kurt Vonnegut Jr. em seu romance Cat’s Cradle (“Cama de Gato”, 1963). É uma religião fictícia que vigora na ilha fictícia de San Lorenzo, e serve como pretexto para que o autor faça citações constantes dos mandamentos desse culto, que tem numerosos conceitos próprios, alguns deles muito engraçados e absurdistas. 
 
Um pouco da inspiração do Bokononismo lembra as idéias excêntricas do filósofo De Selby, criado por Flann O’Brien em seus romances absurdistas The Third Policeman (1967) e The Dalkey Archive (1964). De Selby nunca aparece pessoalmente, mas os personagens o citam o tempo inteiro; e infelizmente ele não batizou sua ideologia (que seria um “desselbismo” ou coisa equivalente). De Selby afirma que a noite surge por uma gradual acumulação de “ar preto”. Diz também que como a luz gasta um tempo infinitesimal para se deslocar no espaço seria teoricamente possível colocar espelhos frente a frente em tal número que ele conseguiria ver como era seu próprio rosto aos doze anos de idade. 
 
Inventar seitas literárias desse tipo é um passatempo inofensivo, talvez, mesmo quando ele tem na mistura um certo ácido satírico, e é exercido às custas do comportamento pomposo dos intelectuais cujos “ismos” são colocados numa redoma e esta num altar. 



(Samuel Beckett) 
 

Aos 26 anos de idade, Samuel Beckett voltou ao Trinity College, de Dublin, onde tinha estudado, e fez uma palestra em torno do apócrifo movimento do “Concentrismo”, movimento que teria sido criado pelo fictício poeta Jean du Chas. A palestra de Beckett foi publicada pela Menard Press em dois excertos, respectivamente em 1986 e 1990. 
 
O nome da Menard Press, uma pequena editora britânica de poesia e de textos de vanguarda, é uma homenagem ao famoso personagem de Jorge Luís Borges, Pierre Menard, o homem que queria ser capaz de escrever o Dom Quixote – não de copiá-lo, ou de transcrevê-lo de memória, mas de redigir, espontaneamente, parágrafos iguais aos de Cervantes, páginas, capítulos inteiros... 




Existem, porém, os movimentos inventados com intenção satírica reversa: ao invés de intelectuais zombando do mundo, é o mundo zombando dos intelectuais. Me veio à mente o filme Funny Face (1957, Stanley Donen), em que a equipe de uma revista novaiorquina de modas vai a Paris para um desfile. Audrey Hepburn, a modelo principal, é também uma moça metida a intelectual, lê filosofia, e diz pertencer ao “enfaticalismo” (uma espécie de neo-existencialismo francês), o que causa várias confusões e peripécias. 
 
Curiosamente, esta tradução brasileira (tal como a espanhola) distorceu o significado do rótulo original. Em inglês, segundo o Internet Movie Data Base, o movimento chama-se “Empathicalism”, porque se baseia na nossa capacidade de empatia para com outras pessoas. A tradução brasileira parece ter confundido esse termo com “Emphathicalism”, colocando “ênfase” no lugar de “empatia” – mas como tudo é uma grande gozação com os intelectuais de Montmartre e de Saint Germain des Près, fica mais engraçado ainda. 



 
Nem todos esses movimentos terminam com um “...ismo”. O melhor exemplo é a ‘Patafísica, criada por Alfred Jarry, e que deu origem ao famoso Collège de ‘Pataphysique parisiense, uma espécie de Academia anárquica e gozativa de que já fizeram parte Boris Vian, Raymond Queneau e outras figuras ilustres.
 
A ‘Patafísica (cujo nome começa assim mesmo, com um apóstrofo antes da letra inicial) é, segundo Jarry, a ciência que se ocupa das exceções, e não das regras – e só por isso já deveria existir um Colégio de ‘Patafísica em todas as cidades com mais de 200 mil habitantes no mundo inteiro. 
 
A aventura patafísica tem intenção satírica e poética, é uma criação livre das cabeças de artistas de vanguarda dotados de senso de humor – o que para mim lhes dá ainda mais credibilidade. 
 
 




quarta-feira, 21 de agosto de 2024

5094) Um poema de Emily Dickinson (21.8.2024)



(Emily Dickinson) 


Um poema de Emily Dickinson (1830-1886)
 
“Esperança” – um ser de plumas
que nos pousa na alma,
e canta uma canção sem versos
e nunca se acalma. 
 
Soa mais doce quando há temporal;
e é forte a tempestade
capaz de calar tal passarinho
que aquece a humanidade. 
 
Já ouvi seu canto nas terras mais geladas
e no oceano, entre o trovão;
e nunca, mesmo à morte, me pediu
uma migalha de pão. 
 
