quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

4319) Não se recusa um leitor (28.2.2018)




(ilustração: Jacek Yerka)


Quem tem poucos leitores sabe dar valor a cada um deles. É uma coisa típica de começo da carreira literária. Você entra numa festa, ou num restaurante, vê um casal almoçando e pensa: “Ah, lá está aquele casal que leu meu livro!”.

Ou a velhíssima brincadeira que todo escritor já fez. O leitor se aproxima, cordial: “Olhe, eu comprei o seu livro...” E o autor: “Arrá!... Foi você, então!”

Um Karl Ove Knausgaard ou uma Elena Ferrante, que são lidos por milhões, poderiam esnobar essas pequenas alegrias. Quem tem poucos leitores, porém, acaba vendo cada um deles de maneira personalizada.

Um leitor é tão precioso como um eleitor. Se alguém chega a ter milhões é também porque soube, quando tinha apenas algumas dezenas, dar a eles um momento de atenção para um autógrafo, uma troca de idéias, uma foto, um cumprimento, um sorriso, um reconhecimento... Nada deixa um leitor mais exultante do que encontrar no aeroporto com seu ídolo, cumprimentá-lo discretamente, e ouvi-lo retribuir: “Ah, você é o Braulio. Como anda a Paraíba?”. Ser reconhecido não tem preço.

Tem uma história ótima de Vinicius de Moraes, quando ele soube que Pablo Neruda, nos idos dos anos 1950, estava de visita ao Rio de Janeiro, sendo recebido pelos literatos locais. Quando Vinicius soube, saiu esbaforido ao calçadão da praia, e não demorou a localizar o grupo de escritores que se aproximava, com Neruda ao centro. Quando o chileno o avistou de longe, abriu os braços e exclamou: “Vinicius de Moraes!...”  Vinicius foi na direção dele e disse: “Eu ia beijar suas mãos, mas como você me reconheceu eu vou beijar é seus pés!...”  E assim o fez.

Leitor de verdade é isso, e feliz do autor que sabe cultivá-los.

Político não é muito diferente, e grande parte do sucesso de algumas velhas raposas que tomam conta do Galinheiro Brasil se deve a sua memória fotográfica, capaz de produzir afagos desse tipo em milhões de egos que, com a auto estima em alta, viram infatigáveis cabos eleitorais do figurão que se lembrou deles.

Um autor pode, deve recusar um leitor? Eu acho que não. Quem começa a fazer um certo sucesso de vendas assume às vezes posições meio provocativas. “Se é para me fazer esse tipo de crítica, prefiro que não leiam meus livros,” diz o best-seller no talk-show. “Só quero ser lido por quem é capaz de me entender,” diz o vanguardista na mesa-redonda para dez gatos pingados. “Não escrevo para a elite!”, brada o contestador em tempo integral.

Tudo muito compreensível, mas não resulta em nada. Quanto mais desautorizados pelo autor, mais esses leitores o lerão, até mesmo para provocá-lo à revelia.

Já vi autores ironizarem o que chamam de “leitor coluna-social”, o que desdenha o livro mas quer o autógrafo do famoso. Vai cheio de pompa ao lançamento, produz uma cena de ruidosa afabilidade, faz-se fotografar, dita a dedicatória e sai para o próximo compromisso, levando embaixo do braço o livro que não lerá.

Tem o leitor pentelho, aquele que lê em busca de defeitos para esfregar na cara do autor. Não deve ser confundido com o leitor cuidadoso, que frui o livro, mas observa um errinho aqui ou ali, e sem muito alarde diz ao autor: “Olha, vi uma coisa na página tal que me pareceu errada.” O leitor pentelho é capaz de escrever um livro só para alardear aos quatro ventos que Fulano de Tal se enganou, que cometeu erros de continuidade, que pôs uma data impossível...

Devemos recusá-lo por isso? Nunca. Se os erros que descobre são erros, de fato, ele acaba prestando um serviço ao autor – caso o autor não seja também um Poço de Ego que não admite restrições ao que escreve. Nem todo advogado-do-diabo tem a delicadeza do leitor remoto de Eça de Queiroz que, após ler A Relíquia,  escreveu ao mestre no mais respeitoso tom, para avisá-lo de que ele se referira à lua como “o alfanje que decepou a cabeça de Yokanaan”, num capítulo, e logo adiante, ao narrar a noite seguinte, a descrevia como lua cheia.










segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

4318) Mário de Andrade e o fim da geografia (26.2.2018)



Em seu prefácio ao Macunaíma (1928), e depois nos manuscritos do relato de viagem O Turista Aprendiz (concluído em 1943, publicado em 1976), Mário de Andrade usou algumas vezes o termo “desgeograficar” para descrever o seu  método criativo pouco ortodoxo.

Inspirando-se nas pesquisas de Koch-Grunberg e outros, ele se muniu de uma extensa documentação sobre mitos amazônicos (bem como de outras regiões), e passou tudo no liquidificador.

No chamado “2º. Prefácio” de Macunaíma, ele diz:

“[O livro] Possui aceitação sem timidez nem vanglória da entidade nacional e a concebe tão permanente e unida que o país aparece desgeograficado no clima na flora na fauna no homem na lenda na tradição histórica até quanto isso possa divertir ou concluir um dado sem repugnar pelo absurdo. Falar em ‘pagos’ e ‘querências’ em relação às terras do Uraricoera é bom”

Como se vê, Mário queria pegar esse material etnográfico bruto e puxá-lo todo de uma vez para um nível mais alto, mais abstrato, mais apenas-literário. “Abstrato” no sentido de não estar mais com raízes fincadas numa realidade regional obrigatória – daí sua sugestão se usar o vocabulário gaúcho (“pagos”, “querências”) para falar do mundo amazônico.

Por um lado, ele queria (imagino) se permitir uma certa liberdade criativa no aspecto literário, sem que lhe aparecesse à porta um antropólogo de plantão, de caderneta em punho, tocando na campainha e avisando que a palavra tal era desconhecida dos tupiniquins e usada apenas pelos tupinambás.

Mário tinha espírito científico suficiente para saber com clareza em que instâncias este espírito deve se impor, e em que instâncias ele é um desnecessário freio-de-mão-puxado, travando a imaginação narrativa, fabulatória. Deixar de contar uma história boa porque algum ponto necessário a ela contradiz um dado da ciência é um erro gratuito. Se tem alguma Musa ou Deusa que conhece o seu lugar, é a Ciência. Ela sobrevive. (Isto vale para a ficção científica também. É a ficção que dá a última palavra.)

Mário deixa isso bem claro numa nota de 1926 ao primeiro prefácio (estou citando a reedição anotada e comentada de O Turista Aprendiz, Brasília, Iphan, 2015):

“(Um dos meus interesses foi desrespeitar lendariamente a geografia e a fauna e flora geográficas. Assim desregionalizava o mais possível a criação ao mesmo tempo que conseguia o mérito de conceber literariamente o Brasil como entidade homogênea – um conceito étnico nacional e geográfico.)”

