(ilustração: yrodar.wordpress.com)
O penúltimo conto de Sagarana (1946) é uma experiência mediúnico-telepática
em que Guimarães Rosa imagina o que se passa na cabeça das quatro juntas de um
carro-de-bois, enquanto conduzem uma carga heterogênea que inclui rapaduras e
um defunto.
O defunto é o pai de
Tiãozinho, o garoto que munido de vara segue adiante do carro, servindo-lhe de
guia. O velho era entrevado e mudo. Morreu na véspera, e está sendo conduzido
para sepultamento, aproveitando que a carga de rapaduras já estava embalada e
com transporte marcado para aquela data.
Cabe assim a um menino de 10 anos servir como uma espécie de Caronte
para o transporte dos restos do próprio pai.
Mais propriamente, o
Caronte não é o menino, e sim o carreiro adulto que toca o transporte: Agenor
Soronho, sujeito de maus bofes, detestado pelos bois e pelo garoto, um
oportunista que se aproveitou da doença do velho para se achegar à esposa ainda
jovem, sujeita a “dengos”, e tornar-se praticamente dono da casa e padrasto de
Tiãozinho.
E enquanto isto, os
bois vão conversando. Essa projeção antropomórfica não é novidade em Rosa, que
já havia dado umas triscadas nela desde “O Burrinho Pedrês”. Como observou
Álvaro Lins quando do lançamento da obra:
Os animais dessas
admiráveis histórias de Sagarana, os
bois como o burrinho pedrês, agem, pensam e falam, não como os homens na maneira das fábulas e histórias da
carochinha, mas como podemos imaginar, com o recurso da intuição, que eles o
fariam se realmente pensassem e agissem racionalmente. Era como se o autor se
transportasse para dentro dos bichos, e não para lhes transmitir a sua própria
personalidade, mas para interpretar e exprimir a imaginada vida interior deles.
(Correio da Manhã, 12.4.1946)
Um tipo de projeção
que Rosa viria a aperfeiçoar em “Meu tio, o Iauaretê” (1961).
A distinção feita por
Álvaro Lins se justifica em face do próprio parágrafo inicial de “Conversa de
Bois”:
Que já houve um tempo
em que eles conversavam, entre si e com os homens, é certo e indiscutível, pois
que bem comprovado nos livros das fadas carôchas. Mas, hoje-em-dia, agora,
agorinha mesmo, aqui, aí, ali e em toda a parte, poderão os bichos falar e
serem entendidos, por você, por mim, por todo o mundo, por qualquer um filho de
Deus?!
A “comprovação”
alegada por ele é de ordem puramente mítico-literária. “Conversa de Bois” é,
como “Corpo Fechado” (que o antecede) uma história típica de
Rosa-o-doutor-da-cidade-colhendo-anedotas-junto-aos-capiaus. Porque ele (o
onipresente Narrador) alega estar ouvindo essa peripécia toda de um conhecido
Manuel Timborna, capiau local, que lhe diz:
– (...) Boi fala o
tempo todo. Eu posso até contar um caso acontecido que se deu.
– Só se eu tiver
licença de recontar diferente, enfeitado e acrescentado ponto e pouco...
– Feito! Eu acho que
assim até fica mais merecido, que não seja.
E a partir daí
ficamos sabendo que o “exemplo” a ser narrado por Timborna não foi presenciado
por ele, e sim por uma irara, bichinho esperto que se homiziou no matagal à
aproximação do carro-de-bois, passou a segui-lo, viu o episódio inteiro, e
depois, tendo sido apanhada por Timborna, “só
pôde recobrar a liberdade a troco da minuciosa narração”.
Ou seja: os bois
conversaram, a irara viu tudo, contou a Manuel Timborna, e este repassou o
conto ao Narrador, com liberdade de recontação. Uma cadeia de narradores
não-confiáveis que lembra as oito versões sucessivas do “Recado do Morro”
(1956).
Numa entrevista a
Ascendino Leite, Rosa confessou que essa irara, a quem ele dá o nome de
Risoleta, ele a conheceu “...aqui no Rio,
no Jardim Zoológico velho, em Vila Isabel. Um amor de criaturinha!” (Ascendino
Leite entrevista Guimarães Rosa, org. Sônia Maria van Dijck Lima, Ed.
Universitária da UFPB, João Pessoa, 1997).
É portanto da irara Risoleta
a responsabilidade pela narrativa da viagem e, indiretamente, a percepção da
ligação telepática das quatro juntas de bois com o menino Tiãozinho, que ao
longo do trajeto vê crescer sua repulsa pelo padrasto Agenor Soronho, chamado
pelos bois “o-homem-do-pau-comprido-com-o-marimbondo-na-ponta”
(o aguilhão).
Os bois (Buscapé e
Namorado; Capitão e Brabagato; Dansador e Brilhante; Realejo e Canindé) conversam,
queixam-se da vida, queixam-se dos homens:
O homem é um bicho
esmochado, que não devia haver. Nem convém espiar muito para o homem. É o único
vulto que faz ficar zonzo, de se olhar muito. É comprido demais, para cima, e
não cabe todo de uma vez, dentro dos olhos da gente. (...) Perto do homem, só
tem confusão! (...) [O] homem pode se ajuntar com as coisas, se encostar nelas,
crescer, mudar de forma e de jeito... O homem tem partes mágicas... São as
mãos... Eu sei...