“Hope” is the thing with feathers -
That perches in the soul -
And sings the tune without the words -
And never stops - at all -
 
And sweetest - in the Gale - is heard -
And sore must be the storm -
That could abash the little Bird
That kept so many warm -
 
I’ve heard it in the chillest land -
And on the strangest Sea -
Yet - never - in Extremity,
It asked a crumb - of me.
 
*****
 
Emily Dickinson usava com frequência em seus poemas o formato que em inglês de chama de common metre (ou “common measure”), o “metro (ou métrica) comum”, algo tão impregnado na poesia em língua inglesa quanto a redondilha em nosso idioma. 
 
O common metre consiste basicamente numa estrofe de 4 linhas, respectivamente com 8, 6, 8 e 6 sílabas. É uma métrica muito presente, por exemplos, nos hinos religiosos – o exemplo sempre citado nos manuais é “Amazing Grace”. 
 
Amazing grace, how sweet the sound
that saved a wretched like me…
I once was lost, but now I’m found,
Was blind, but now I see…
 
Aqui, uma palhinha desse hino americaníssimo, na voz de Elvis Presley:
https://www.youtube.com/watch?v=AEgG63MCa0I
 
Hinos religiosos eram uma parte importante da vida de Emily Dickinson, uma mulher tímida, introspectiva, de vida espiritual muito intensa, e uma poesia que não se parece com a poesia de ninguém, antes ou depois dela. 
 
A Enciclopédia Britânica Online (https://www.britannica.com/art/common-metre) assim comenta esse verso: 
 
Common metre, a metre used in English ballads that is equivalent to ballad metre, though ballad metre is often less regular and more conversational than common metre. Whereas ballad metre usually has a variable number of unaccented syllables, common metre consists of regular iambic lines with an equal number of stressed and unstressed syllables. 
 
O que este trecho diz, basicamente, é que tanto o common metre quanto a balada usam um esquema de sílabas e de rimas praticamente igual, mas “a métrica da balada é menos regular e mais conversacional, mais coloquial, do que o common metre”. Este, por sua vez, repousa de maneira muito mais obrigatória no número e na posição das sílabas acentuadas. 
 
Cabe então observar esta distinção entre os dois estilos, do ponto de vista métrico. É uma cadência muito dependente da música – o hino religioso versus a canção narrativa, no caso da balada. A impressão que tenho é de uma certa rigidez métrica no common metre e uma flexibilidade maior na balada. Talvez porque o primeiro se destina ao canto coletivo, uníssono, geralmente durante um culto; e a balada seja o canto solo de um narrador, com mais autonomia para cadenciar acentuação, andamento, etc. 
 
“Métrica”, a meu ver, é um conceito capaz de acomodar sem conflito estas duas modalidades de ritmo (porque a métrica é basicamente um ritmo sonoro, embora sirva também como referência visual no caso do poema impresso). De um lado, um ritmo mais rígido, mais obrigatório, mais previsível, com sílabas fracas e fortes sempre em posições previamente estabelecidas; e de outro lado um ritmo mais fluido, solto, maleável, que o tempo inteiro tem em mente aquela forma estabelecida, mas sente-se livre para manejá-la com um certo jogo de cintura, afastando-se dela mas não muito, e a todo instante voltando a ela para reafirmá-la. 
 
São duas maneiras de metrificar, ambas corretas e legítimas. 



(João Cabral de Nelo Neto)

 
No Brasil, vemos algo assim, curiosamente, na obra de João Cabral de Melo Neto. Cabral é universalmente considerado o poeta do rigor, da exatidão, da verbalização precisa, da consciência permanente das estruturas visuais e sonoras com que está trabalhando. Ao mesmo tempo, compensa este rigor com o uso franco e livre da inexatidão, da imprecisão. 
 
Cabral usa largamente a rima toante, ou inexata, e o faz ao modo do Romanceiro Ibérico, misturando-a à rima consoante ou exata (que exige equivalência de sons a partir da vogal da sílaba tônica). 
 
É na métrica, contudo, que ele se movimenta com mais liberdade ainda, e não são poucos os seus poemas em que a redondilha maior (verso de sete sílabas) flutua ao sabor da leitura, encolhendo-se em seis sílabas, dilatando-se para oito e até nove, mas sempre voltando ao centro, sem nunca se afastar demais numa ou noutra direção. 
 
A contagem da métrica de um verso é sempre uma operação subjetiva. Praticamente todo verso pode ter sua cadência modificada pela voz interna do leitor, através de elisões, hiatos, ditongos, diferentes encontros de vogais e semivogais, um vasto repertório de indicações escritas que cada leitor “sonoriza” a seu modo. 
 
