Estava em polvorosa, naquele início do Mês dos Jasmins, o milenar Império da Lua Minguante. A derrubada da vetusta dinastia Pi Yang, no poder há mais de três séculos, produzira grandes abalos. No trono do poder assentara-se o usurpador Wong Ling, rodeado por sua corte de invejosos. A guilhotina imperial funcionava, ininterrupta como um tear, desde o primeiro cantar do galo. Os apaniguados do Usurpador espalhavam-se pelas províncias do reino, assumindo cartórios, ocupando fortalezas, assenhoreando-se das rédeas de comando até dos vilarejos mais remotos.
Ainda
assim, a Resistência prosperava, através de greves, motins eventuais,
quebra-quebras espontâneos, o que mantinha em ocupação constante os corpos de
Lanceiros de Frio Aço, executores da política imperial.
A
cem milhas da capital, perto da estrada que dava acesso a Nova Antióquia, o
idoso ex-imperador agora no exílio, Pi Yang Deng, reuniu-se certa noite com
seus conselheiros e assessores mais próximos. A fuga precipitada da capital em
chamas salvara suas vidas e seus bens infungíveis; mas agora era preciso fazer
uma avaliação precisa das perdas e danos. Alguns áulicos usaram da palavra,
queixando-se disto e daquilo, mas suas queixas empalideceram diante da
apreensão provocada pelo relatório do velho ministro Kung Sing Wu.
–
Estamos com uma espada pendente sobre nossas cabeças – advertiu o ministro, com
a gravidade que lhe era peculiar. – Nossa fuga precipitada, infelizmente, nos
obrigou a deixar para trás numerosos objetos de valor, posses pessoais, obras
de arte, relíquias de família. Mas dentre as mil coisas que não tivemos tempo
de resgatar do Palácio Imperial, há uma que constitui um tremendo perigo para
nossas vidas e para a perpetuação da dinastia. Lamento informar que no Salão
Turquesa da ala noroeste do palácio, dentro de um armário laqueado em jade e
trancado a sete chaves, ficou para trás o Cofre de Madrepérola, onde estão
preservados documentos secretos do governo e da vida pessoal de Vossa Majestade.
São documentos cujo teor, é claro, não devo enunciar aqui.
O
velho imperador ficou em silêncio durante vinte minutos, no que foi imitado
pela congregação.
–É
preciso recuperar o cofre o quanto antes – disse ele por fim. – Esses
documentos não podem cair nas mãos dos nossos inimigos. Como faremos?
O
velho Kung Sing Wu fez uma reverência.
–
Com a permissão da Vossa Majestade Imperial, já tomei providências, e contratei
um dos poucos indivíduos no mundo capazes de nos ajudar. Façam entrar o
estrangeiro!
As
portas se abriram e deram passagem a um homem meio gordo, bonachão, rosto
rosado, de longos cabelos e longos bigodes brisalhos, com um chapéu de plumas e
punhal à cinta.
–
Este é o menestrel ambulante Jean Le Balladier – disse o Ministro, enquanto o
estranho fazia uma mesura respeitosa e tomava assento à mesa. – Conhecido pelos
seus versos inspirados e pela sua habilidade com o alaúde, mas também um dos
homens capazes de entrar e sair de qualquer recinto sem deixar pistas, e capaz
de roubar um par de meias sem tocar nos sapatos da vítima. O Palácio Imperial
está cercado por tropas, e há guardas armados em todos os corredores. O Salão
Turquesa não tem janelas, tem apenas uma porta de entrada, e diante dela, pelo
que apurei, ficam homens armados, em turnos sucessivos. Já discuti o assunto
com o nosso convidado. Caberá a ele a tarefa de entrar sem ser visto,
apoderar-se do cofre sem ser molestado, e voltar para cá sem ser detido pelas
forças do Usurpador.
