Ninguém nos ensina isto na escola, de modo que é conveniente dizê-lo aqui: a pontuação de um texto é uma espécie de notação
musical. Ela serve para nos indicar a melodiazinha que devemos imprimir a uma
frase qualquer. Não é uma sinalização rígida, uniforme. Cada pessoa (cada
“instrumentista da voz”) obedece do seu jeito, mas a intenção básica é uma só.
– Você vai ao cinema hoje?
– Você vai ao cinema hoje.
– Você vai ao cinema hoje?!
As melodias são diferentes, e cada uma delas impõe um
sentido diferente.
Quando falamos, muitas vezes usamos uma inflexão de voz
para impor uma interpretação ao que estamos dizendo. Digamos que queremos
ironizar um termo qualquer; falando em voz alta dizemos, por exemplo:
– Hoje é sexta-feira à noite e meu pai ligou para casa dizendo que vai
ficar “fazendo serão no escritório”...
As aspas aparecem aí para destacar o trecho que está
sendo ironizado. O curioso é que linguagem falada e linguagem escrita se
influenciam mutuamente, e de uns anos para cá se popularizou o gesto com os
dedinhos indicador e médio de ambas as mãos erguidos no ar, mexendo-se, imitando
visualmente as aspas, para destacar essa ironia.
As reticências servem, em sua origem, para indicar um
pensamento que se interrompe no meio:
– Eu estava pensando em ir à praia hoje, mas...
Pelos caminhos tortos da retórica, acabaram servindo para
indicar também um tom de voz um tanto queixoso, incerto, diferente da
afirmativa pura e simples:
– Eu gostaria tanto de voltar a estudar...
É diferente de:
– Eu gostaria tanto de voltar a estudar!
A gente esquece às vezes a quantidade de usos que a
pontuação simples pode ter. A pontuação pode ser muito expressiva quando a
arrancamos das funções burocráticas de sempre. Por exemplo: ponto de
interrogação indica que se está fazendo uma pergunta, e fim de papo. Mas pode
ser usado também para reproduzir uma entonação de voz bem particular, como
aqui:
Fulano percebeu que a porta do quarto da mãe estava apenas encostada.
Não ouviu nenhum ruído lá de dentro. Receoso, aproximou-se, empurrou a porta de
leve, e disse: – Mamãe?...
Não é uma pergunta propriamente dita, mas o tom de voz
dessa cena só pode ser reproduzido através da interrogação.
O ponto parece um mero “encerrador de frases”, mas
pode ser usado também como elemento expressivo. Vemos com muita frequência
pessoas dando ênfase ao que falam através desse recurso:
Pessoal, por favor, não deixem de assistir “Caninos Rubros”. O. Melhor.
Filme. De. Vampiro. Da. Década.
Uma das maiores dificuldades de quem estuda textos
antigos é a ausência quase completa de pontuação. Documentos e textos,
históricos e literários, da maior importância, são transcritos hoje com
pontuação moderna, inexistente no original, para que a gente possa
compreendê-los corretamente.
Na literatura, foi preciso muito tempo para surgir a
pontuação com a riqueza de sinalizações que temos hoje. E nem tudo é universal.
Nós brasileiros indicamos o diálogo com travessões; os norte-americanos indicam
com aspas. Usamos itálicos ou negritos para indicar ênfase, ou, literariamente,
para destacar um trecho do discurso que tem uma origem diferente do discurso
principal.
Muitos leitores ainda têm dificuldade para sinalizar por
conta própria um certo tipo de discurso livre que se impôs, pelo menos aqui no
Brasil, ao longo da década de 1970:
Saí de rua afora, trânsito pesado, chuva forte vai cair, mas é isso
mesmo, tou é puto, alguém vai me pagar, principalmente Seu Léo, muita cara de
pau, chegar pra mim, é isso aí seu moleque, ou trabalha ou te meto pé na bunda,
pé na bunda ele mete é na bunda da mãe dele, sou funcionário, não sou escravo,
ele vai ver uma coisa, olá Roberto, boa tarde Dona Sandra, queria conversar com
Seu Léo, ele está?
Essa narrativa livremente “virgulada” mistura, num mesmo
plano, descrição de ambiente externo, lembranças do narrador, prefiguração de
ações por parte do narrador, voz do narrador, vozes de outras pessoas... Tudo
separado por vírgulas; fica para o leitor a tarefa de pegar cada segmento e ir
pendurando no gancho mental correspondente.
Rubem Fonseca foi um dos grandes popularizadores deste
estilo, que acho excelente, e só tem um grande defeito: as pessoas se acostumam
a ler assim, escrever assim, e não sabem mais escrever sinalizando, não sabem
usar maiúsculas, nem cortar parágrafo, nem pontuar. Virou um cobertor curto,
cabeça coberta e pés de fora.
Um escritor como José Saramago criou para si umas poucas
regras de pontuação pouco convencional. Essa pontuação é, pelos comentários que
ouço, o principal obstáculo à sua leitura. Tem gente que simplesmente não
consegue avançar, diante de uma sinalização como aquela.
Que nem é tão complicada assim. O problema é que nós,
como leitores, já internalizamos essa sinalização. Não a vemos. Interpretamos
subconscientemente o que nos é indicado através de vírgulas, dois-pontos,
ponto-e-vírgula, travessão... Quando o autor resolve mexer nisso, nos faz
tropeçar a cada frase, ressetar os critérios constantemente. Tem leitor que refuga.
É como dirigir num carro em que as marchas foram trocadas de posição.
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