Na poesia de João Cabral de Melo Neto, há poemas onde o verso de sete sílabas é o modelo predominante, mas a todo instante encontramos outros que admitem apenas uma leitura de seis ou de oito sílabas, e não há artifício recitativo que os encaixe em sete. Cabral não trata a cadência como um “leito de Procusto”a que os versos tenham que se adaptar a qualquer preço; para ele, aquela medida é um norte, um referencial, um valor rítmico principal que precisa ser observado mas admite uma certa flutuação, um certo suingue. O ritmo poético é uma forma de dança, mas nem sempre busca uma precisão com a das bailarinas de Báli – pode hospedar também a relativa liberdade de um samba sincopado, ou de um frevo que quebra, retarda e solta a melodia sem perder o andamento. 



(Augusto de Campos)


Voltando, agora, à tradução poética: 
 
Perfeccionistas como Augusto de Campos se dedicam a produzir, em nossa língua, uma versão quase isomórfica de um poema estrangeiro, fazendo um malabarismo estonteante com todas as variáveis envolvidas: formato de estrofe, esquema de rimas, métrica dos versos (uniforme ou variada), rigor na prosódia obedecendo às acentuações rítmicas do original... e mesmo com esta grade de restrições conseguem reproduzir também, com sucesso, as idéias (a “logopéia”), as imagens visuais (a “fanopéia”), as metáforas e os símbolos do original, além de achar correspondência para o seu “tom” emocional, o seu léxico de época (quando é o caso), suas alusões culturais e históricas, etc.  Não é pouco! 
 
Esta é uma opção tradutória exigente, rigorosa, que tenta resgatar a “melopéia” original do poema, seu arcabouço de sons, de ecos e assonâncias, sua estrutura auditiva. Vejo essa opção como uma reação a um estilo “conteudístico” de traduzir, no qual o importante era reproduzir “o que estava sendo dito”, sem preocupação maior com os aspectos sonoros. 
 
É possível, em muitos casos, tentar conciliar estes dois lados. Num poema de métrica inflexível, um decassílabo, por exemplo, pode-se permitir uma certa liberdade de movimentos, para que o tradutor, encontrando uma correspondência feliz com o original, não a jogue na cesta do lixo apenas porque o verso resultante chega a onze ou doze. 
 
Uma certa liberdade quanto à rima – usar rimas toantes aqui e ali, mesmo que o original se limite a rimas exatas. Isto pode parecer preguiça ou desatenção, mas muitas vezes esse recurso, sem abrir mão da rima por completo, expande o glossário acessível ao tradutor, e pode resultar numa versão com ganhos significativos em outras dimensões do poema. 
 


 
(Cynthia Nixon como Emily Dickinson, no filme de Terence Davies “A Quiet Passion”)
 
 
 
 
 







domingo, 18 de agosto de 2024

5093) Drummond: "No Meio do Caminho" (18.8.2024)

 

 
No ano de 2010, quando se completaram 80 anos da publicação original de Alguma Poesia (1930), o primeiro livro de Carlos Drummond, comecei a fazer aqui um balanço desse livro, um registro meio informal, meio impressionista, comentando de poema em poema. Pelos meus cálculos, só falta um: este de hoje. 
 
(Nunca sei se meus cálculos merecem confiança, mas calculo assim mesmo. Sou um pouco como o Sheldon Cooper de The Big Bang Theory: “Vocês não acham que, se eu estivesse errado, eu perceberia?!...”) 
 
“No Meio do Caminho”, o famoso “poema da pedra”, é um dos poemas mais injustamente famosos de Drummond. Digo “injustamente” porque vejo muita gente a elogiá-lo  (o que é natural), mas não o vejo atraindo tanta atenção quanto “A Luís Maurício, Infante”, “Nosso Tempo”, “Caso do Vestido”, “A Máquina do Mundo”, “Os Ombros Suportam o Mundo”, “Campo de Flores”... 
 
Paciência. O poema da pedra despedaçou vidraças mentais pelo Brasil afora, estragou o piquenique lírico de muitos poetas e muitos leitores para os quais a poesia funcionava como uma espécie de arranjo-de-flores para botar no centro da mesa. Drummond admitiu mais de uma vez que não achava que o poema fosse grande coisa, e que a reação a ele o surpreendeu. 
 
Foi um dos poemas mais discutidos, mais insultados e mais escarnecidos de sua época. E, bem ou mal, são coisas desse tipo que fazem a fama de quem escreve. 
 