Desgeograficar na prática corresponde a uma tentativa (acho eu) de desregionalizar na literatura, porque já naquela época era forte o viés “regionalista” em nossa ficção, preparando a explosão dos grandes romances da década seguinte: Rachel de Queiroz, Graciliano, José Lins, etc.

Era muito enxerimento de Mário querer “conceber literariamente o Brasil como entidade homogênea”, mas era exatamente isso que se fazia necessário, por equilíbrio – em paralelo ao trabalho dos escritores da outra tendência, os regionalistas de precisão etnográfica, precisos no uso de cada termo ou na descrição de cada plantinha, peça de roupa, geringonça de trabalho.

O “homogeneizar” de Mário não era transformar tudo em cópia idêntica disso ou daquilo, mas remover as barreiras da alfândega cultural segundo a qual só os nordestinos deviam falar do Nordeste, só os mineiros de Minas, os baianos da Bahia. Tornar toda a cultura brasileira um banco-de-dados com livre acesso aos brasileiros.

Por isso mesmo que um dos maiores poemas amazônicos, Cobra Norato (1931), foi escrito pelo gaúcho Raul Bopp.

É curioso comparar essa idéia-projeto de Mário com a expressão do cyberpunk William Gibson ao dizer que certas corporações de hoje não são mais propriamente “multinacionais” e sim “pós-geográficas”. É um movimento parecido de anular a geografia, mas no sentido inverso, de cima para baixo, do macro para o micro, do universo das grandes invasões uniformizadoras, para quem as fronteiras nacionais, os idiomas, as culturas, são problemas de discrepância que precisam ser resolvidos como alguma espécie de Raio Homogeneizador.

Mário queria o contrário disso. Queria exaltar o único, o diferente, o individual, todas as faunas e floras, todas as lendas e parlendas, para que se tornassem moedas com valor de troca para além da sua tribo de origem.

Pensava ele (penso eu) na necessidade de despregar essas obras tipo Macunaíma da obrigação servil de funcionar como mera ilustração da realidade e ganhar autonomia literária. Pode parecer que não, mas sempre foi e ainda é grande a vigilância etnográfica em nossa literatura, uma ansiedade ou angústia que é uma doença infantil do Realismo literário.

Realismo é a ilusão de que a literatura é capaz de reproduzir a Realidade, e é consequência da ilusão renascentista-vitoriana de que podemos um dia saber o que é a Realidade.

Por outro lado, Mário não estava querendo, a julgar por suas explicações, que a literatura virasse um samba do crioulo doido, virasse uma cantoria de Zé Limeira. Ele ressalva: “até quanto isso possa divertir ou concluir um dado sem repugnar pelo absurdo”.

Isso sem dúvida é uma opção estética das mais problemáticas, porque não serão poucos os casos em que um leitor desavisado como eu irá basear uma argumentação em algo que leu num romance e supôs com ingenuidade que era um dado factual indiscutível. “—Mas é claro que os amazonenses chamam seus territórios afetivos de querências!... Está lá no livro de Mário!...”

Paciência. Essa atitude dele me parece aquele impulso eterno da literatura para se despregar do meramente factual e ir ao cerne fabulatório das histórias a serem contadas, contadas à revelia dos fatos e lugares onde tiveram origem.

Num poema de A Volta ao Dia em 80 Mundos, Cortázar diz num poema dedicado a Borges que ele falava em Babilônia e pouca gente entendeu que ele se referia ao Rio da Prata.

Bertolt Brecht desgeograficava a Alemanha que queria criticar, transformando-a em Manhattan, China, Londres, Cáucaso. Era uma maneira de dizer: “Esqueçam a geografia. Esta estória é sobre a História”.








sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

4317) "Wormwood": os crimes da C.I.A. (23.02.2018)




Uma das estréias recentes do Netflix é a série Wormwood, dirigida por Errol Morris, em forma de docudrama (documentário com alguns trechos encenados por atores). Vi os seis episódios ao longo de três dias, sinal de que gostei.

A série investiga a morte de Frank Olson, um cientista empregado pelo exército americano e depois pela CIA, que caiu de uma janela no décimo andar de um hotel de Manhattan, em 1953. Na época, o veredito foi de “acidente”, com a ressalva de que Olson “caiu ou pulou” da janela. A família recebeu um caixão selado que não teve permissão de abrir, sob a alegação de que o corpo estava muito mutilado.

Olson trabalhava em pesquisas bacteriológicas, e a Guerra da Coréia estava no auge. A paranóia da Guerra Fria pairava no ar. A família enterrou o morto e não fez perguntas.

Em 1975, uma matéria do jornalista Seymour Hersh revelou que na verdade Frank Olson tinha sido vítima de um projeto secreto da CIA que consistia em administrar LSD a pessoas, sem o conhecimento delas, para avaliar suas reações e saber se poderiam se transformar em eventuais delatores, se presos pelos comunistas.

Frank Olson tomou o LSD, entrou numa bad trip, foi levado às pressas para New York para consulta com um médico ligado à CIA. Dez dias depois de tomar a droga, pulou da janela do hotel.

O docudrama de Errol Morris reconstitui estes dez últimos dias e tem como fio condutor a investigação que o filho mais velho de Frank, Eric Olson, conduziu durante mais de 60 anos tentando entender o que tinha acontecido com seu pai.

Eric Olson acabou descobrindo que não se tratou apenas de uma experiência da CIA que não deu certo. Seu pai não se suicidou por causa de uma bad trip. Na verdade, ele foi assassinado, porque já vinha há algum tempo questionando os seus superiores sobre a utilização bélica das pesquisas bacteriológicas que fazia nas instalações de Camp Detrick (Maryland).

A exumação do corpo de Olson, em 1994, desmentiu as versões de suicídio. Como nos filmes baseados em Agatha Christie, Errol Morris encena, com ambientação de 1953, as várias versões da queda de Olson, além de seus trajetos durante aqueles dias em Nova York.

Perguntado pelo crítico Roger Ebert qual era a diferença entre documentário e docudrama, Morris respondeu: “Dois zeros”. Ou seja, para encenar aqueles trechos com atores os custos do filme (cenografia de época, figurinos, etc.) são multiplicados por 100. Vale a pena? A questão permanece em aberto.

Uma das referências alegóricas do documentário é a história de Hamlet, outro rapaz atormentado que quer saber a verdade sobre a morte do pai; cenas da adaptação de Laurence Olivier (1948) são usadas com frequência.

O diretor conta com um trunfo importante, o fato de haver um material de arquivo muito farto: filminhos 8mm de Olson brincando com os filhos, e depois os filhos já adultos, em plena investigação, acompanhados o tempo inteiro por câmeras de TV e cinema. Isso lhe permite montar o filme como se tivesse “filmado o passado” e dar uma certa continuidade ao material.

