“O futuro será medieval”, parece dizer uma parte significativa da ficção científica ao longo dos anos.
Um dos melhores exemplos é o romance Duna (1965) de Frank Herbert, que depois de algumas tentativas que
não deram muito certo (Alejandro Jodorowski, David Lynch) recebeu agora uma
transposição segura e bem realizada (em dois filmes, cada um com cerca de 2
horas e 20 minutos), mesmo não sendo especialmente brilhante, de Denis
Villeneuve.
Os dois filmes, feitos com intervalo de cerca de três
anos, são na verdade um filme só, tal a unidade e continuidade entre eles.
Villeneuve é um cineasta que sabe manejar as grandes
estruturas, os grandes orçamentos. Fui catar informações sobre os orçamentos. O
primeiro filme custou 150 milhões, arrecadou 400 milhões e os produtores, mesmo
otimistas, diziam que “ainda falta muito
para se pagar...” Como afirmam
alguns críticos, algumas cláusulas-pétreas da Aritmética não valem na Economia.
É uma espécie de Aritmética não-euclidiana, com perdão do barbarismo.
Problema deles. A ficção científica medieval é aquele
gênero onde são bem vindos os públicos da FC hard, da FC soft, da
Fantasia Heróica, da Space Opera... Como em festa infantil, cada convidado
leva algum brinde para casa.
(Timothée Chalamet, como “Paul Muad-Dib”, e Austin Butler, como “Feyd Rautha”)
Existem fragatas interplanetárias gigantescas e pequenas
naves ornitópteras que batem asas; ao lado disto, temos lutas de espadas e
escudos, e lutas corpo a corpo em arenas ao estilo romano. Não há computadores,
mas existem os Mentat, cérebros
capazes de calcular tudo. Monstros, pistolas de raios, conversas telepáticas,
estados alterados de consciência capazes de vislumbrar as ramificações do tempo
imediato.
Isto dá à série Duna,
desde os romances iniciados em 1965, uma mistura de Star Trek com O Senhor dos
Anéis, e é uma das razões do culto que produziu desde então. Correndo o
risco de mais um trocadilho infame, a tendência é o gênero “Cloak and Dagger” (“capa
e espada”) virar “Glock and Dagger”.
Duna transcorre
num futuro distante: Ano 10.191 da Era dos voos inter-estelares, que começaram
por volta do ano 13.000 de nossa época. (Colhi estes dados no Internet Movie
DataBase.) Esses datas produzem ao mesmo tempo a sensação de um salto
vertiginoso no futuro, e a presença de um enorme passado acumulado. Porque o
futuro não é feito apenas de novidades, mas de permanências. E de formas que
retornam ciclicamente ao longo da História. A literatura de FC vem reiterando,
há mais de um século, que a História humana não avança numa trajetória
retilínea, ascendente, uniforme. A História até avança, mas o faz aos
zigue-zagues, aos soluços, aos espasmos.
Um dos pontos fortes do romance de Frank Herbert (estou
me referindo aqui ao primeiro livro da série – não li os demais) é a sensação do
peso de um Passado, da presença de uma cultura milenar. Há na prosa narrativa
dele um acúmulo de sabedoria oral, transmitida em forma de provérbios,
mandamentos, pequenas fábulas e apólogos, ensinamentos cujo sabor antigo e
oriental casa bem com a ambientação social da narrativa com seu cenário que
lembra o Oriente Médio e a África.
“Duna” é um planeta árido e rude onde desembarca uma
civilização poderosamente tecnológica. As armas e a tecnologia (p. ex., as
roupas que preservam a água corporal) contrastam com o fundamentalismo
religioso e com a própria estrutura política. Não é exatamente a “galáxia
totalmente humana” proposta por Isaac Asimov a partir da série “Fundação”: mas é
a Galáxia imperialista, e ali está o medievalismo através do conceito de
Império, de famílias nobres, de feudos, de casamentos para alianças políticas,
etc.