Drummond deu-se o trabalho de guardar uma enorme coleção de recortes e de citações da imprensa a respeito do poema. A coleção resultou no livro Uma Pedra no Meio do Caminho – Biografia de um Poema (Rio: Editora do Autor, 1967), um documento precioso sobre as idas e vindas dos juízos críticos sobre nossa literatura. 
 
Já escrevi aqui no Mundo Fantasmo sobre esse livro:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2009/12/1396-pedra-no-meio-do-caminho-492007.html
 
É um bom poema? É um poema ruim? É o maior poema modernista? É uma abominação? 
 
Não é nada disso, mas é um sintoma curioso de algumas situações presentes na história da Arte. Todo conceito de Arte (assim mesmo, com “A” maiúsculo) é totalmente subjetivo. Ninguém tem como afirmar, com objetividade científica, que a obra de arte X é genial e que a obra de arte Y é péssima. Não há critérios objetivos para medir isso. 
 
Por que? Porque os critérios estéticos são uma mistura do pessoal e do coletivo, são uma combinação entre o famoso “gosto pessoal” e as igualmente famosas “formas aceitas”, as formas que cada grupo social elege (e renova, periodicamente) como sendo importantes, significativas, belas, verdadeiras, etc.
 
O gosto artístico é um conjunto de critérios e opiniões, sempre em constante mutação, no interior de um conjunto de pessoas.  E esse conjunto é permanentemente comparado com os conjuntos cultivados no mesmo país, e até na mesma cidade. 
 
Quando surge uma obra que chuta o pau da barraca e desobedece de forma acintosa a essas formas aceitas, isso gera um ruído e um problema. Certos artistas fazem isso de propósito: “vim aqui para arrebentar os conceitos”, “vim desafinar o coro dos contentes”, “vim fazer chover no piquenique”, etc. 
 
Outros o fazem meio sem querer, como pode ter sido o caso de Carlos Drummond, que em sua fase inicial, aplicadamente modernista, cometeu alguns poemas até mais heréticos do que o da pedra, mas que não produziram o mesmo abalo. 
 
O poema piada, o poema gracejo, o poema rabisco-apressado, o poema trocadilho... tudo isso foi largamente praticado pelo poeta mineiro e seus amigos de geração – num tempo em que a “forma aceita” era o desabafo lírico-sentimental ou épico-grandiloquente. 
 
Toda forma de Arte é também uma zona de conforto, uma bolha de auto-suficiência, um território demarcado onde muita gente se dá bem porque sabe manejar a linguagem dominante. Quando aparece uma obra transgressora, que denuncia a inevitável artificialidade dessa linguagem, ou expõe seu caráter de mera convenção passageira, essa obra incomoda. É o garotinho da fábula denunciando que o rei está nu. 
 
E é de se esperar que esses transgressores sejam apedrejados, sejam barrados no baile, sejam banidos dos currículos, sejam sabotados na imprensa. 



Carlos Drummond dividiu seu livro-coletânea em várias seções, de acordo com o tipo de atitude ou abordagem. Críticas boas e ruins, ironias, elogios, insultos, ofensas, recusas irritadas, registros com bom humor... Tudo isso saudou o aparecimento do poema da pedra. 
 
Traduções, também. A seção “A pedra vai pelo mundo” transcreve versões em húngaro (Paulo Rónai), espanhol (Gastón Figueira), francês (Michel Simon), italiano (Ruggero Jacobi), alemão (Curt Meyer-Clason), inglês (John Nist) e vietnamita (Nguyén Ngoc Bich). 
 
Aqui, a versão em inglês de John Nist (em In the Middle of the Road, Tucson, University of Arizona Press, 1965): 
 
In the middle of the road was a stone
was a stone in the middle of the road
was a stone
in the middle of the road was a stone.
 
I shall never forget that event
In the life of my so tired eyes.
I shall never forget that in the middle of the road
was a stone
was a stone in the middle of the road
in the middle of the road was a stone.
 
Se quisermos ser criativos, em traduções assim, há uma certa latitude de movimentos, porque tanto pedra quanto caminho admitem ser poeticamente traduzidos por diferentes termos: stone, rock, pebble, etc. / road, path, way, etc. 
 
Nos meus tempos de roqueiro e parafraseador (mais que tradutor) diletante, cheguei a rabiscar: 
 
There was a rock on the road
on the road there was a rock
a rock
on the road there was a rock…
 
A pedra acabou, meio involuntariamente, somando-se a outras pedras famosas de nossa literatura: a Pedra do Reino, de Ariano Suassuna, a educação pela pedra e a “pedra do sono”, de João Cabral, a Pedra Bonita, de José Lins do Rego... 
 