Eric Olson cresceu investigando a morte do pai, tornou-se psicólogo e criou um método particular de uso da colagem de fotos para provocar descobertas subjetivas. O diretor Morris se apropria desse método do seu entrevistado e transforma o filme (a série) numa colagem com tela múltipla, uso simultâneo de muitas câmeras, superposição de fotos e textos, etc.

Wormwood é a estrela Absinto citada no Apocalipse, a que torna amargas as águas após o toque da trombeta do anjo.

A série de Errol Morris é um complemento para aqueles romances de John Le Carré, Graham Greene, Eric Ambler e tantos outros autores de livros de espionagem. Obras cuja leitura sucessiva pode nos conduzir à depressão, porque a atividade da espionagem (“Inteligência”, “Contra-Inteligência”, “Segurança Nacional”, “Serviços de Informação”, "Departamentos de Ordem Política e Social" e congêneres) é uma sabotagem sistemática do conceito de verdade. É um mundo onde todos mentem, todos escondem, um mundo que nos tira a ilusão de que é possível conhecer a verdade sobre um fato qualquer.

O nome “Kafka” está conspicuamente ausente da série, embora seja uma referência inevitável. Eric Olson é um Joseph K. atormentado por um mistério e na tentativa de esclarecê-lo vai se deparando com mistérios cada vez maiores e mais tenebrosos. Como aqueles arqueólogos em busca de Tróia, descobrindo uma série de “cidades soterradas”, uma por baixo da outra.

Chega um momento em que o investigador percebe que cada verdade descoberta é mais dolorosa e mais deprimente do que a anterior; e ele resolve simplesmente parar de cavar.







terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

4316) "Notícias em três linhas" (20.2.2018)



De vez em quando um leitor deste blog se queixa de que eu costumo comentar “livros obscuros, não traduzidos no Brasil, de autores que ninguém nunca ouviu falar”. Verdade. Para os livros de autores famosos e recém-traduzidos aqui, o leitor tem as páginas dos jornais. Minha missão aqui é ampliar o cardápio dos curiosos, e felizmente, de vez em quando, coincidências acontecem, e se não são coincidências são aquele fenômeno de variação aleatória num processo costumeiramente repetitivo, aquilo que o cavanhaquíssimo Georges Perec chamava de clinâmen, fenômeno que podemos comparar ao de duas gotas de chuva que se chocam uma com a outra durante a trajetória de queda, dando origem, não a uma terceira gota-síntese, como a lógica formal esperaria, mas a um chuveirinho de gotículas menores, produto da convergência do momentum (massa x velocidade) das duas gotas originais.

O parágrafo acima é o contrário do que praticava Félix Fénéon (Notícias em três linhas, Rocco, 2018), ao registrar fatos do noticiário urbano e policial da França no Le Matin (1906).

Os dois parágrafos acima mostram que um escritor não precisa necessariamente “ter uma maneira de escrever”: pode usar várias, conforme sua conveniência ou as circunstâncias do ofício.

Félix Fénéon (1861-1944) era um sujeito discreto, que deixou pouca coisa escrita. Destacou-se como editor: editou Les Illuminations de Rimbaud (atribui-se a ele a ordem final das secções do livro), e a primeira publicação dos Chants de Maldoror de Lautréamont, além da primeira tradução francesa de James Joyce, Dèdale.

Envolveu-se com o movimento anarquista francês e em 1894 foi julgado (e absolvido) por um atentado a bomba, do qual talvez não fosse de todo inocente.

Em 1906 trabalhou no Le Matin produzindo essas notinhas em 3 linhas sobre o noticiário policial, às quais imprimiu um tom pessoal. Ninguém lhes deu muita importância na época; sua amante Camille Plateel recortou e colou tudo num álbum, que foi encontrado pelo crítico Jean Paulhan após a morte do casal.

O Grão-Duque Alexis, agora em Paris, esteve ontem em Nancy. Como há russos morando ali, a polícia o seguiu por toda parte.

Já ocorreram oito suicídios em Montpont-en-Bresse no espaço de poucos meses. Desta vez, Lacroix, 70 anos, enforcou-se.

Em Clichy, um elegante rapaz jogou-se sob as rodas de borracha de um coche, escapou ileso, e jogou-se depois sob um caminhão que o reduziu a pó.

Fénéon não “faz literatura”, não enfeita, não romantiza, até porque havia uma restrição editorial (de extensão) a esses fragmentos. Não podia ser maior do que é. O redator tem que (como se diz no futebol) dar um drible num espaço do tamanho de um lenço.

O Globo de hoje (terça, 23) traz no “Segundo Caderno” matérias de Bolívar Torres e Victor da Rosa saudando a primeira publicação brasileira das Notícias em três linhas (Rocco), com tradução de Marcos Siscar e Adriano Lacerda. 

A página reproduz também o único retrato pintado (por Paul Signac) do também cavanhaquíssimo Fénéon (que foi amigo de artistas como Seurat, Pissarro, Toulouse-Lautrec, Bonnard e outros).



Em Bécu, 28 anos, que chegou ao hospital de Beaujon ferido a bala, foram contadas 27 cicatrizes. Seu apelido no submundo: O Alvo.

Uma dama de Nogent-sur-Seine desapareceu nos Pireneus em 1905. Foi encontrada numa ravina perto de Luchon, e identificada pelo anel que trazia no dedo.

Poupon, Gaudin, Jiffray, Ordronneau e Granic negaram todos ter assassinado Mme. Louet. O juiz de Ramouillet mandou prender todos eles mesmo assim

O Globo lembra que a cobertura de Fénéon tem tudo a ver com o Twitter: são menores que um tweet de 280 caracteres. Eram um formato editorial da época, talvez entregue ao “estagiário” de plantão. Um sujeito com pendor literário e um tanto ocioso poderia perfeitamente se dedicar a dar polimento a um formatinho tão desafiador.



Na igreja de Chavannes, na Savoia, um raio derreteu os sinos e deixou paralítico um paroquiano. Um aguaceiro devastou a vila.

O sr. Jules Kerzerho era presidente de um clube de ginástica, e ainda assim foi atropelado ao tentar saltar para dentro de um bonde em Rueil.

Casado há três meses, um Audouys de Nantes cometeu suicídio, usando láudano, arsênico e um revólver.

Uma mulher estava sentada no chão em Choisy-le-Roi. A única palavra de identificação que a amnésia lhe permitia era “modelo”.

O título desses fragmentozinhos de Fénéon (Nouvelles en trois lignes, o mesmo usado para intitular a secção do jornal) é curioso, porque “nouvelles” tanto pode significar “notícias” quanto “novelas”. Tanto é assim que a tradução em inglês (New York Review Books, 2007, com tradução e uma introdução por Luc Sante) chama-se Novels in three lines (e não “News in three lines”).

São pequenas novelas, encapsuladas num resumo que é possível ter como ponto de partida para, se não um romance inteiro, pelo menos um conto de certa extensão. Quanto mais excêntrico o personagem, quanto mais inusitado ou tocante o fato, maior a voltagem literária que se pode extrair dele.

