segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

4901) A invasão do palácio (9.2.2023)




Estava em polvorosa, naquele início do Mês dos Jasmins, o milenar Império da Lua Minguante. A derrubada da vetusta dinastia Pi Yang, no poder há mais de três séculos, produzira grandes abalos. No trono do poder assentara-se o usurpador Wong Ling, rodeado por sua corte de invejosos. A guilhotina imperial funcionava, ininterrupta como um tear, desde o primeiro cantar do galo. Os apaniguados do Usurpador espalhavam-se pelas províncias do reino, assumindo cartórios, ocupando fortalezas, assenhoreando-se das rédeas de comando até dos vilarejos mais remotos.


Ainda assim, a Resistência prosperava, através de greves, motins eventuais, quebra-quebras espontâneos, o que mantinha em ocupação constante os corpos de Lanceiros de Frio Aço, executores da política imperial. 

 

A cem milhas da capital, perto da estrada que dava acesso a Nova Antióquia, o idoso ex-imperador agora no exílio, Pi Yang Deng, reuniu-se certa noite com seus conselheiros e assessores mais próximos. A fuga precipitada da capital em chamas salvara suas vidas e seus bens infungíveis; mas agora era preciso fazer uma avaliação precisa das perdas e danos. Alguns áulicos usaram da palavra, queixando-se disto e daquilo, mas suas queixas empalideceram diante da apreensão provocada pelo relatório do velho ministro Kung Sing Wu.

 

– Estamos com uma espada pendente sobre nossas cabeças – advertiu o ministro, com a gravidade que lhe era peculiar. – Nossa fuga precipitada, infelizmente, nos obrigou a deixar para trás numerosos objetos de valor, posses pessoais, obras de arte, relíquias de família. Mas dentre as mil coisas que não tivemos tempo de resgatar do Palácio Imperial, há uma que constitui um tremendo perigo para nossas vidas e para a perpetuação da dinastia. Lamento informar que no Salão Turquesa da ala noroeste do palácio, dentro de um armário laqueado em jade e trancado a sete chaves, ficou para trás o Cofre de Madrepérola, onde estão preservados documentos secretos do governo e da vida pessoal de Vossa Majestade. São documentos cujo teor, é claro, não devo enunciar aqui.

 

O velho imperador ficou em silêncio durante vinte minutos, no que foi imitado pela congregação.

 

–É preciso recuperar o cofre o quanto antes – disse ele por fim. – Esses documentos não podem cair nas mãos dos nossos inimigos. Como faremos?

 

O velho Kung Sing Wu fez uma reverência.

 

– Com a permissão da Vossa Majestade Imperial, já tomei providências, e contratei um dos poucos indivíduos no mundo capazes de nos ajudar. Façam entrar o estrangeiro!

 

As portas se abriram e deram passagem a um homem meio gordo, bonachão, rosto rosado, de longos cabelos e longos bigodes brisalhos, com um chapéu de plumas e punhal à cinta.

 

– Este é o menestrel ambulante Jean Le Balladier – disse o Ministro, enquanto o estranho fazia uma mesura respeitosa e tomava assento à mesa. – Conhecido pelos seus versos inspirados e pela sua habilidade com o alaúde, mas também um dos homens capazes de entrar e sair de qualquer recinto sem deixar pistas, e capaz de roubar um par de meias sem tocar nos sapatos da vítima. O Palácio Imperial está cercado por tropas, e há guardas armados em todos os corredores. O Salão Turquesa não tem janelas, tem apenas uma porta de entrada, e diante dela, pelo que apurei, ficam homens armados, em turnos sucessivos. Já discuti o assunto com o nosso convidado. Caberá a ele a tarefa de entrar sem ser visto, apoderar-se do cofre sem ser molestado, e voltar para cá sem ser detido pelas forças do Usurpador.