O poemazinho despretensioso acabou retrocedendo a segundo plano.  Embora tenha se pregado de forma definitiva, na memória popular, à lembrança e à imagem do seu autor, a ninguém ocorre definir por ele a contribuição de Drummond à poesia brasileira. Há muito mais Drummond para um leitor mergulhar. 
 
  
 




quinta-feira, 15 de agosto de 2024

5092) H. G. Wells e o melodrama de aventura (15.8.2024)

 

(ilustração: Alvim Corrêa) 

 
 
Em “A Guerra dos Mundos” (H. G. Wells, 1898), o narrador passa algumas semanas fugindo à destruição dos marcianos e ao pânico dos terrestres, até que se oculta em algum lugar, e descansa. E diz: 
 
Deitado ali naquela cama eu me surpreendi tendo pensamentos consecutivos – coisa que eu não me lembrava de ter experimentado desde a minha discussão com o padre. De lá até agora, minha condição mental tinha sido a de uma rápida sucessão de estados emocionais, ou então uma espécie de estúpida passividade. (trad. BT) 
 
Um detalhe assim tem verossimilhança, porque de fato até então a vida desse narrador está em polvorosa, e as peripécias o estão levando a reboque, sem lhe dar tempo para respirar. O narrador sequer tem nome, é um mero “autor de obras filosóficas”, cujo refúgio campestre se transforma, de uma hora para outra, em campo de batalha de uma guerra que ele não previa. 
 
Por entre atropelamentos, atropelos, pescoços quebrados, incêndios, colisões, explosões, carnificina, ele foge sabe Deus como, alimentando-se sabe-se lá do que. Um dos aspectos mais impressionantes desta história de Wells é o modo como ele mostra a fome das pessoas. Toda guerra impõe o reinado da fome. 
 
Por sorte, o narrador tinha deixado a esposa em segurança na casa de parentes fora da zona de combate; mas aí ele tenta voltar, para testemunhar os fatos. E comenta ter visto, por entre o “salve-se quem puder” dos pais,“crianças excitadas, e, em sua maior parte, deliciadas com essa espantosa interferência nas suas atividades dominicais.” 
 
Ariano Suassuna sempre comentava que aventura é tudo aquilo que é péssimo de viver mas excelente de contar depois. O melodrama literário se baseia justamente nisso: contar a um leitor pacato uma série de coisas com que ele não gostaria de se envolver por-dinheiro-nenhum. O que o leitor quer é a emoção vicária, a emoção emprestada por um personagens cujas aventuras ele vai viver durante algum tempo, sabendo que basta fechar o livro para estar de volta a sua poltrona classe-média, na sua casa intacta, onde há comida e conforto. 



 
A aventura não deixa muito tempo para reflexões vagarosas, como bem percebeu H. G. Wells. A boa história de aventuras arrebata o leitor, não o deixa respirar, e muito menos refletir. Robert Louis Stevenson, que conhecia bem o gênero, supõe que o leitor comum “adora as narrativas rápidas”. Em outro ponto, ele especula: “Dizem também que as pessoas apreciam os acontecimentos, mais que os personagens; não estou muito seguro disto”.   
 
Stevenson tem razão duplamente, a meu ver. Creio que existem os romances de enredo e os romances de personagem. 
 
No primeiro caso, é a narrativa, a série de peripécias, que chama a atenção e arrebata as emoções do leitor, e de certo modo é secundária a questão “a quem aquilo tudo acontece”; poderia ser com qualquer um. É apenas um narrador confortável, que aceitamos sem dificuldade para o transcorrer da narrativa.  
 
No segundo caso, é o personagem que arrebata consigo a identificação emocional do leitor. Os dois se fundem numa só consciência e daí em diante tudo que acontecer àquele personagem (ou àquele conjunto de personagens) torna-se interessante, porque o leitor o sente como se acontecesse a ele próprio. 
 
Stevenson discute essas questões num artigo de 1885, “Popular Authors”, e coloca um peso considerável nesse processo de identificação. O personagem é o instrumento através do qual os leitores têm acesso ao mundo da aventura, ao mundo do perigo, às vezes ao mundo do luxo e da vida na alta sociedade, outras vezes ao mundo da violência e do crime.  Diz Stevenson: 
 
A imaginação (se ouso assim me exprimir) do escritor popular vem deste modo resgatá-los, fornecer um conjunto de circunstâncias a essas aspirações fantasmagóricas, e conduzir esses leitores aos lugares onde eles desejam ir. Onde desejam ir; esta é justamente a questão: não irão nem um passo além. (trad. BT) 
 
Dizemos muitas vezes que a leitura de romances deve ter uma finalidade educativa, e confundimos essa finalidade com uma intenção educativa demasiado ao pé da letra. O romance deve educar: e assim dizemos que os livros de Jules Verne são aconselháveis, porque transmitem aos jovens (e esta era a intenção de Verne, e de seu editor, Hetzel) conhecimentos de astronomia, geografia, física, náutica, etc. 
 