No prefácio à edição em inglês, Luc Sante diz:

As pequenas novelas de Fénéon, se consideradas como uma obra única, representam um marco crucial e até agora menosprezado na história do modernismo. Mesmo sendo cada item obsessivamente trabalhado, esse trabalho é num certo sentido o primeiro ready-made. Ele anuncia a era das comunicações de massa, através de uma sensibilidade formada pelas cadências e simetria da prosa clássica; preconiza o século da estatística, ao mesmo tempo em que dá destaque aos detalhes individuais e cotidianos; estimula a velocidade do consumo ao mesmo tempo em que deixa manifesto o longo tempo dedicado a sua elaboração.







sábado, 17 de fevereiro de 2018

4315) A arte da pontuação (17.2.2018)




Ninguém nos ensina isto na escola, de modo que é conveniente dizê-lo aqui: a pontuação de um texto é uma espécie de notação musical. Ela serve para nos indicar a melodiazinha que devemos imprimir a uma frase qualquer. Não é uma sinalização rígida, uniforme. Cada pessoa (cada “instrumentista da voz”) obedece do seu jeito, mas a intenção básica é uma só.

– Você vai ao cinema hoje?
– Você vai ao cinema hoje.
– Você vai ao cinema hoje?!

As melodias são diferentes, e cada uma delas impõe um sentido diferente.

Quando falamos, muitas vezes usamos uma inflexão de voz para impor uma interpretação ao que estamos dizendo. Digamos que queremos ironizar um termo qualquer; falando em voz alta dizemos, por exemplo:

– Hoje é sexta-feira à noite e meu pai ligou para casa dizendo que vai ficar “fazendo serão no escritório”...

As aspas aparecem aí para destacar o trecho que está sendo ironizado. O curioso é que linguagem falada e linguagem escrita se influenciam mutuamente, e de uns anos para cá se popularizou o gesto com os dedinhos indicador e médio de ambas as mãos erguidos no ar, mexendo-se, imitando visualmente as aspas, para destacar essa ironia.

As reticências servem, em sua origem, para indicar um pensamento que se interrompe no meio:

– Eu estava pensando em ir à praia hoje, mas...

Pelos caminhos tortos da retórica, acabaram servindo para indicar também um tom de voz um tanto queixoso, incerto, diferente da afirmativa pura e simples:

– Eu gostaria tanto de voltar a estudar...

É diferente de:

– Eu gostaria tanto de voltar a estudar!

A gente esquece às vezes a quantidade de usos que a pontuação simples pode ter. A pontuação pode ser muito expressiva quando a arrancamos das funções burocráticas de sempre. Por exemplo: ponto de interrogação indica que se está fazendo uma pergunta, e fim de papo. Mas pode ser usado também para reproduzir uma entonação de voz bem particular, como aqui:

Fulano percebeu que a porta do quarto da mãe estava apenas encostada. Não ouviu nenhum ruído lá de dentro. Receoso, aproximou-se, empurrou a porta de leve, e disse: – Mamãe?...

Não é uma pergunta propriamente dita, mas o tom de voz dessa cena só pode ser reproduzido através da interrogação.

O ponto parece um mero “encerrador de frases”, mas pode ser usado também como elemento expressivo. Vemos com muita frequência pessoas dando ênfase ao que falam através desse recurso:

Pessoal, por favor, não deixem de assistir “Caninos Rubros”. O. Melhor. Filme. De. Vampiro. Da. Década.

Uma das maiores dificuldades de quem estuda textos antigos é a ausência quase completa de pontuação. Documentos e textos, históricos e literários, da maior importância, são transcritos hoje com pontuação moderna, inexistente no original, para que a gente possa compreendê-los corretamente.

Na literatura, foi preciso muito tempo para surgir a pontuação com a riqueza de sinalizações que temos hoje. E nem tudo é universal. Nós brasileiros indicamos o diálogo com travessões; os norte-americanos indicam com aspas. Usamos itálicos ou negritos para indicar ênfase, ou, literariamente, para destacar um trecho do discurso que tem uma origem diferente do discurso principal.

Muitos leitores ainda têm dificuldade para sinalizar por conta própria um certo tipo de discurso livre que se impôs, pelo menos aqui no Brasil, ao longo da década de 1970:

Saí de rua afora, trânsito pesado, chuva forte vai cair, mas é isso mesmo, tou é puto, alguém vai me pagar, principalmente Seu Léo, muita cara de pau, chegar pra mim, é isso aí seu moleque, ou trabalha ou te meto pé na bunda, pé na bunda ele mete é na bunda da mãe dele, sou funcionário, não sou escravo, ele vai ver uma coisa, olá Roberto, boa tarde Dona Sandra, queria conversar com Seu Léo, ele está?

Essa narrativa livremente “virgulada” mistura, num mesmo plano, descrição de ambiente externo, lembranças do narrador, prefiguração de ações por parte do narrador, voz do narrador, vozes de outras pessoas... Tudo separado por vírgulas; fica para o leitor a tarefa de pegar cada segmento e ir pendurando no gancho mental correspondente.

Rubem Fonseca foi um dos grandes popularizadores deste estilo, que acho excelente, e só tem um grande defeito: as pessoas se acostumam a ler assim, escrever assim, e não sabem mais escrever sinalizando, não sabem usar maiúsculas, nem cortar parágrafo, nem pontuar. Virou um cobertor curto, cabeça coberta e pés de fora.

Um escritor como José Saramago criou para si umas poucas regras de pontuação pouco convencional. Essa pontuação é, pelos comentários que ouço, o principal obstáculo à sua leitura. Tem gente que simplesmente não consegue avançar, diante de uma sinalização como aquela.

Que nem é tão complicada assim. O problema é que nós, como leitores, já internalizamos essa sinalização. Não a vemos. Interpretamos subconscientemente o que nos é indicado através de vírgulas, dois-pontos, ponto-e-vírgula, travessão... Quando o autor resolve mexer nisso, nos faz tropeçar a cada frase, ressetar os critérios constantemente. Tem leitor que refuga. É como dirigir num carro em que as marchas foram trocadas de posição.








quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

4314) Contracapa de Linux (14.2.2018)




(foto: Katinka Matson)

liberdade individual, só a do eremita na gruta; toda liberdade é um equilíbrio entre possibilidades e limitações dentro de um coletivo 

&  a vida é um plano-sequência sem roteiro e sem ensaio 

&  bem q o Brasil podia se despedir com uma nota oficial, dizendo q aprendeu muito com a Democracia, mas q está na hora de encarar novos desafios 

&  hoje em dia todo mundo é culpado a menos que um escritório de advocacia prove o contrário a peso de ouro 

&  certas pessoas já saem à rua com a prática bem planejada, e para elas qualquer teoria serve 

&  a vida ensina a dirigir o carro, mas mexer no motor a gente aprende sozinho 

&  muita gente pensa que a Realidade é governada por alguma coisa parecida com o Sistema Métrico Decimal 