Meditações que pelo
menos a mim fazem lembrar o poema famoso (e posterior) de Carlos Drummond:
Tão delicados (mais que um arbusto) e
correm
e correm de um para outro lado, sempre
esquecidos
de alguma coisa. Certamente, falta-lhes
não sei que atributo essencial, posto se
apresentem nobres
e graves, por vezes. Ah, espantosamente
graves,
até sinistros. (...)
(“Um boi vê os homens”, Claro Enigma, 1951)
De onde vem essa
capacidade pensadora dos bois? Eles todos comentam, de vez em quando: “Não podemos mais deixar de pensar como o
homem... Estamos todos pensando como o homem pensa...”
(ilustração: Poty)
Rosa não fala de origens,
mas nos dá um exemplo de personagem mítico: o boi Rodapião, que de repente é
evocado pela memória de Brilhante.
O boi Rodapião é uma
espécie de Prometeu bovino, um herói que de algum modo trouxe dos homens para
os bois o “fogo” do pensamento. Rodapião tinha passado tempo demais junto dos
homens e isso lhe despertou uma consciência parcialmente humana: “olhava e olhava, sem sossego”.
E argumentava coisas
que deixavam os outros bois atarantados:
Cada dia o boi
Rodapião falava uma coisa mais difícil p’ra nós bois. Deste jeito: – Todo boi é
bicho. Nós todos somos bois. Então, nós todos somos bichos!
Como o macaco que
toca o monolito em 2001, uma Odisséia no
Espaço, Rodapião é o Portador da Centelha, e começa a dar instruções (muito
divertidas) aos demais, sobre maneiras mais práticas de comer e beber, ou sobre
pequenas malícias e jogos-de-cintura para extrair dos humanos um tratamento
mais cinco-estrelas.
Até que a hubris vitima Rodapião. Ele tenta
escalar um barranco alto em busca de melhor comida, não consegue convencer os
demais, vai sozinho, e de repente (lembra Brilhante):
Escutei o barulho
dele: boi Rodapião vinha lá de cima, rolando poeira feia e chão solto... Bateu
aqui em baixo e berrou triste, porque não pôde mais se levantar do lugar das
suas costas...
O herói é vitimado
pela sede de saber, mas deixa a herança nos boizinhos comuns.
Ao episódio
rememorado da morte de Rodapião sucede imediatamente, no conto, o encontro de
um carro-de-boi também vitimado numa subida, o carro de João Bala, todo
escangalhado, junto do qual Agenor e Tiãozinho se detêm. Bois e homens estão
sujeitos a tais desastres, quando não pensam direito. João Bala narra o
acidente, com a habitual finura rosiana na descrição dos fatos mentais: “Foi tudo num relance tão ligeiro, que só
depois é que eu vi que tinha visto...”
O tema geral do livro
Sagarana é “a ida e a volta”, e neste
conto toma a forma de uma viagem só de ida de um morto (o pai de Tiãozinho,
amarrado na padiola por entre as rapaduras) e de um vivo (o carreiro Agenor,
que mal supõe o que o espera mais adiante).
Porque a raiva do
menino, que vai meio que cochilando no “chouto” manso do caminho, vai sendo
captada telepaticamente e glosada pelos bois, que sentem crescer em si o ódio
pelo cruel Agenor Soronho, como nessa vocalização do boi Capitão:
Mhú! Hmoung!...
Boi... Bezerro-de-homem... Mas, eu sou o boi Capitão!... Moung! Não há nenhum boi Capitão... Mas, todos os bois... Não há
bezerro-de-homem!... Todos... Tudo... Tudo é enorme... Eu sou enorme!... Sou
grande e forte... Mais do que seu Agenor Soronho! Posso vingar meu pai... Meu
pai era bom. Ele está morto dentro do carro... Seu Agenor Soronho é o diabo grande...
Bate em todos os meninos do mundo... Mas eu sou enorme... Hmou! Hung! (...)
A sintonia de
pensamentos se revela através do monólogo interior dos bois, até que o menino
tem um sobressalto, dá um grito, uma varada, os bois arrancam de súbito todos
juntos, e Agenor, que vinha cochilando sentado, cai embaixo do carro e é
degolado, porque:
(...) ...uma rodeira
de carro, bem ferrada, chapeada nas bandejas e com o aro ondulado de gomos
metálicos, pesa no mínimo setenta quilos, mormente se, para cantar direito, foi
feita de madeira de jacaré ou de peroba-da-miúda, tirada no espigão...
O menino é socorrido
por dois cavaleiros, que lamentam a tragédia. Um deles se dispõe a conduzir o
carro, que prossegue, estrada afora, levando em sua carga dois defuntos em vez
de um só. E um menino vingado.
“Conversa de Bois”
pode ser considerado um conto fantástico se interpretarmos literalmente o
“transmimento de pensação” ocorrido entre o menino e os bois, em que o ódio
cego e primitivo de Tiãozinho pelo padrasto serve de energia mobilizadora para
os bois, que depois da violência perpetrada voltam ao normal:
Com os bois olhando.
Olhando e esperando. Calmos. Bons. Mansos. Bois de paz.
(foto: Cecilia Araujo de Oliveira)