Vemos essa função também na volumosa literatura produzida no mundo inteiro com o intuito de inculcar no leitor valores éticos e morais, lições de auto-ajuda, mensagens de religião ou de patriotismo. Para quem cultiva esse tipo de literatura, tal critério se sobrepõe a todos os demais, inclusive os de “arte literária”. 
 
A principal função “educativa” da literatura, entretanto, talvez seja a mais básica de todas: permitir esse estranho processo de empatia com um conjunto de personagens inventados.



(livraria em Londres sob bombardeio, 1940) 


Nós, leitores, conseguimos achar esses personagens tão reais quanto nós mesmos, e dignos de nos servirem de avatares. Cada hora de leitura que lhes dedicamos é uma hora subtraída a nossa vida ativa, a nosso contato direto com o mundo. Essa hora silenciosa e concentrada, no entanto, nos enriquece com situações virtuais que geralmente não teríamos como experimentar em primeira mão. 
 
Alguém pode dizer que o cinema cumpre a mesma função, e talvez com maior intensidade sensorial. A literatura de ficção, contudo, nos permite mergulhar no mundo íntimo dos personagens, pois ela verbaliza seus pensamentos, suas reflexões, suas suposições, toda essa mistura de percepção, emoção e razão em que nossa mente está constantemente mergulhada. Nenhuma outra forma de arte substitui, neste aspecto, a palavra escrita e a narrativa imaginada. 
 
 
 
 
 






segunda-feira, 12 de agosto de 2024

5091) A biblioteca de Fernando Pessoa (12.8.2024)



 
O poeta Fernando Pessoa morreu em 1935, aos quarenta e sete anos, consumido pela solidão, o cigarro, a bebida e sabe-se lá mais o quê. Era um indivíduo intenso e arredio, embora tivesse cultivado amizades sólidas que duraram por toda sua vida adulta. 
 
Nunca se casou, embora tenha mantido uma espécie de namoro platônico com uma prima, Ofélia, que provavelmente lhe inspirou o famoso verso dizendo que “todas as cartas de amor são ridículas”. 
 
Pessoa deixou como herdeiros dois sobrinhos, parentes distantes a quem se juntaram seus amigos mais fiéis para administrar o espólio após sua partida – principalmente o famoso e inesgotável baú onde se encontravam, talvez, 90% de sua obra conhecida atualmente. 
 
Pessoa publicou pouco em vida. O único livro que publicou com seu nome foi o justamente famoso Mensagem. Os poemas que atribuiu aos seus “heterônimos”, poetas imaginários que ele usava para adotar diferentes atitudes e mentalidades poéticas, foram publicados aqui e ali durante sua vida. Os heterônimos eram um artifício conhecido de seus amigos mais próximos, mas nas décadas seguintes a sua morte tomaram o mundo de assalto. 
 
Sua biblioteca pessoal foi recentemente colocada à disposição dos leitores, pela Internet, num portal que enumera todos os livros encontrados em seu poder quando de sua morte, e tem imagens digitalizadas de páginas anotadas, comentadas, com dedicatórias, etc. 
 
São ao todo 1.312 títulos num total de 1.419 volumes, divididos em dez classes: 



 
Anos atrás comentei aqui no Mundo Fantasmo a biblioteca deixada por Guimarães Rosa, quando morreu em 1967. 
 
Aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2011/01/2453-biblioteca-de-j-g-rosa-1412011.html
 
Tenho uma curiosidade especial para saber o que liam e o que mantinham consigo esses escritores que admiro. Em parte por interesse histórico, vontade de avaliar (mesmo indiretamente, com indícios circunstanciais) possíveis fontes ou influências literárias. Com cautela, é claro. A presença de um livro numa biblioteca não prova que o livro foi lido; no máximo revela algum interesse por parte do dono da biblioteca. E nem tudo que lemos (ou que possuímos) nos influencia. 
 
Correr os olhos por uma lista assim serve também para nos surpreender. Por melhor que conheçamos o que alguém escreveu não é a mesma coisa ficar sabendo o que essa pessoa costumava ler. 
 