&  existem 3 tipos de políticos: 1) os que vão com muita sede ao pote; 2) os que derramam a água; e 3) os que derrubam o pote 

&  basta que a gente aceite a existência do Absurdo e tudo o mais começa a fazer sentido 

&  protestar nas redes sociais requer o tempo e o esforço de um passeio de escada rolante 

&  eu não sei o que é pior, se é estar andando pra trás e olhando pra frente, ou andando pra frente e olhando pra trás 

&  pensando bem, o milagre não é que a lagarta se transforme em borboleta, é que ela não vire lagarta de novo na manhã seguinte 

&  se alguém naquela época tivesse chegado pra mim com um Deus não-onipotente, não-onisciente e não-onipresente, eu tinha acreditado na hora 

&  eu não gosto quando durmo seis horas consecutivas, sem acordar, porque quando acordo estou me sentindo outra pessoa 

&  tem quem goste de se refestelar no próprio sofrimento, porque só a tragédia sofrida lhe dá uma chance de bancar o herói diante de si mesmo 

&  a grande maioria se contenta com seis dias de Básico Garantido e uma transgressãozinha por semana 

&  uma ditadura é mais parecida com o passado histórico do seu próprio país do que com o sistema político-econômico que alega defender 

&  não existe mais o Belo e o Sublime, a arte hoje só tem o Bélico e o Subliminar 

&  é melhor ter um poema escrito na porta de uma privada do que estátua em praça pública 

&  a direita fica só dando os motes que quer e a esquerda glosando 

&  o Brasil vai ficar igual àquele Hotel 5 Estrelas que cobra 15 paus num guaraná e não dá nem sabonetinho 

&  certos conflitos de egos não passam da Peleja do Gnomo de Jardim com o Pinguim de Geladeira 

&  uma das piores consequências da Passeata Contra A Guitarra Elétrica foi dar origem às Passeatas A Favor Da Guitarra Elétrica 

&  vivemos num mundo que só é possível explicar usando clichês 

&  o que me consola é viver numa bolha maior que a bolha do meu vizinho

&  a arte é a bola que atravessa a rua quicando, o artista é a criança que vem correndo atrás dela

&  botar num pitbull o nome de Coisinha Tão Bonitinha Do Pai não vai ajudar a resolver problema nenhum

&  nada é tão previsível quanto certas surpresas

&  é triste constatar que por mais que a gente estude as outras pessoas insistem em pensar por si mesmas

&  quando tenho tempo não tenho dinheiro, quando tenho dinheiro não tenho saúde, quando tenho saúde não tenho tempo

&  ele é o tipo do cara que desmoraliza um velório com uma piada

&  o mundo é um quebra-cabeças, a vida um quebra-corações

&  eu sou do tipo que dou um boi para não entrar numa briga, mas se entrar dou uma boiada para o juiz

&  percevejo é um bicho tão pequeno que eu nem percebo nem vejo

&  chega uma hora em que a gente desiste de fazer contas e começa a fazer de conta

&  o Facebook é um Jardim Zoológico de peculiaridades mentais que se querem auto-expor

&  um dia em ainda vou morar numa casa que tenha uma escada rolante, uma sorveteria, e um rio só meu

&  o músico é uma espécie de abelha atarefada adoçando o lazer dos outros

&  minha ruindade é como unha de gato, só aparece quando é preciso

&  há momentos em que é preciso redescobrir o óbvio no matagal das sutilezas







domingo, 11 de fevereiro de 2018

4313) Como começar uma história (11.2.2018)




Existem mil regras para começar uma história. Cormac MacCarthy dizia que nunca se deve começar um livro descrevendo o clima que faz. Certamente para fugir àquele clichê mais que famoso de Edward Bulwer-Lytton: “Era uma noite escura e tempestuosa...”.

Melhor do que inventar fórmulas (e do que segui-las) é escolher começos que nos parecem bons e fazer aquela pergunta crucial: Por que isto é bom?

Digressão: sempre que faço oficinas, aconselho aos participantes que interrompam uma leitura sempre que gostarem ou não gostarem de algo. E que se perguntem: “Por que isto é bom? O que o torna ‘algo bem escrito’? E se me pareceu mal escrito, por que foi?”  Fazer essas perguntas nos ajuda a entender os efeitos produzidos em nós pela escrita alheia. Em geral, a gente gosta mas não pára pra pensar, e acaba sem saber por que gostou.

O conselho mais universal sobre o começo de uma história, seja conto ou romance, é a teoria do “gancho” (“hook”): algo que agarra a atenção do leitor e não permite que ele afaste os olhos da página daí em diante.

O começo de uma história, segundo essa teoria, tem que ser o que em certa época a gente chamava de “começo Mike Tyson”, ou seja, desde a primeira palavra o texto tinha que partir para cima do leitor como o feroz Tyson partia, ao soar do gongo, pra cima dos seus adversários: batendo sem parar, sem lhes dar tempo para respirar sequer.

A literatura Romântica do século 19, principalmente aquela voltada para o Fantástico, era mestra nesses começos “de arregalar os olhos”.

É verdade! Sou nervoso, muito, terrivelmente nervoso; sempre fui e sou-o ainda. Mas por que me chamam vocês de louco? A doença aguçou os meus sentidos, ao invés de destruí-los, de amortecê-los. Acima de tudo, era o meu sentido da audição o mais agudo de todos. Eu escutava todas as coisas que havia entre o céu e a terra. Escutava muitas coisas no inferno. E como, então, estarei eu louco? Esperem! E observem com que saúde mental, com que tranquilidade, eu lhes contarei minha história por inteiro.
(Edgar Allan Poe, “O Coração Revelador”, 1843, trad. minha)

Meu Deus! Meu Deus! Finalmente vou escrever o que me aconteceu! Conseguirei fazê-lo? Atrever-me-ei? É coisa tão estranha, tão inexplicável, tão incompreensível, tão louca!
(Guy de Maupassant, “Quem sabe?”, 1890, trad. Ondina Ferreira)

Aberturas assim contrastavam com os começos bucólicos das histórias rurais e os começos burocráticos dos contos urbanos. Arrebatavam o leitor numa montanha-russa de efeitos. Era o Romantismo reagindo à austeridade racional do Realismo, e abrindo o caminho para uma literatura do subjetivo que viria a ser chamada de Expressionismo, cem anos depois, e já num outro tom de voz.

Criar um mistério logo no primeiro parágrafo, contudo, é uma técnica que os seguidores de Poe e Maupassant não menosprezaram. Um deles era H. P. Lovecraft, no qual já vemos uma certa contenção descritiva, mas buscando o mesmo efeito:

Eu repito, cavalheiros, sua inquisição é infrutífera. Detenham-me aqui para sempre se quiserem, confinem-me ou me executem, se precisam de uma vítima para apaziguar a ilusão que chamam de justiça; mas eu não posso dizer nada além do que já disse. Tudo o que consigo lembrar eu já lhes contei com perfeita sinceridade. Nada foi distorcido ou ocultado, e se algo permanece vago é por causa das nuvens escuras que cobriram minha mente – dessas nuvens e da natureza nebulosa dos horrores que as atraíram sobre mim.
(H. P. Lovecraft, “O depoimento de Randolph Carter”, 1919, trad. Francisco Inocêncio)

O “gesto narrativo” é o mesmo, o gesto de agarrar o leitor como o Velho Marinheiro do poema famoso de Coleridge agarrava um transeunte, em desespero, precisando a todo custo despejar sobre alguém a história que o atormentava.

