A série de televisão espanhola El Ministério del Tiempo, disponível no Netflix, é uma variação
interessante da idéia genérica de uma espécie de polícia ou comando
transtemporal, desde as variadas “patrulhas do tempo” da pulp fiction até a Intempol
brasileira, uma criação de Octavio Aragão com numerosos e engenhosos
desdobramentos.
Sem falar nos vigilantes do Tempo de narrativas como O Fim da Eternidade de Isaac Asimov, que
voltam séculos no “elevador temporal” para afastar um objeto meio metro da
posição em que estava, e fazer com que a História sucedesse assim, e não
assado.
Cito esses exemplos literários porque é com eles que El Ministério del Tiempo é aparentada, e
não com o seriado Túnel do Tempo, um
dos clássicos da TV norte-americana de nossa meninice. No Túnel, os cientistas estão ricocheteando aleatoriamente por entre
os séculos. No Ministerio, (quase)
tudo está sob controle, e eles cruzam a porta que bem escolhem para cumprir uma
missão definida com clareza.
A série tem vários pontos interessantes, porque suas
idéias de paradoxo temporal, por exemplo, são propostas e resolvidas sem forçar
a barra, mas com certa simplicidade. Os
autores querem usar as convenções do gênero para contar suas histórias. Não há
muita preocupação em fazer upgrade das convenções.
Uma boa porta de entrada para entender a série é sua
frase de divulgação, que diz algo como: “Todos os Governos têm segredos. O
governo da Espanha só tem um. Mas é dos grandes.”
A Espanha não tem toda a parafernália tecnológica ou científica
da América? Basta-lhe ter um gimmick de
bom tamanho: a espiral de corredores subterrâneos que guardam as Portas do
Tempo, algo muito natural numa cultura milenar de cabalistas, alquimistas, um plausível
universo detentor de sabedorias ocultas e milenares.
Basta isso. E a noção bastante cômoda de que há milhares
de portas levando ao passado, às vezes ao dia exato do fato que se deseja
modificar (ou proteger), outras vezes a uma distância suficiente para gerar protelações,
atrasos, suspense.
Em termos de efeitos especiais hightech, a série tem muito poucos, e suas qualidades de produção
se dão na reconstituição de fases históricas onde caem nossos paraquedistas
vestidos de camponeses ou de fidalgos e com celular no bolso. Ou seja, como
ambientação visual está mais para o gênero histórico do que para a FC hard.
Há um momento tocante em que um viajante no Tempo diz a
outro: “Eu vi a Invencível Armada, agora pode se acabar todo o resto”. Os
emissários temporais cruzam com escritores, inquisidores, cavaleiros,
peralvilhos, religiosos, militares, artistas: o Passado inteiro da Espanha. Ou
melhor: uma versão oficial desse passado, pela qual eles precisam zelar.
A televisão e o cinema sempre usaram fartamente aquele
recurso que Lincoln Cunha chamava “as duplas dialéticas”, dois temperamentos
opostos e complementares em perpétuo atrito e gravitação mútua. Holmes e
Watson, Quixote e Sancho, Billy e Wyatt de Easy
Rider, Ratso e Joe Buck de Midnight
Cowboy.
Parece que agora estão emergindo as tríades. Os
roteiristas resolveram encarar de frente o Problema Dramatúrgico dos Três
Corpos.
A tríade da série espanhola é composta por Julián, um paramédico
da Madrid de hoje; Amélia, uma estudante brilhante de Barcelona no século 19; e
o soldado Alonso, espadachim calejado do século 16. Por um lado ele é a reserva
duelística do grupo, pois luta com eficiência e honra; e funciona também como
foco mais divertido dos mal-entendidos e dos anacronismos.
A série tem perseguições, fugas, lutas de vida ou morte,
mas em momento algum acreditamos que algum daqueles personagens periga morrer. As
Leis de George R. R. Martin dificilmente serão votadas naquele universo. Isso
não impede que eles sejam vulneráveis em outros aspectos, e se tornem menos
previsíveis.
A verdade é que se alguém tiver acesso ao próprio passado
vai querer remexer, sim, ninguém resiste. Aí estão milhões de páginas de FC
para comprovar.
A certa altura um personagem diz: “Bela profissão esta
nossa. Vivemos arriscando a vida e viajando ao passado para impedir que um
famosão qualquer morra. E as pessoas da família da gente a gente tem que deixar
morrer, não pode nem levar um antibiótico para quem está na Idade Média.”
É a preocupação da jovem historiadora de Connie Willis em
O Livro do Juízo Final (Suma de
Letras, 2017). Caída de paraquedas no ano da Peste Negra, ela, mesmo vacinada,
percebe que talvez não possa salvar as pessoas de quem ficou amiga.
Como a maioria das séries norte-americanas de
antigamente, nesta série espanhola há uma leveza, uma paz confortável, uma
disposição lúdica nas aventuras dos viajantes. Há bastante humor nos diálogos,
geralmente dando alfinetadas na Espanha de hoje.
Há um capítulo centrado no trio Garcia Lorca, Salvador
Dalí e Luís Buñuel, com atores bastante verossímeis. Pensando no Buñuel deles
me lembrei do Paris à Meia Noite de
Woody Allen, onde aparecem todos aqueles artistas dessa geração. El Ministério del Tiempo tem um pouco
desse filme no desfilar contínuo de personagens históricos, cercados de
piscadelas e piadas em privado.
Diz-se que no seu auge o Arquivo X tinha uma fórmula de episódio chamada “O Monstro da
Semana”. Toda semana surgia uma ameaça bizarra e insólita em Nebraska ou no
Oregon, eles resolviam tudo naquele episódio. A série espanhola teria “O
Ilustre da Semana”. Há episódios centrados em Lope de Vega, em Picasso, em
Lazarillo de Tormes, em El Cid, e assim por diante.
Eu estava lendo num texto sobre Ingmar Bergman os
comentários dele sobre seu filme Morangos
Silvestres (1957). Bergman diz que visitando a casa de sua avó imaginou
como seria, se ele pudesse empurrar aquela porta e ver a si mesmo na infância.
– Ocorreu-me que podia fazer um filme sobre isso: que você vem
caminhando, num contexto totalmente realista, abre uma porta, e então você dá
um passo e entra em sua própria infância, e ao abrir outra porta você está de
volta à realidade.
Essa mesma mecânica simples (sem recorrer a complicações
da Física) está à disposição dos agentes do Ministério. São centenas de portas,
e toda vez eles precisam recorrer ao Manual para se certificar de que a melhor
maneira de chegar a janeiro de 1587, por exemplo, é passando pela porta 614. As
possibilidades, como sempre, são infinitas.
2 comentários:
Muito interessante o artigo, aproveitei a dica e comprei o livro de Connie Willis, ainda mais porque a tradução é de Braulio Tavares!
Sobe viagem no tempo, indico fortemente o filme independente Primer.
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