 

*  *  *

 

Dois dias depois, a capital do império continuava em grande agitação, com multidões em protestos pelas ruas, incêndios, tropel de guardas armados investindo contra grupos de apedrejadores. Por volta do meio-dia, no Dia do Peixe-Espada, uma multidão irresistível, açulada desde cedo por boatos e ameaças, dirigiu-se ao Palácio Imperial, com archotes e ancinhos em punho. O Palácio, símbolo maior do Império da Lua Minguante, havia sido respeitosamente poupado dos protestos, mas agora os poucos guardas viram-se impotentes para deter o mar de gente que afluiu pelas avenidas largas da capital, galgou a ponte levadiça, atravessou a nado o fosso, arrebentou janelas e portas, invadiu com clamor e fumaça os salões ricamente atapetados.

 

Os guardas ofereceram resistência, mas foi debalde, porque a cada dez invasores que caíam estripados outros vinte surgiam, desabafando enfim um ódio represado há séculos. Subiram escadarias, despedaçaram vitrais, arremessaram no chão de mármore as centenas de vasos Ming e de candelabros de cristal que adornavam os salões e corredores. O clangor das espadas e os berros de fúria avançaram pelo interior de todo o palácio, enquanto das janelas arrebentadas dos andares superiores eram arremessados à rua móveis, armaduras e baixelas, para delírio do populacho.

 

No meio da batalha, um homem avançava com passo descansado, um pesado elmo protegendo-lhe os longos cabelos grisalhos, enquanto se defendia de golpes alheios com um escudo e uma espada de boa têmpera. Não se deteve um só momento, logo chegou à escadaria principal da ala noroeste, sempre dando gritos de incentivo para que portas fossem botadas abaixo, alfaias e pinturas fossem saqueadas.

 

– Levem tudo! – gritava ele numa e noutra direção, com forte sotaque, de tantos em tantos passos. – Isto aqui pertence ao povo da Lua Minguante!

 

No segundo andar do palácio, deteve-se diante de uma pesada porta, com a placa “Salão Turquesa”, diante da qual meia dúzia de guardas jaziam degolados. Guardando a espada, tirou de dentro do gibão um pé-de-cabra enorme, e com algum esforço conseguiu enfiá-lo na fresta da porta, que daí a pouso se lascava, se rachava, e era despedaçada para dentro aos pontapés. O Salão sem janelas era claustrofóbico mas espaçoso, com mesas, cadeiras, espelhos, vasos históricos. Alguns arruaceiros entraram ali atrás dele, que apontou com o dedo os objetos de decoração:

 

– Levem tudo!

 

Dirigiu-se sem hesitação para um armário laqueado em jade, e dentro de poucos minutos, usando alternadamente a espada e o pé-de-cabra, conseguiu fender-lhe a porta metálica e arrancá-la dos gonzos. Uma segunda porta interna, de madeira de lei, teve o mesmo destino, e ali ele avistou um cofre retangular de madrepérola conforme a descrição. Encostando a um lado os instrumentos, desamarrou da cintura um saco de lona resistente, coloc

ou dentro dele o cofre, amarrou com força os cordões da boca do saco e depois amarrou-os à própria cintura com nó triplo. Guardou o pé-de-cabra, empunhou novamente espada e escudo, e afastou-se, abrindo caminho por entre os depredadores que já fervilhavam dentro do salão arrancando da parede as tapeçarias com gueixas desnudas.

 

Desceu com cuidado as escadas pegajosas de sangue, atravessou o saguão negro de fumaça, cruzou a ponte, chegou à avenida, sempre de espada erguida e bradando palavras de ordem, gritos de vingança, ordens-unidas dirigidas a todos e a ninguém. Um cavalo descansado o esperava num estábulo a cem metros dali e, depois de uma noite de viagem, esperavam-no uma recompensa principesca, a gratidão eterna de um soberano e uma semana de repouso em algum bordel de Nova Antióquia, porque ninguém é de ferro.

 








2 comentários:

Marcos de Farias disse...

Gostei da presença de Jean le Balladier. No mais, o texto se fez de impulso, não? Coisa de momento, ímpeto. Talvez mereça mais o texto; uma volta, um outro texto, quem sabe. Metalinguísticamente falando, é claro. Não senti firmeza. Me entende?

Anônimo disse...

Texto delicioso