William Sloane (1906-1974) foi um obscuro professor e editor literário que nos anos 1930 produziu dois notáveis romances de terror, muito elogiados por Stephen King na introdução à edição conjunta dos dois, The Rim of Morning (New York Review Books, 2015).

Sobre o primeiro deles, To Walk the Night (1937) já escrevi aqui:


O segundo, The Edge of Running Water (1939), começa com um parágrafo que traduzo abaixo.

O homem para quem está história é narrada pode estar ou não estar vivo. Se está, não sei o seu nome, nem onde mora, nem coisa alguma a seu respeito, exceto que existe algo que é vital para mim e que preciso contar-lhe. É um método de comunicação estranho e desajeitado, este expediente de escrever um livro inteiro sem ter sequer a segurança de que ele chegará às suas mãos, e no entanto não sei de outra maneira de preveni-lo. Acho que existe uma chance razoável de dar certo. Algum dia, talvez numa livraria, talvez numa biblioteca, ele pode encontrar um exemplar desta narrativa. Ou alguém que ele conhece a mencionará distraidamente e ele se sentirá induzido a procurar e ler este livro. As pessoas sempre dão um jeito de ter acesso a coisas que são de suprema importância para sua vida e seu trabalho. O que me perturba não é a possibilidade de que ele nunca encontre esta mensagem, mas a de que o faça quando já for tarde demais.

Este é um típico começo criador de suspense sem nada revelar sobre o enredo: ele trata da importância do enredo para alguém. A história precisa ser lida por alguém que o autor desconhece. Por que? Que mensagem tão importante é esta?

Por outro lado, o autor controla essa tensão melodramática usando distanciamento. Não há súplicas, gritaria, pontos de exclamação. Ele fala com calma da importância da mensagem, sugere hipóteses, divaga um pouco sobre as circunstâncias em que o livro pode ser lido... E no final volta a aumentar a tensão ao usar esta velha e infalível fórmula verbal: a expressão “antes que seja tarde demais”.

Há outras maneiras de criar um mistério na abertura do livro. Uma delas é narrar um fato espantoso, e depois retroagir no tempo, levando o leitor junto consigo, e mostrar como foi que aquilo aconteceu.

Um exemplo clássico disto é a abertura famosa de A Judgement in Stone (1977; no Brasil, Um assassino entre nós), de Ruth Rendell:

Eunice Parchman matou a família Coverdale porque não sabia ler nem escrever.

Na primeira frase a autora descreve o episódio final e clímax do romance, no maior exemplo de “auto-spoiler” que alguém pode imaginar. Ela troca a surpresa pelo mistério, no entanto, porque a partir desta frase inicial o leitor passa a perguntar: Como é que uma coisa tão absurda pode acontecer? E o livro responde.

São “iscas” muito mais sutis e que para mim funcionam muito melhor do que os começos delirantes (mas datados – até que alguém me prove o contrário) dos antigos mestres.







quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

4312) O Feiticeiro de Terramar (7.2.2018)



Ursula Le Guin faleceu alguns dias atrás, aos 88 anos. Por sincronicidade, eu estava em plena leitura da trilogia inicial do seu ciclo sobre o Arquipélago de Terramar (“Earthsea”), ciclo do qual eu só conhecia algumas histórias mais recentes.

Le Guin era uma dama de calma sabedoria e inexcedível elegância, mas ela própria não estava (nem precisava estar) acima de certos ciúmes e certas rivalidades literárias. Quando alguém se referia ao ciclo de Harry Potter e Hogwarts, ela dava um muxoxo e dizia: “Bem que aquela moça poderia ter dito de quem pegou a idéia de uma Escola para Magos”.

A idéia, claro, é a que ela criou (com grande impacto junto à crítica e aos leitores) nos três primeiros volumes de sua série: A Wizard of Earthsea (1968), The Tombs of Atuan (1971) e The Farthest Shore (1972). A Ilha de Roke, governada pelos Nove Mestres da magia.

Os três romances foram escritos para o público juvenil, mas pertencem àquela faixa que qualquer leitor adulto pode ler com prazer e proveito. Uma prosa límpida, rica, encantatória. São três histórias com protagonistas adolescentes.

No primeiro livro, o garoto Ged, ou “Sparrowhawk” demonstra talento para a magia e é encaminhado para a Escola dos Magos, na ilha de Roke. Ali ele acaba liberando, por imprudência e hubris, uma força sobrenatural que lhe caberá enfrentar e dominar no desfecho.

No segundo, Arha é uma menina sacerdotisa de um culto antiquíssimo na ilha de Atuan, numa ordem composta apenas por mulheres e eunucos. Uma de suas atribuições é ser capaz de se orientar, na treva total, no interior do enorme labirinto subterrâneo que existe por baixo do templo – e onde um dia, inesperadamente, ela descobre a presença de um ladrão que desperta sua ira e depois sua curiosidade.

No terceiro livro, um jovem príncipe é enviado para a ilha de Roke para se queixar aos Nove Mestres de que a magia, a cultura e a memória estão desaparecendo em muitas ilhas do Arquipélago. E cabe-lhe acompanhar o Arqui-Mago na caçada ao inimigo invisível que está apagando a memória cultural de Terramar.

A série está sendo publicada no Brasil pela Editora Arqueiro (SP), que já lançou os dois primeiros volumes, com tradução de Ana Resende.

Ursula Le Guin pertence à escola dos autores de Fantasia para quem a magia não é um simples “abracadabra” capaz de produzir qualquer resultado. Ela trabalha na linha da hard fantasy: a magia precisa ter regras, ter limitações, ter uma economia interna tal como tem a Ciência, onde nada pode ser feito “de graça”.

Criar um efeito mágico produz um desgaste na energia do mago. Ele pode criar um vento artificial para soprar a vela do seu barco e navegar com mais rapidez, ou pode evitar que um prédio desmorone sobre sua cabeça durante um terremoto; mas com isso gasta uma espécie de combustível, não pode manter esse esforço indefinidamente. Não existe almoço grátis no mundo da magia.

A magia no Arquipélago de Terramar (tal como o futuro no mundo cyberpunk!) também não está distribuída por igual.