Ou seja: o futuro terá tecnologia avançadíssima, mas o pensamento individual e coletivo será medieval. Isto “dá um gás” à trama, porque temos direito a intrigas palacianas, traições, espionagem, disputas pelo poder dentro do mesmo grupo, etc. No livro, tudo isto vem unido por uma argamassa de princípios, mandamentos, fábulas, provérbios, reflexões... Os personagens de Duna pensam com intensidade, refletem íntimamente sobre tudo que está lhes acontecendo. E nos filmes a maior parte disto está ausente.
Duna era um
romance de Fantasia Heróica com guerreiros Sardaukar no lugar de Orcs. E era uma
space-opera de aventura ecológica, encharcados dessa sabedoria sentenciosa, com
uma frase antiga para definir ou esclarecer qualquer situação. Uma convivência
entre o épico aventureiro e a sabedoria dos Antigos, algo que encontramos
também (lá venho eu com meus exemplos surrados de sempre!) no Senhor dos Anéis de J. R. R. Tolkien e
no Grande Sertão: Veredas de
Guimarães Rosa.
(Rebecca Ferguson,
como “Lady Jessica”)
O filme abre mão desse lado sentencioso, o que por um lado
lhe dá agilidade narrativa. Tudo se concentra na intriga política e na revolta
social, mas ao se focalizar assim ele perde a profundidade de significado do
romance original. (Sem deixar de ser um bom filme, reconheço.)
Isto o cinema não consegue transpor da literatura: a
capacidade de mostrar, como parte espontânea e essencial do tecido narrativo, o
que os personagens estão pensando. O cinema precisa apelar para diálogo ou para
voz em off. Paciência.
O livro de Frank Herbert é um épico sobre um choque de
civilizações e de pensamentos sobre o mundo, choque que aflora numa disputa
econômica (pela especiaria) equacionada pela política, e mal-e-mal resolvida
pela guerra. O filme-duplo de Villeneuve traz esse choque de maneira envolvente
e tecnicamente impecável (pelo menos aos meus olhos leigos), mas não produz,
como o livro produzia, a impressão de milênios de cultura e de reflexão por
trás daqueles povos em guerra. De uma toda uma filosofia complexa, vemos brotar
apenas o fervor fundamentalista, e é pouco.
Villeneuve fez uma opção deliberada de reduzir os diálogos e as “filosofias” e se concentrar no enredo e na ação. Ainda assim, trechos característicos da prosa de Herbert aparecem:
“Disse que o mistério da vida não era um problema a ser resolvido, e
sim uma realidade a ser vivida. Daí citei a Primeira Lei dos Mentat: “Não se
pode entender um processo interrompendo-o. O entendimento precisa acompanhar o
fluxo do processo, tem de se juntar a ele e fluir com ele.”
(Duna, ed. Aleph, trad. Maria do Carmo Zanini, p. 54)
Um dos aspectos mais interessantes do filme é o povo Fremen, que sempre vi como uma mistura entre os sertanejos de Canudos, os povos do deserto de Lawrence da Arábia e os samurais japoneses. Povos que parecem impassíveis ou fanáticos, mas na verdade são herdeiros conscientes de uma cultura sedimentada há milênios. Seu comportamento obedece a uma espécie de fatalismo em que os desejos individuais pesam pouco. Como diz Karen Blixen, ao descrever a atitude do povo guerreiro dos massai:
As forças que haviam edificado [essa atitude] construíram também grandes prédios de pedra, mas estes já haviam
retornado ao pó fazia muito tempo.
(Karen Blixen, A Fazenda Africana, Civilização Brasileira,
trad. Per Johns)
As construções megalíticas passam. Já a atitude guerreira
e estóica... esta fica. E Denis Villeneuve entende isso quando recorre a uma
arquitetura brutalista, implacável, de edifícios com o peso arrogante de quem
pretende durar para sempre, e máquinas espantosas que se locomovem na areia do
deserto por entre operários ou soldados liliputianos. Os zigurates ardem, as
máquinas explodem e desmoronam, e não se vê nenhuma reação nos olhos azuis de
quem as destrói. Os olhos permanecerão.
(Zendaya, como “Chani”)
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