Existem vários filmes norte-americanos abordando a vida e o meio social dos escritores de pulp fiction, das histórias populares vendidas por um vintém nas bancas. São raros, no entanto, os filmes que mostram esse ambiente em outros países.
Paul Batala, interpretado pelo excelente Jules Berry, é um
sujeito melífluo, exuberante, com um sorriso maligno pregado no rosto, cheio de
argumentos, cheio de recursos. Mulherengo, dá em cima de todas as funcionárias
da editora e da lavanderia que ocupa o mesmo prédio; é aquele canastrão
grisalho, cheio de auto-estima, predador de gente indefesa, uma espécie de
Michel Temer com o dom da simpatia.
A trama, escrita por Jacques Prévert (um dos grandes
poetas franceses de sua época) é leve, de um realismo que se satisfaz com uma
coerência de superfície. Jean Renoir era um cineasta daquela linha humanista do
cinema francês, um cinema focado em problemas humanos e sociais, sem grandes
aprofundamentos psicológicos, sem grandes abismos intimistas (como os que
existem em Bergman ou Antonioni).
Tinha um olho esperto para o modo como os papéis sociais
condicionam as ações das pessoas, de modo que em muitos dos roteiros que filmou
a gente vê aquela imprevisibilidade que vem da literatura realista – pensa-se
que o personagem vai agir em função do seu “papel social” e ele tem uma atitude
independente; ou vice-versa.
O Crime de Monsieur
Lange é um daqueles típicos filmes franceses dos anos 1930, com personagens
“populares”, um tanto rústicos, um tanto espertos, meio ingênuos em termos
sentimentais mas nada bobos na vida prática; meio bonachões, meio explosivos,
esforçados, determinados, avançando aos tropeções por entre uma sociedade que
só valoriza o que eles não têm: dinheiro, sobrenome, sofisticação intelectual.
Nesse cinema “humanista”, a câmera de Renoir é um
personagem a mais, que se move de maneira tão discreta que não percebemos; acompanha
um personagem ou outro, recua para dar espaço a mais gente, afasta-se de lado
para revelar um detalhe, percorre o ambiente como se fosse um casal a mais
evoluindo num salão de baile, sem esbarrar em ninguém.
Este filme tem uma panorâmica famosa, justamente na cena
do crime, que ocorre no pátio interno de um desses prédios franceses por onde
se entra através de um corredor largo que dá acesso a um pátio ao ar livre, ainda
mais largo, de onde se olha para cima e dali se veem as janelas dos
apartamentos.
Na hora do crime, um homem está nesse pátio assediando
uma mulher. A câmera os deixa ali e sobe num plano-sequência até o segundo
andar, para mostrar através da janela outro homem que sai de uma sala, passa
por dentro de outras (sendo mostrado de janela em janela pela câmera que se
move na horizontal), desce a escada por dentro do prédio (e a câmera começa a
abaixar, do lado de fora). Ele sai pela porta e se encaminha para a direita,
onde está o casal; a câmera surpreendentemente vira para a esquerda e descreve
um giro quase de círculo completo que se fecha no instante em que ele aborda,
de arma em punho, o casal que briga.
(diagrama do movimento da câmera)
A cena me trouxe à memória um uso de espaço bem parecido,
na última sequência de O Inquilino (1976)
de Roman Polanski, que acontece num pátio exatamente igual; dá a impressão até
de ser o mesmo prédio. (Não é; Paris é cheia de prédios assim.) No filme de
Polanski, o personagem sobe na janela, ameaçando suicidar-se, e a câmera, mais
solta até do que a de Renoir, percorre as janelas, as varandas, os telhadinhos
intermediários, onde os vizinhos dele o aplaudem e o encorajam no tradicional
“pula, pula!”.
Quase todo o filme de Renoir acontece nesse pátio (o
título inicial era Sur la Cour, “No
Pátio”), pois é um prédio onde funciona a gráfica-editora de Monsieur Batala, uma lavanderia que
fornece o contingente feminino (a lourinha Florelle, que faz Valentine Cardès,
é de uma vivacidade comovente), e tem alguns moradores envolvidos na trama.
O filme é muito citado nas histórias do cinema por ter sido
produzido num esforço conjunto de entidades culturais de esquerda ligadas à
Frente Popular. Ao contrário do que seria de se esperar, não tem nenhum comício
ideológico, é uma história de gente. O único aspecto político, aliás bem
resolvido, é que, quando Monsieur
Batala desaparece com a grana da editora e é dado como morto, os trabalhadores
se organizam em cooperativa, redobram os esforços, e contam com o valoroso
“Arizona Jim” para criar um sucesso editorial sem precedentes.
A pulp fiction
é, como dizia Thomas M. Disch revertendo a frase de Shakespeare, “o sonho de
que é feito o nosso material”.
https://www.youtube.com/watch?v=MChmwrywBZ8&list=PL21YzF6vbkq_rO0IlSyV5J1drksZSD8Fp&index=7&ab_channel=ArrowAcademy
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