Os Poderes Antigos não conseguem cruzar o mar, e cada um deles está preso a uma ilha, a um certo local, a uma caverna ou a uma nascente de água. (Wizard, cap. 7; estas traduções são minhas)

“Há encantamentos eficazes que eu aprendi em Roke mas que não funcionam aqui, ou funcionam desordenadamente. E também há encantamentos daqui que nunca estudei em Roke. Cada terra tem seus próprios poderes, e quanto mais a gente se afasta do centro do arquipélago menos é capaz de prever essas forças e o modo de controlá-las.” (Wizard, cap. 9)

É uma magia que extrai seu poder do verdadeiro nome de todas as coisas e todos os seres, nome que só os magos são capazes de descobrir e controlar. Controlar o nome das coisas é controlar as coisas do mundo.

Saber os nomes é o meu trabalho. A minha arte. Para produzir a mágica de alguma coisa, é preciso descobrir seu verdadeiro nome. Na terra onde eu vivo, mantemos nossos verdadeiros nomes escondidos durante a vida inteira, diante de todos a não ser aqueles em quem temos total confiança. Porque num nome existe grande poder, e grande perigo. Huve uma época, no princípio dos tempos, quando Segoy fez as ilhas de Terramar se erguerem das profundezas do oceano, em que todas as coisas portavam seus verdadeiros nomes. E todo o ofício da magia, da feitiçaria, se baseia em reaprender, em lembrar, essa antiga e verdadeira linguagem do Fazer. Há encantamentos a serem aprendidos, claro, modo de usar as palavras; e o mago deve saber também quais são as consequências. Mas o que um mago leva a vida inteira fazendo é descobrir quais os nomes verdadeiros das coisas, e como usar os nomes dessas coisas.” (Atuan, cap. 9)



Outra presença forte na trilogia é a dos dragões, que em Le Guin não são meros monstros: são criaturas antiquíssimas, dotadas de pensamento, linguagem e recursos mágicos próprios. Como se fossem velhos feiticeiros metamorfoseados em serpentes de fogo.

Dizia Ursula que as pessoas que não acreditam em dragões acabam sendo devoradas por eles, só que de dentro para fora. Seus dragões são ferozes e indecifráveis; ora amistosos, ora predadores. Nem todos os Magos são capazes de dialogar com eles; os que o conseguem são chamados de Dragonlords.

Quando o sol começou a brilhar sobre a neblina do Leste, as minúsculas partículas douradas que Arren tinha visto à distância pareceram cintilar, como ouro em pó arremessado sobre as águas, ou grãos de poeira num facho de luz do sol. E então Arren percebeu que eram dragões.
O barco chegou mais perto das ilhas e Arren viu que os dragões flutuavam no ar e descreviam círculos no vento matinal, e seu coração saltou junto com eles com alegria, com uma alegria cuja plenitude chegava a doer. Todo a glória da mortalidade estava naquele voo. A beleza dos dragões era feita de uma força terrível, com uma selvageria sem limites e a dádiva da razão, porque eles eram criaturas pensantes, eram dotados da fala, e de uma sabedoria ancestral: nos padrões do seu voo havia uma sincronização deliberada e feroz.
Arren ficou em silêncio, mas pensou: “Eu não ligo mais para o que acontecer de agora em diante: eu vi o voo dos dragões no vento da aurora.”
(Farthest Shore, cap. 10)

Num ótimo artigo sobre o ciclo de Terramar, David Mitchell (o autor de Cloud Atlas) lembra que num romance de fantasia heróica, como são estes de Ursula Le Guin, o mais difícil é equilibrar o estilo literário e a voz narrativa. “Escrever fantasia de qualidade,” diz ele, “é muito difícil, porque é um terreno saturado de clichês verbais.” É preciso evitar no leitor a sensação de estar preso dentro de um parque temático, e por outro lado evitar uma linguagem tipicamente contemporânea. Uma história de fantasia pode vir abaixo por inteiro se um personagem disser algo como “maneiro demais!”. 









sábado, 3 de fevereiro de 2018

4311) Sagarana: "Conversa de Bois" (3.2.2018)




(ilustração: yrodar.wordpress.com)

O penúltimo conto de Sagarana (1946) é uma experiência mediúnico-telepática em que Guimarães Rosa imagina o que se passa na cabeça das quatro juntas de um carro-de-bois, enquanto conduzem uma carga heterogênea que inclui rapaduras e um defunto.

O defunto é o pai de Tiãozinho, o garoto que munido de vara segue adiante do carro, servindo-lhe de guia. O velho era entrevado e mudo. Morreu na véspera, e está sendo conduzido para sepultamento, aproveitando que a carga de rapaduras já estava embalada e com transporte marcado para aquela data.  Cabe assim a um menino de 10 anos servir como uma espécie de Caronte para o transporte dos restos do próprio pai.

Mais propriamente, o Caronte não é o menino, e sim o carreiro adulto que toca o transporte: Agenor Soronho, sujeito de maus bofes, detestado pelos bois e pelo garoto, um oportunista que se aproveitou da doença do velho para se achegar à esposa ainda jovem, sujeita a “dengos”, e tornar-se praticamente dono da casa e padrasto de Tiãozinho.

E enquanto isto, os bois vão conversando. Essa projeção antropomórfica não é novidade em Rosa, que já havia dado umas triscadas nela desde “O Burrinho Pedrês”. Como observou Álvaro Lins quando do lançamento da obra:

Os animais dessas admiráveis histórias de Sagarana, os bois como o burrinho pedrês, agem, pensam e falam, não como os homens na maneira das fábulas e histórias da carochinha, mas como podemos imaginar, com o recurso da intuição, que eles o fariam se realmente pensassem e agissem racionalmente. Era como se o autor se transportasse para dentro dos bichos, e não para lhes transmitir a sua própria personalidade, mas para interpretar e exprimir a imaginada vida interior deles.
(Correio da Manhã, 12.4.1946)

Um tipo de projeção que Rosa viria a aperfeiçoar em “Meu tio, o Iauaretê” (1961).

A distinção feita por Álvaro Lins se justifica em face do próprio parágrafo inicial de “Conversa de Bois”:

Que já houve um tempo em que eles conversavam, entre si e com os homens, é certo e indiscutível, pois que bem comprovado nos livros das fadas carôchas. Mas, hoje-em-dia, agora, agorinha mesmo, aqui, aí, ali e em toda a parte, poderão os bichos falar e serem entendidos, por você, por mim, por todo o mundo, por qualquer um filho de Deus?!

A “comprovação” alegada por ele é de ordem puramente mítico-literária. “Conversa de Bois” é, como “Corpo Fechado” (que o antecede) uma história típica de Rosa-o-doutor-da-cidade-colhendo-anedotas-junto-aos-capiaus. Porque ele (o onipresente Narrador) alega estar ouvindo essa peripécia toda de um conhecido Manuel Timborna, capiau local, que lhe diz:

– (...) Boi fala o tempo todo. Eu posso até contar um caso acontecido que se deu.
– Só se eu tiver licença de recontar diferente, enfeitado e acrescentado ponto e pouco...
– Feito! Eu acho que assim até fica mais merecido, que não seja.

