(ilustração: Salvador Dalí)
As palavras difíceis e as palavras fáceis são dois grandes testes para quem escreve. Podemos chamá-las também de palavras complicadas e palavras simples, ou então de palavras raras e palavras comuns. Tudo é a mesma coisa.
Acho que hoje em dia a grande maioria dos manuais ou das
oficinas literárias aconselha as pessoas a usarem palavras simples. Houve um tempo em que não era assim. Palavrório rebuscado (ou, mais simplesmente:
vocabulário difícil) era um sinal de talento, de erudição, de poder
social.
Principalmente no Brasil do século 19, um Brasil agrário com
milhões de analfabetos, pouquíssimas universidades, e uma elite dirigente que
sempre utilizou a cultura livresca e o diploma como filtros obrigatórios para a
ascensão social.
O povo podia ter a cultura que tivesse, mas só era
considerado culto quem fosse capaz de usar provérbios em latim, de citar
Sófocles ou Platão, de recitar em francês ou utilizar com propriedade termos
obscuros.
Muitos pretendentes a literatos dessa época costumavam
folhear o dicionário de caderno em punho, anotando palavras difíceis (Objurgatória!
Catafalco! Quejandos! Fâmulo! Tremebundo! Estentórico!) e depois procurando um
pretexto para enfiá-la nos seus artigos ou contos.
Um dos acusados desse cacoete é o quase esquecido Coelho
Neto (1864-1934), dono de um vocabulário sonoro e cheio de preciosidades, e que
foi por muito tempo considerado o maior escritor brasileiro.
Abro ao acaso uma página de seu melhor romance, A
Conquista, e logo dou de cara com “um pardieiro sombrio e lôbrego”,
“lazarone”, “racimos”, “corbelhas”, “tresandava”, “comezaina”, “vinhaça”... Podemos dar o desconto de que alguns destes
termos fossem comuns em 1899, ano do livro; mas a gente vê que Coelho Neto não
era autor de colocar uma palavra direta se dispusesse de um sinônimo enfeitado
e obscuro.
Uma boa comparação de estilo pomposo e estilo claro pode ser
feita entre seus textos e os de Lima Barreto no recente livro Lima Barreto
versus Coelho Neto: Um Fla-Flu Literário, de Mauro Rosso, que compara os
artigos de ambos a respeito do futebol.
Guimarães Rosa é um dos primeiros exemplos que nos ocorrem
quando pensamos numa linguagem arrevezada, troncha, abstrusa... Palavras complicadas pareciam não faltar no
seu embornal, e qualquer página aberta também ao acaso, como esta de Tutaméia,
nos dá “intruge-se”, “lepidão”, “quizília”, “uca”, “sipipira”...
Entram aí regionalismos, arcaísmos, formações novas a partir
de radicais conhecidos. De tantas em
tantas linhas uma palavra parece saltar da página e ficar de pé, oferecendo-se
ao exame, pedindo para ser interpretada e encaixada na frase. (E muitas vezes percebemos que a própria
frase já nos indica ou insinua o que ela veladamente diz – e nisto reside uma
das artes do escrever difícil.)
E depois que o leitor pega o tom da voz narrativa de Rosa,
torna-se um prazer a mais esse descascar das palavras novas para vê-las por
dentro.
Existem autores que escrevem difícil numa outra clave
musical, quer dizer, com o propósito de despertar um outro tipo de resposta no
leitor.
Há o caso curioso do curitibano Paulo Leminski, cujos poemas
curtos eram de uma admirável limpidez de linguagem, e que por outro lado nos
deu um dos romances de vocabulário mais idiossincrático em nossa literatura, o Catatau
(1975). Nele encontramos trechos
destemperados como:
“Runáticos, versitergeremos,
certo. Nome, porém, não trocaremos por
sinamônico algum nenhúnico! Posso
provar: tenho aprovação própria. Pensar
por pensar. Some um círio suando de
pensar, aceso na cabeça e as formigas me comendo e me levando em partículas
para suas monarquias soterradas”.
A citação mais longa é necessária para dar idéia do sabor do
texto, da metralhadora verbal com que o autor dispara aparentes disparates
sobre nós.
O romance de Leminski cria um delírio verbal num tom
desorientado (mas mantido do princípio ao fim com admirável coerência) para
contar a história da viagem imaginária de René Descartes ao Brasil e a
impressão que nosso mundo tropical e suas ervas alucinógenas despertam em sua
mente lógica e científica.
Neste caso, juntam-se palavras inventadas, palavras
indecifráveis, palavras híbridas, pedaços de raízes gregas e latinas,
fragmentos do tupi ou de gírias e jargões específicos.
A palavra vale um pouco pelo que significa em si, mas talvez
valha até mais em função do quanto sustenta essa voz narrativa: caótica,
estilhaçada, multicultural.
Gabriel Garcia Márquez costumava afirmar que coloca muitas
palavras nos seus textos sem muita atenção para o seu significado, mas apenas
pela sua capacidade de manter e prolongar certa musicalidade necessária ao
encantamento da prosa. “Basta uma
palavra no lugar errado”, dizia ele, “e todo o efeito vai por água abaixo”.
Imagino que Coelho Neto queria exibir, para prazer seu e do
leitor, seu preciosismo e erudição; que Rosa queria trazer para a língua geral,
dentro da jurisdição de seus romances, certos processos internos do linguajar
do homem do sertão mineiro.
E que Leminski produzia um caos ordenado para desequilibrar
a tendência raciocinante e lógica do leitor e fazê-lo viver a experiência do
mundo por dentro do personagem, de suas palavras (e um personagem literário,
qualquer um, é uma criatura feita apenas de palavras e nada mais).
A palavra difícil exige esforço do leitor, e convém que ele
receba em troca alguma coisa.
(Uma outra versão
deste texto foi publicada na revista Língua Portuguesa, da Editora
Segmento, São Paulo, # 64, fevereiro de 2011 )
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