A biblioteca de Pessoa pode ser acessada aqui: 
https://bibliotecaparticular.casafernandopessoa.pt/index/index.htm
 
Pessoa tinha temperamento místico, ritualístico, e uma fascinação pelo simbolismo iniciático das sociedades secretas. Na Classe 0, “Generalidades”, de sua biblioteca, há numerosos livros sobre a Maçonaria e a Fraternidade Rosa-Cruz, interesses permanentes do poeta ao longo de sua vida. 
 
Por outro lado, tinha um interesse real pela ciência de sua época nessa mesma seção vê-se um livro de H. G. Wells: Anticipations of the reaction of mechanical and scientific progress upon human life and thought (1914). Eu tinha curiosidade em saber se Pessoa era leitor de ficção científica, não a FC das revistas populares (embora ele fosse fluente no inglês, idioma que aprendeu muito cedo na África do Sul, onde passou parte de sua infância) mas alguma coisa do chamado “scientific romance” europeu, ao qual ele certamente tinha acesso. 



 
E o nome que brotou nas listas da biblioteca foi justamente o de H. G. Wells, que durante o tempo de vida de Pessoa estava no auge de sua popularidade. Nas primeiras décadas do séulo 20, Wells era um autor prolífico, bem-falante, viajava pelo mundo, envolvia-se em polêmicas, era recebido por chefes de Estado. Foi o autor de FC com maior status politico internacional, rivalizado tempos depois por Arthur C. Clarke. 
 
E na Classe 8 da biblioteca pessoana encontram-se obras suas como First and Last Things , The invisible man, Kipps, Love and Mr. Levisham , The new Machiavelli, The sea lady, The short stories of H. G. Wells, The time machine, The Island of Dr. Moreau, Tono-Bungay, The wheels of chance, e When the sleeper wakes. Note-se que não são todos romances de FC – porque Wells, tipicamente para sua época, escrevia em todos os gêneros, sem fazer distinção autoral entre eles. 
 
Em termos da literatura hoje considerada “de gênero” (FC, policial, fantasia, etc.) os autores mais presentes na biblioteca pessoana são Wells e o inabarcável G. K. Chesterton, outro “monstro sagrado” da literatura da época, tanto em sucesso popular quando no respeito por parte da crítica literária. O autor de Orthodoxy morreu em 1936, um ano depois de Pessoa; foram rigorosamente contemporâneos (GKC alguns anos mais velho), e na biblioteca do poeta encontra-se o seu clássico A Incredulidade do Padre Brown (1926), a terceira das cinco coletâneas de contos com o padre-detetive. 
 
Outras obras chestertonianas espalhadas pelas estantes do poeta são What’s wrong with the world (1912, na Classe 3, de Ciências Sociais), A short history of England (1917) e a biografia George Bernard Shaw (1914), ambos na Classe 9, que inclui “Biografia”. 
 
A presença de todas estas obras sugere admiração, devoção, alinhamento ideológico ou estético? Nem tanto. No poema em prosa “Ultimatum” (1917), um dos textos fundamentais para se entender o pensamento de Pessoa, o heterônimo “Álvaro de Campos” passa o rodo na literatura, na cultura e na política da Europa, num dos ataques mais virulentos, mais eloquentes e mais acidamente verbalizados que a Europa já sofreu. 




“Campos” age como um iconoclasta que entra numa catedral ou num museu, cano-de-ferro em punho, e sai reduzindo a cacos todas as imagens que surgem na sua frente. 
 
E diz, a certa altura: 
 
(...)
Fora tu, H. G. Wells, ideativo de gesso, saca-rolhas de papelão para a garrafa da Complexidade !
Fora tu, G. K. Chesterton, cristianismo para uso de prestidigitadores, barril de cerveja ao pé do altar, adiposidade da dialéctica cockney com o horror ao sabão influindo na limpeza dos raciocínios ! 
(…)
 
Pessoa afirmava fazer poesia dramática, falando em nome de personagens que tirava da própria imaginação. E é curioso que, ao voltar sua metralhadora verbal contra a literatura européia, ele coloque assim, lado a lado, juntinhos, dois dos escritores mais bem representados em suas estantes. Dois dos seus mais fiéis companheiros de café, cigarro e madruga. 
 
Uma relação um tanto obscura na biografia de Pessoa é a que ele manteve com o mago Aleister Crowley, uma das personagens mais peculiares daqueles tempos. Crowley já foi descrito como uma mistura de Thomas Green Morton e o Conde de Cagliostro. Apelidado “a Besta do Apocalipse”, era um sujeito de personalidade forte, inteligente, carismático, sem escrúpulos, que alegava ter poderes paranormais e ser bem relacionado no mundo dos deuses e dos demônios. 
 