* * *
Dois
dias depois, a capital do império continuava em grande agitação, com multidões
em protestos pelas ruas, incêndios, tropel de guardas armados investindo contra
grupos de apedrejadores. Por volta do meio-dia, no Dia do Peixe-Espada, uma
multidão irresistível, açulada desde cedo por boatos e ameaças, dirigiu-se ao
Palácio Imperial, com archotes e ancinhos em punho. O Palácio, símbolo maior do
Império da Lua Minguante, havia sido respeitosamente poupado dos protestos, mas
agora os poucos guardas viram-se impotentes para deter o mar de gente que
afluiu pelas avenidas largas da capital, galgou a ponte levadiça, atravessou a
nado o fosso, arrebentou janelas e portas, invadiu com clamor e fumaça os
salões ricamente atapetados.
Os
guardas ofereceram resistência, mas foi debalde, porque a cada dez invasores
que caíam estripados outros vinte surgiam, desabafando enfim um ódio represado
há séculos. Subiram escadarias, despedaçaram vitrais, arremessaram no chão de
mármore as centenas de vasos Ming e de candelabros de cristal que adornavam os
salões e corredores. O clangor das espadas e os berros de fúria avançaram pelo
interior de todo o palácio, enquanto das janelas arrebentadas dos andares
superiores eram arremessados à rua móveis, armaduras e baixelas, para delírio
do populacho.
No
meio da batalha, um homem avançava com passo descansado, um pesado elmo
protegendo-lhe os longos cabelos grisalhos, enquanto se defendia de golpes
alheios com um escudo e uma espada de boa têmpera. Não se deteve um só momento,
logo chegou à escadaria principal da ala noroeste, sempre dando gritos de
incentivo para que portas fossem botadas abaixo, alfaias e pinturas fossem
saqueadas.
–
Levem tudo! – gritava ele numa e noutra direção, com forte sotaque, de tantos em tantos passos. – Isto
aqui pertence ao povo da Lua Minguante!
No
segundo andar do palácio, deteve-se diante de uma pesada porta, com a placa “Salão
Turquesa”, diante da qual meia dúzia de guardas jaziam degolados. Guardando a
espada, tirou de dentro do gibão um pé-de-cabra enorme, e com algum esforço
conseguiu enfiá-lo na fresta da porta, que daí a pouso se lascava, se rachava,
e era despedaçada para dentro aos pontapés. O Salão sem janelas era claustrofóbico
mas espaçoso, com mesas, cadeiras, espelhos, vasos históricos. Alguns
arruaceiros entraram ali atrás dele, que apontou com o dedo os objetos de
decoração:
–
Levem tudo!
Dirigiu-se sem hesitação para um armário laqueado em jade, e dentro de poucos minutos, usando alternadamente a espada e o pé-de-cabra, conseguiu fender-lhe a porta metálica e arrancá-la dos gonzos. Uma segunda porta interna, de madeira de lei, teve o mesmo destino, e ali ele avistou um cofre retangular de madrepérola conforme a descrição. Encostando a um lado os instrumentos, desamarrou da cintura um saco de lona resistente, coloc
ou dentro dele o cofre, amarrou com
força os cordões da boca do saco e depois amarrou-os à própria cintura com nó
triplo. Guardou o pé-de-cabra, empunhou novamente espada e escudo, e
afastou-se, abrindo caminho por entre os depredadores que já fervilhavam dentro
do salão arrancando da parede as tapeçarias com gueixas desnudas.
Desceu
com cuidado as escadas pegajosas de sangue, atravessou o saguão negro de fumaça,
cruzou a ponte, chegou à avenida, sempre de espada erguida e bradando palavras
de ordem, gritos de vingança, ordens-unidas dirigidas a todos e a ninguém. Um
cavalo descansado o esperava num estábulo a cem metros dali e, depois de uma
noite de viagem, esperavam-no uma recompensa principesca, a gratidão eterna de
um soberano e uma semana de repouso em algum bordel de Nova Antióquia, porque
ninguém é de ferro.
2 comentários:
Gostei da presença de Jean le Balladier. No mais, o texto se fez de impulso, não? Coisa de momento, ímpeto. Talvez mereça mais o texto; uma volta, um outro texto, quem sabe. Metalinguísticamente falando, é claro. Não senti firmeza. Me entende?
Texto delicioso
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