E a partir daí ficamos sabendo que o “exemplo” a ser narrado por Timborna não foi presenciado por ele, e sim por uma irara, bichinho esperto que se homiziou no matagal à aproximação do carro-de-bois, passou a segui-lo, viu o episódio inteiro, e depois, tendo sido apanhada por Timborna, “só pôde recobrar a liberdade a troco da minuciosa narração”.

Ou seja: os bois conversaram, a irara viu tudo, contou a Manuel Timborna, e este repassou o conto ao Narrador, com liberdade de recontação. Uma cadeia de narradores não-confiáveis que lembra as oito versões sucessivas do “Recado do Morro” (1956).

Numa entrevista a Ascendino Leite, Rosa confessou que essa irara, a quem ele dá o nome de Risoleta, ele a conheceu “...aqui no Rio, no Jardim Zoológico velho, em Vila Isabel. Um amor de criaturinha!”  (Ascendino Leite entrevista Guimarães Rosa, org. Sônia Maria van Dijck Lima, Ed. Universitária da UFPB, João Pessoa, 1997).

É portanto da irara Risoleta a responsabilidade pela narrativa da viagem e, indiretamente, a percepção da ligação telepática das quatro juntas de bois com o menino Tiãozinho, que ao longo do trajeto vê crescer sua repulsa pelo padrasto Agenor Soronho, chamado pelos bois “o-homem-do-pau-comprido-com-o-marimbondo-na-ponta” (o aguilhão).

Os bois (Buscapé e Namorado; Capitão e Brabagato; Dansador e Brilhante; Realejo e Canindé) conversam, queixam-se da vida, queixam-se dos homens:

O homem é um bicho esmochado, que não devia haver. Nem convém espiar muito para o homem. É o único vulto que faz ficar zonzo, de se olhar muito. É comprido demais, para cima, e não cabe todo de uma vez, dentro dos olhos da gente. (...) Perto do homem, só tem confusão! (...) [O] homem pode se ajuntar com as coisas, se encostar nelas, crescer, mudar de forma e de jeito... O homem tem partes mágicas... São as mãos... Eu sei...

Meditações que pelo menos a mim fazem lembrar o poema famoso (e posterior) de Carlos Drummond:

Tão delicados (mais que um arbusto) e correm
e correm de um para outro lado, sempre esquecidos
de alguma coisa. Certamente, falta-lhes
não sei que atributo essencial, posto se apresentem nobres
e graves, por vezes. Ah, espantosamente graves,
até sinistros. (...)
(“Um boi vê os homens”, Claro Enigma, 1951)

De onde vem essa capacidade pensadora dos bois? Eles todos comentam, de vez em quando: “Não podemos mais deixar de pensar como o homem... Estamos todos pensando como o homem pensa...”


(ilustração: Poty)

Rosa não fala de origens, mas nos dá um exemplo de personagem mítico: o boi Rodapião, que de repente é evocado pela memória de Brilhante.

O boi Rodapião é uma espécie de Prometeu bovino, um herói que de algum modo trouxe dos homens para os bois o “fogo” do pensamento. Rodapião tinha passado tempo demais junto dos homens e isso lhe despertou uma consciência parcialmente humana: “olhava e olhava, sem sossego”.

E argumentava coisas que deixavam os outros bois atarantados:

Cada dia o boi Rodapião falava uma coisa mais difícil p’ra nós bois. Deste jeito: – Todo boi é bicho. Nós todos somos bois. Então, nós todos somos bichos!

Como o macaco que toca o monolito em 2001, uma Odisséia no Espaço, Rodapião é o Portador da Centelha, e começa a dar instruções (muito divertidas) aos demais, sobre maneiras mais práticas de comer e beber, ou sobre pequenas malícias e jogos-de-cintura para extrair dos humanos um tratamento mais cinco-estrelas.

Até que a hubris vitima Rodapião. Ele tenta escalar um barranco alto em busca de melhor comida, não consegue convencer os demais, vai sozinho, e de repente (lembra Brilhante):

Escutei o barulho dele: boi Rodapião vinha lá de cima, rolando poeira feia e chão solto... Bateu aqui em baixo e berrou triste, porque não pôde mais se levantar do lugar das suas costas...

O herói é vitimado pela sede de saber, mas deixa a herança nos boizinhos comuns.

Ao episódio rememorado da morte de Rodapião sucede imediatamente, no conto, o encontro de um carro-de-boi também vitimado numa subida, o carro de João Bala, todo escangalhado, junto do qual Agenor e Tiãozinho se detêm. Bois e homens estão sujeitos a tais desastres, quando não pensam direito. João Bala narra o acidente, com a habitual finura rosiana na descrição dos fatos mentais: “Foi tudo num relance tão ligeiro, que só depois é que eu vi que tinha visto...”

O tema geral do livro Sagarana é “a ida e a volta”, e neste conto toma a forma de uma viagem só de ida de um morto (o pai de Tiãozinho, amarrado na padiola por entre as rapaduras) e de um vivo (o carreiro Agenor, que mal supõe o que o espera mais adiante).

Porque a raiva do menino, que vai meio que cochilando no “chouto” manso do caminho, vai sendo captada telepaticamente e glosada pelos bois, que sentem crescer em si o ódio pelo cruel Agenor Soronho, como nessa vocalização do boi Capitão:

Mhú! Hmoung!... Boi... Bezerro-de-homem... Mas, eu sou o boi Capitão!... Moung! Não há nenhum boi Capitão... Mas, todos os bois... Não há bezerro-de-homem!... Todos... Tudo... Tudo é enorme... Eu sou enorme!... Sou grande e forte... Mais do que seu Agenor Soronho! Posso vingar meu pai... Meu pai era bom. Ele está morto dentro do carro... Seu Agenor Soronho é o diabo grande... Bate em todos os meninos do mundo... Mas eu sou enorme... Hmou! Hung!  (...)

A sintonia de pensamentos se revela através do monólogo interior dos bois, até que o menino tem um sobressalto, dá um grito, uma varada, os bois arrancam de súbito todos juntos, e Agenor, que vinha cochilando sentado, cai embaixo do carro e é degolado, porque:

(...) ...uma rodeira de carro, bem ferrada, chapeada nas bandejas e com o aro ondulado de gomos metálicos, pesa no mínimo setenta quilos, mormente se, para cantar direito, foi feita de madeira de jacaré ou de peroba-da-miúda, tirada no espigão...

O menino é socorrido por dois cavaleiros, que lamentam a tragédia. Um deles se dispõe a conduzir o carro, que prossegue, estrada afora, levando em sua carga dois defuntos em vez de um só. E um menino vingado.

“Conversa de Bois” pode ser considerado um conto fantástico se interpretarmos literalmente o “transmimento de pensação” ocorrido entre o menino e os bois, em que o ódio cego e primitivo de Tiãozinho pelo padrasto serve de energia mobilizadora para os bois, que depois da violência perpetrada voltam ao normal:

Com os bois olhando. Olhando e esperando. Calmos. Bons. Mansos. Bois de paz.


(foto: Cecilia Araujo de Oliveira)