Uma leitura que tem me consolado a vida (durante esta
prisão perpétua da qual não imagino mais sair) é a do livro de entrevistas de
Peter Bogdanovich com diretores de Hollywood da velha geração, os mestres dele:
Afinal, Quem Faz os Filmes (Companhia
das Letras, 2000). Tenho a
edição original (Who the Devil Made It,
New York: Alfred A. Knopf, 1997).
https://www.estantevirtual.com.br/camposbooks/peter-bogdanovich-afinal-quem-faz-os-filmes-2166275464
Comprei o livro, anos atrás, porque Bogdanovich (que
dirigiu alguns bons filmes) é mais que um cineasta, é um cinéfilo. É um desses caras
capazes de ver 3 ou 4 filmes obscuros por dia, durante anos a fio.
No livro, ele conta que quando esteve em Berlim com a
esposa, foi ao Museu local, explicou que era cineasta nos EUA, e pediu para ver
filmes antigos de Josef von Sternberg. Eram filmes em mau estado, de acesso
restrito. Eles viram nove filmes seguidos, entrando pela noite. A mulher dele,
coitada, era Cybil Shepherd, que ele havia revelado em A Última Sessão de Cinema (1971).
Bogdanovich apareceu recentemente no filme “recuperado”
de Orson Welles, The Other Side of the Wind,
ao lado do cineasta John Huston, que faz um “alter ego” do diretor.
(John Huston, Orson Welles e Bogdanovich)
No livro, ele entrevista alguns dos meus diretores
preferidos: Alfred Hitchcock, Fritz Lang, Howard Hawks, Don Siegel, Sidney
Lumet. São entrevistas longas, de 30 ou 40 páginas. E tem mais alguns cineastas
que também curto, como Frank Tashlin (que dirigiu algumas das melhores comédias
de Jerry Lewis), Robert Aldrich (de Morte
Sem Glória, O Que Teria Acontecido a
Baby Jane, Os Doze Condenados),
etc.
Na época, li alguns capítulos que quis ler, consultei o
que me interessava, e aposentei o livro na estante, deixei-o lá jogando dominó
com os outros na pracinha. São 850 páginas. Chega.
Agora, por conta de uma pesquisa pessoal sobre filme
policial noir, tive que pegá-lo
novamente para saber alguma coisa sobre dois diretores a que jamais dei
atenção: Edgar G. Ulmer e Joseph H. Lewis. E descobri uma coisa interessante.
As entrevistas deles são mil vezes melhores do que as de Hitchcock ou Lang.
Bogdanovich entrevistou Hitchcock, por exemplo, em 1961,
1963, 1966 e 1972. Muitas das respostas do diretor são um Ctrl+C Ctrl+V das
respostas que ele deu a François Truffaut em agosto de 1962, para o clássico O Cinema segundo Hitchcock (Paris:
Robert Laffont: 1966). Claro. O sujeito é um sexagenário, já deu milhares de entrevistas,
já ouviu a mesma pergunta um milhão de vezes. Vai responder o quê?
Todos eles tratam Bogdanovich com deferência, atenção, urbanidade
(menos Josef von Sternberg, um “Seu Lunga” cuja entrevista não chega a 3
páginas). Reconhecem nele não um crítico pronto para botar defeito em algo, mas
um cinéfilo bem preparado, ansioso para se inteirar sobre detalhes não
percebidos, comentar cenas a que ninguém deu atenção, pedir explicações sobre
um diálogo, um corte, um movimento de câmara – perguntas que extraem aquela
reação que marca as grandes entrevistas: “Foi bom você tocar nesse detalhe,
porque é importantíssimo, e até hoje ninguém tinha prestado atenção nisso...”
Para isto servem os cinéfilos, principalmente aqueles
que, em vez de quererem apenas mostrar conhecimento diante do entrevistado
famoso (todos nós já fomos jovens e já fizemos isto) trazem perguntas reais e
novas, em vez dos clichês de sempre.
Bogdanovich tem a preocupação constante de reconstituir e
documentar uma época, um momento da produção dos filmes norte-americanos
durante o século 20, quando a Hollywood dos grandes estúdios produziu um milhão
de porcarias e algumas centenas de filmes onde alguma coisa acontece de
verdade.
Cada uma das 800+ páginas do livro tem pepitas
interessantes.
Hitchcock (sobre
Downhill, filme de 1927):
Lembro-me de uma cena deste filme que rodamos no metrô de Londres. Só
podíamos filmar depois da meia-noite, após a passagem do último trem, de modo
que primeiro fomos ao teatro – e naquele tempo ia-se a uma estréia no teatro
todo mundo vestido a rigor. Depois da peça, fomos filmar, e eu de gravata
branca e cartola. Foi o momento de direção mais elegante de minha carreira.