Fernando Pessoa tinha interesse pela magia ritual, e além disso Crowley era um dos personagens mais polêmicos na imprensa da época. O poeta tinha entre seus livros o 777 (1909) de Crowley, a biografia The Legend of Aleister Crowley (1930) de P. R. Stephensen, e a autobiografia (que alguns chamam “auto-hagiografia”) The Confessions of Aleister Crowley (1929). 
 
Estes dois últimos livros surgem na mesma época do misterioso encontro presencial de setembro de 1930 entre Pessoa e Crowley, na “Boca do Inferno”, em Cascais, quando o poeta ajudou o bruxo inglês a forjar o seu próprio desaparecimento, um episódio bizarro que nunca entendi direito e sobre o qual leria de bom grado um livro inteiro. 
 
Há algum material a respeito neste documento:
https://www.brown.edu/Departments/Portuguese_Brazilian_Studies/ejph/pessoaplural/Issue1/PDF/I1A08.pdf
 
Pessoa lia biografias de Oscar Wilde, Lord Byron, Percy Shelley. Há um pequeno volume, The Poe cottage at Fordham (1922, Reginald Pelham Bolton) que tem como foco a casinha novaiorquina onde Edgar Allan Poe viveu alguns momentos de felicidade efêmera com sua prima-esposa Virginia Clemm. Fiquei curioso quanto ao teor de The mental condition and career of Jesus of Nazareth (1904, Henry Leffman) e também de Lives of the necromancers or an account of the most eminent persons in successive ages who have claimed for themselves or to whom has been imputed by others the exercise of magical power  (William Godwin, 1876). 
 
Na Classe 1 da biblioteca, que envolve filosofia e psicologia, surge um título curioso sobre a sexualidade de Walt Whitman: Walt Whitman’s Anomaly (1913), de W. C. Rivers. Whitman é uma das grandes fontes de inspiração para os poemas de “Álvaro de Campos”. Seu tratamento poético do tema da homossexualidade causou escândalo na época, e é um viés presente na poesia de Álvaro de Campos, o “autor” de obras como “Tabacaria” e o “Poema em Linha Reta”. 
 
O interesse científico de Pessoa está mais manifesto na Classe 5, nas obras sobre “Matemáticas e Ciências Naturais”. Ali se encontram, ao lado de vários livros sobre Teoria da Evolução e o Darwinismo, obras sobre a Teoria da Relatividade: The Theory of Relativity (Henry L. Brose, 1920), Einstein (Alembert, 1923), Initiation aux théories d’Einstein (A. Berget, Gaston Moch, 1922), Relativity (William Rose, James Rice, 1927). 
 
São obras do momento, do quente da batalha, como se diz por aí. Obras da época em que Einstein, depois de muitos anos de luta, começava a impor à comunidade científica sua visão do Universo, da matéria, do espaço e do tempo (ele recebeu o Prêmio Nobel em 1922). Pessoa acompanhou, mesmo que o tenha feito superficialmente, essa batalha. 
 
E quanto à literatura de gênero, registro na Classe 9, literatura, o testemunho do amor irrestrito de Pessoa pelo conto detetivesco, ou “conto de raciocínio”, como ele os chamava. Conto e romance, é claro. A biblioteca preserva algumas revistas de contos policiais como All Detective Magazine (1934), Detective (1940) em meio a outras revistas literárias em geral. E ali estão títulos de autores clássicos daquele período, como Trent’s Last Case (E. C. Bentley), The Vane mystery (Anthony Berkeley), His Last Bow (Conan Doyle), Raffles (E. W. Hornung), The Old Man in the Corner (Baronesa de Orczy), The mystery lamp (Mary R. Rinehart) e John Silence (Algernon Blackwood). 
 
Pessoa reafirmou em várias ocasiões o seu gosto pela literatura policial-detetivesca, e chegou a praticá-la de forma fragmentária. Veja aqui: 
 
https://mundofantasmo.blogspot.com/2023/02/4912-o-detetive-fernando-pessoa-1222023.html
 
Pessoa era leitor de Edgar Wallace, talvez o mais célebre autor de romances policiais daquela época. Não vi nenhum livro dele na biblioteca pessoana, o que nada prova; mas posso encerrar com esta observação arguta do poeta: 
 
A concisão e a captação do interesse do leitor, requeridas nas estórias detetivescas, não são menos requeridas em todas as literaturas. Nada se ganha com fatigar o leitor. Edgar Wallace é mais interessante do que Walter Scott, mas Edgar Wallace não é mais interessante do que Shakespeare. Há um Edgar Wallace em Shakespeare. 
(Fernando Pessoa, Obras em Prosa, Ed. Nova Aguilar, 1986, p. 490) 
 


(Fernando Pessoa, 1928)