sábado, 17 de fevereiro de 2018

4315) A arte da pontuação (17.2.2018)




Ninguém nos ensina isto na escola, de modo que é conveniente dizê-lo aqui: a pontuação de um texto é uma espécie de notação musical. Ela serve para nos indicar a melodiazinha que devemos imprimir a uma frase qualquer. Não é uma sinalização rígida, uniforme. Cada pessoa (cada “instrumentista da voz”) obedece do seu jeito, mas a intenção básica é uma só.

– Você vai ao cinema hoje?
– Você vai ao cinema hoje.
– Você vai ao cinema hoje?!

As melodias são diferentes, e cada uma delas impõe um sentido diferente.

Quando falamos, muitas vezes usamos uma inflexão de voz para impor uma interpretação ao que estamos dizendo. Digamos que queremos ironizar um termo qualquer; falando em voz alta dizemos, por exemplo:

– Hoje é sexta-feira à noite e meu pai ligou para casa dizendo que vai ficar “fazendo serão no escritório”...

As aspas aparecem aí para destacar o trecho que está sendo ironizado. O curioso é que linguagem falada e linguagem escrita se influenciam mutuamente, e de uns anos para cá se popularizou o gesto com os dedinhos indicador e médio de ambas as mãos erguidos no ar, mexendo-se, imitando visualmente as aspas, para destacar essa ironia.

As reticências servem, em sua origem, para indicar um pensamento que se interrompe no meio:

– Eu estava pensando em ir à praia hoje, mas...

Pelos caminhos tortos da retórica, acabaram servindo para indicar também um tom de voz um tanto queixoso, incerto, diferente da afirmativa pura e simples:

– Eu gostaria tanto de voltar a estudar...

É diferente de:

– Eu gostaria tanto de voltar a estudar!

A gente esquece às vezes a quantidade de usos que a pontuação simples pode ter. A pontuação pode ser muito expressiva quando a arrancamos das funções burocráticas de sempre. Por exemplo: ponto de interrogação indica que se está fazendo uma pergunta, e fim de papo. Mas pode ser usado também para reproduzir uma entonação de voz bem particular, como aqui:

Fulano percebeu que a porta do quarto da mãe estava apenas encostada. Não ouviu nenhum ruído lá de dentro. Receoso, aproximou-se, empurrou a porta de leve, e disse: – Mamãe?...

Não é uma pergunta propriamente dita, mas o tom de voz dessa cena só pode ser reproduzido através da interrogação.

O ponto parece um mero “encerrador de frases”, mas pode ser usado também como elemento expressivo. Vemos com muita frequência pessoas dando ênfase ao que falam através desse recurso:

Pessoal, por favor, não deixem de assistir “Caninos Rubros”. O. Melhor. Filme. De. Vampiro. Da. Década.

Uma das maiores dificuldades de quem estuda textos antigos é a ausência quase completa de pontuação. Documentos e textos, históricos e literários, da maior importância, são transcritos hoje com pontuação moderna, inexistente no original, para que a gente possa compreendê-los corretamente.

Na literatura, foi preciso muito tempo para surgir a pontuação com a riqueza de sinalizações que temos hoje. E nem tudo é universal. Nós brasileiros indicamos o diálogo com travessões; os norte-americanos indicam com aspas. Usamos itálicos ou negritos para indicar ênfase, ou, literariamente, para destacar um trecho do discurso que tem uma origem diferente do discurso principal.

Muitos leitores ainda têm dificuldade para sinalizar por conta própria um certo tipo de discurso livre que se impôs, pelo menos aqui no Brasil, ao longo da década de 1970:

Saí de rua afora, trânsito pesado, chuva forte vai cair, mas é isso mesmo, tou é puto, alguém vai me pagar, principalmente Seu Léo, muita cara de pau, chegar pra mim, é isso aí seu moleque, ou trabalha ou te meto pé na bunda, pé na bunda ele mete é na bunda da mãe dele, sou funcionário, não sou escravo, ele vai ver uma coisa, olá Roberto, boa tarde Dona Sandra, queria conversar com Seu Léo, ele está?

Essa narrativa livremente “virgulada” mistura, num mesmo plano, descrição de ambiente externo, lembranças do narrador, prefiguração de ações por parte do narrador, voz do narrador, vozes de outras pessoas... Tudo separado por vírgulas; fica para o leitor a tarefa de pegar cada segmento e ir pendurando no gancho mental correspondente.

Rubem Fonseca foi um dos grandes popularizadores deste estilo, que acho excelente, e só tem um grande defeito: as pessoas se acostumam a ler assim, escrever assim, e não sabem mais escrever sinalizando, não sabem usar maiúsculas, nem cortar parágrafo, nem pontuar. Virou um cobertor curto, cabeça coberta e pés de fora.

Um escritor como José Saramago criou para si umas poucas regras de pontuação pouco convencional. Essa pontuação é, pelos comentários que ouço, o principal obstáculo à sua leitura. Tem gente que simplesmente não consegue avançar, diante de uma sinalização como aquela.

Que nem é tão complicada assim. O problema é que nós, como leitores, já internalizamos essa sinalização. Não a vemos. Interpretamos subconscientemente o que nos é indicado através de vírgulas, dois-pontos, ponto-e-vírgula, travessão... Quando o autor resolve mexer nisso, nos faz tropeçar a cada frase, ressetar os critérios constantemente. Tem leitor que refuga. É como dirigir num carro em que as marchas foram trocadas de posição.








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