Otto Preminger:
Tudo que vejo pode me influenciar. Quando a Nouvelle Vague começou,
eles cortaram todos os efeitos ópticos, as fusões, os fade-outs, não por
experimentalismo, mas porque não tinham dinheiro. Quando vi os filmes deles,
decidi que fusões retardam o ritmo do filme, a não ser que sejam usadas com
muito critério e não automaticamente (só para indicar passagem de tempo). E nos
meus filmes seguintes parei de usá-las.
Edgar G. Ulmer (sobre
dirigir faroestes no cinema mudo):
Era muito divertido. Havia duas ruas de “cidadezinha do Oeste”. Na
parte de cima de uma delas, William Wyler filmava; e eu ao mesmo tempo, na
parte de baixo. Quando Willy precisava dos cavalos e dos cowboys, eu fazia os
close-ups do meu filme. Quando acabavam meus close-ups eu pedia os cavalos de
volta. Cada um de nós dirigiu 24 filmes por ano. O cronograma era: segunda e
terça, escrever o roteiro e fazer pré-produção; quarta e quinta, rodar; sexta,
montar; e no sábado ia todo mundo para os cassinos de Tijuana, jogar com o
produtor Carl Laemmle.
(Lang dirigindo Metropolis)
Fritz Lang
(sobre alívio cômico):
Veja o caso de Shakespeare. Depois de uma cena muito forte, ele bota toda
vez uma cena cômica. Eu tinha uma edição bem antiga do Otelo onde depois
de uma cena forte aparecia a rubrica: “Entra o Urso”. Que diabo era isso?
Finalmente alguém me explicou. Isso era uma sobra de uma edição muito mais
antiga. Naquele momento da peça Shakespeare sentia que a audiência precisava de
algo mais leve, então entrava um urso, com o domador e provavelmente alguns
músicos tocando. Faziam umas brincadeiras e assim descarregavam a tensão, para
que o processo todo pudesse recomeçar. Ele não podia começar a criar tensão na
primeira linha e depois subir sem parar. Poder, pode; mas a platéia aguenta?
(Allan Dwan, de boné)
Allan Dwan (em
1969, sobre o futuro do cinema e da TV):
Eu gosto da TV, e ela pode ser boa, se pudermos nos livrar dos
executivos de Madison Avenue. Porque eu acredito que a TV é um teatro tão bom
quanto qualquer outro, se você projetar as coisas para ela, ficar dentro dos
limites dela. É a TV paga que vai tomar conta um dia. Quando
acontecer, as melhores produções do mundo vão ser feitas para esse tipo de
tela. E vão ser melhores do que qualquer coisa que foi feita para o cinema,
porque pode-se investir mais dinheiro nela – vai ter mais dinheiro entrando.
Howard Hawks
(sobre linguagem):
A melhor coisa é você contar a história como se a estivesse vendo.
Deixe o espectador ver exatamente o que veria se estivesse naquele local. Conte
normalmente. Na maior parte do tempo, minha câmera fica ao nível dos olhos. De vez
em quando eu a movimento, como se alguém estivesse andando e visse algo. E eu
recuo, ou avanço, para dar ênfase, quando não quero cortar o plano. Mas afora
isso, uso a câmara mais simples do mundo.
Leo McCarey
(sobre trabalhar com Duke Ellington):
Como eu também sou músico, o que mais me entusiasmou foi trabalhar com
Duke Ellington [em Belle of the Nineties]. Eu o mantive no estúdio duas semanas a mais do previsto, e um dia o chefe de produção foi lá para ver
o que estava acontecendo. Eu estava tocando piano e a orquestra inteira, regida
por Ellington, estava me acompanhando. O cara começou a berrar: “Ellington,
encerra tudo esta noite!” Quando ele deu esse prazo era meio-dia, e ainda
faltava orquestrar um número musical completo. Ellington ficou de pé, parou na
frente da orquestra e começou a solfejar as partes de cada naipe de
instrumentos, de cada secção. E com poucas interrupções, em poucas horas ele
fez o arranjo completo. Às seis da tarde, Mae West estava gravando o número. Só
fez isso porque todos os músicos eram muito talentosos: ele conseguiu gravar
esse arranjo sem escrever uma nota sequer.
4 comentários:
Sou fã de Edgar G. Ulmer. Tenho o DVD de Curva do Destino, lançado pela Video Filmes que contem nos extras um documentário sobre ele, inclusive com depoimentos de Peter Bogdanovich.
Felipp, esse filme deve ser "Detour", não é isso? Vi no YouTube, um thriller muito bom. Não sabia que tinha em DVD.
Sim, é Detour. Foi lançado em DVD pela Video Filmes, pela Aurora e também no box Filme Noir vol. 13 da Versátil Home Video. As edições da Video Filmes e da Aurora estão fora de catálogo. Talvez sejam encontrados no Mercado Livre.
Baita resenha, saborosa, e que atiça a vontade mergulhar fundo nesses bastidores.
Sem sua dica da EV, ñ teria conseguido reencontrar esse livraço. Agradecido.
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