Acho oportuno lembrar que estas minhas compilações de palavras e expressões não têm o objetivo de afirmar que elas têm origem no Nordeste, ou na Paraíba, etc. São expressões da minha linguagem afetiva, que ouvi pela primeira vez na infância ou adolescência, e depois descobri serem um tanto raras, principalmente na linguagem escrita. Claro que não são exclusividade do Nordeste. Fazem parte de um Nordeste que é só meu, mas que me dá prazer compartilhar com quem se interessa.
Expressão usada, geralmente pelas pessoas mais velhas, para dizer: "em dado momento... foi então que..." Entra na narrativa para indicar um sentido de passagem de tempo, de que houve uma certa duração entre o que houve antes e o que vai ser narrado a seguir. "Eles entraram no bar e ficaram conversando, comeram alguma coisa... Às folhas tantas, Fulano tocou no assunto do pedido de emprego."
Imagino que há uma relação com a expressão muito frequente no linguajar dos cartórios: "Está registrando no Cartório Tal, livro 16, às fls. 27-28..." Neste caso, a intenção é apontar um local preciso, enquanto a expressão anterior simplesmente indica transcurso de tempo. Eis um exemplo típico de como uma utilização pode ter acabado dando origem à outra:
Até dois amigos mais íntimos de Mary McCarthy se surpreenderam com suas maravilhosas (e mal organizadas) memórias, ao contar que chifrou fartamente todos seus conhecidos amantes e maridos. Às folhas tantas se pergunta se é promíscua, porque dormiu com quatro homens no espaço de tempo de 24 horas.(Paulo Francis, O Globo, 29-6-1995)
“Tomar uma deforeta” (pronúncia: "deforéta") é dar uma relaxada, descontrair um pouco, descansar, ir à janela ou ao terraço para respirar um pouco de ar puro. “Faz três horas que a gente está pegado com esse trabalho... Vamos dar uma paradinha e tomar uma deforeta, daqui a pouco a gente volta.” Quando éramos garotos, minha irmã Clotilde sentenciava: “Deve ser uma corruptela de diaforético”. Indagada sobre o que seria isso, ela respondia: “Não sei, mas parece nome de remédio”. Na verdade, "diaforético" diz-se de algo que provoca a transpiração. Variante: "deforéte".
O senhor de engenho, por sua vez, estagnava na rotina e na indolência. Sair da rotina era coisa que parecia exceder de todo a sua capacidade de ação. A indolência do corpo não era menor que a do espírito. Durante o dia tirava largos deforetes na rede da sala ou, deitado sobre montes de bagaço, espiava pachorrentamente o engenho moer.(Horácio de Almeida, Brejo de Areia, pag. 106)
Pabulagem
Jactância; hábito de contar vantagem. “Não venha com pabulagem não, que todo mundo aqui sabe que você é muito do mentiroso”. Existe o verbo “se pabular”: “O papo estava até bom, mas depois de uma certa hora Fulano começou a se pabular, contando riqueza, aí eu enchi o saco e vim embora”.
De que serve o senhor se pabularque só conta grandeza e valentiajá mostraste a tua covardiae vai correndo com medo de apanharse fugires, eu corro até pegara minha volta ninguém se livra delacom uma mão no peito e outra na goelamas se o bruto salvar-se dessa vezeu pego ele, tranco no xadreze o Pelado servirá de sentinela.(João Martins de Athayde, Peleja de João Athayde com Raimundo Pelado do Sul)
Vai dormir, que teu mal é sono
Expressão brincalhona que se usa em várias ocasiões: quando a pessoa está de fato sonolenta; quando está de mau humor, sem motivo; quando está perturbando o sossego dos outros. "Cala essa boca, menino, deixa a gente acabar de ouvir a história! Vai dormir, que teu mal é sono!"
Já peguei Josué na Catingueirauma noite de São João numa novenameia-noite o rapaz fazia penadeu-lhe frio levantou-lhe até coceiraquis meter-se debaixo da fogueiraficou logo sem sentidos, descoradonão podia estar em pé e nem sentadoeu lhe disse: "vá dormir, seu mal é sonová sabendo, no sertão só tem um donoé Carneiro, este velho seu criado."(João Martins de Athayde, Peleja de Serrador com Carneiro)“Mulher, vem pra dentro que teu mal é sono! Vem, pra dentro,vem! Vem, que teu mal é sono, e o meu também!”(Ariano Suassuna, A Farsa da Boa Preguiça, Ato I)
Todo mundo quer ser bom, e a lua falta um pedaço
Equivale a: "Não há quem não tenha algum defeito". Observe-se que a grafia mais correta será com acento grave: "...e à lua falta um pedaço". Há variantes, como:
Na propriedade alheiaoutro de fora não manda.Todo mundo quer ser boma lua falta uma banda.E um dos meus carneirinhosquem sabe em que lugar anda!(Severino Pinto, cit. em Um século e meio de repentes, de Edvaldo Muniz de Melo, pág. 97)
Não se cresça!
O mesmo que “Não se atreva! Não se meta a besta!” Usa-se geralmente no imperativo. “Olhe, Fulano, você não se cresça comigo não, porque amizade tem limite.”
Dizia o príncipe ao anão:Vou abrir sua cabeça,O anão dizia: príncipeÉ melhor que se esmoreçaSe renda logo à prisãoFique calmo e não se cresça(Minelvino Francisco da Silva, “O filho de João Acaba-Mundo e o Dragão do Reino Encantado”, em Minelvino Francisco da Silva, pag. 102)
Vizinho; diz-se de moradias. “Eu estou indo morar pegado com a casa de Seu Fulano”. Variante: “encostado”.
-- Essas duas casas são pegadas ao casarão onde o senhor mesmo mora?-- São sim senhor!-- É verdade que elas se comunicam por portas internas?-- É sim senhor!-- Sua casa é pegada, pelo outro lado, ao prédio da Biblioteca que o senhor dirige?-- É sim senhor! A Biblioteca fica na esquina. Depois, do lado direito e pegada com a Biblioteca, fica minha casa. Depois, pegada à minha pelo lado esquerdo, vem a casa do Professor Clemente. E finalmente, pegada à de Clemente, fica a casa do Doutor Samuel.(Ariano Suassuna, Romance da Pedra do Reino, pag. 272)
Exclamação de zombaria que se usa quando alguém vem nos anunciar uma novidade que já é do conhecimento de todos. “-- Minha gente, vocês não sabem da maior... O Papa morreu! -- Olhe a boneca! Deu na TV faz mais de meia-hora.” Vem acompanhada de um gesto -- a pessoa que dá a resposta agarra um pedaço de pano, geralmente da própria roupa, e o exibe ao “dono da novidade”, como se mostrasse uma boneca.
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