quarta-feira, 29 de março de 2017

4221) A arte da leitura (29.3.2017)



As contas de somar e de multiplicar são o único exemplo, em todo o Universo, de uma situação em que “a ordem dos fatores não altera o produto”.  (Ok, sei que não são o único, mas é de outra coisa que vou falar, isto aqui é mero pretexto.)

Se você estuda literatura, cinema, teatro, quadrinhos, qualquer arte narrativa, você aprende que “a ordem dos fatores é a principal maneira de alterar o produto”, sendo “produto” no caso a impressão produzida na mente do público.

Ordem é tudo. Não “ordem” no sentido de “coisa organizada, toda arrumadinha, sem mexer uma pestana”. Ordem no sentido da “sucessão temporal das experiências”: a sucessão das palavras, dos sons, das imagens.

As escolas de cinema mostram aos alunos o Experimento Kulechov, de um cineasta russo. Ele pegou o mesmíssimo plano de um ator e o mostrou a três turmas. Na primeira, após a imagem do ator vinha a de um prato de comida. Na segunda, um revólver. Na terceira, uma criança brincando. Os três grupos descreveram a expressão do ator (que, aliás, tinha sido filmado sem olhar para nada específico) como de “fome”, “ameaça” e “ternura”.  (Os numerosos relatos sobre o experimento mudam sempre os exemplos – mas o princípio é o mesmo.)

Toda a teoria de montagem nasceu dessa teoria da justaposição e sequência dos planos.  Desde os pioneiros do cinema norte-americano como Griffith e Chaplin, até a vanguarda russa, o expressionismo alemão, todo o alicerce do cinema nasceu desse princípio básico.

Toda narração, e por extensão toda sequência, é uma sintaxe. O que vem antes influencia o que vem depois.

Alguem há de lembrar o famoso Capítulo XXXIII das Memórias Póstumas de Brás Cubas, onde Machado de Assis faz o seu narrador conhecer uma jovenzinha linda, Eugênia – linda e vivendo seus últimos anos de inocência, inocência da qual o valoroso Brás a ajuda a se desvencilhar. Acontece que Eugênia é coxa de uma perna, o que leva o narrador, enquanto lhe desfruta de leve os atributos, a chamá-la de “Vênus Manca”, e a se consumir em filosofias insones:

O pior é que era coxa. Uns olhos tão lúcidos, uma boca tão fresca, uma compostura tão senhoril; e coxa! Esse contraste faria suspeitar que a natureza é às vezes um imenso escárnio. Por que bonita, se coxa? por que coxa, se bonita? Tal era a pergunta que eu vinha fazendo a mim mesmo ao voltar para casa, de noite, sem atinar com a solução do enigma. 

Como sempre, a arte de Machado está na maneira de arrumar verbalmente os fatos e as idéias. “Por que bonita, se coxa? Por que coxa, se bonita?”. 

A primeira pergunta nos faz pensar: “Que diabos, por que desperdiçar beleza numa criatura que puxa duma perna? Por que a Natureza ou a Providência Divina não a fizeram logo feia, para que nós, os rapazes sedutores que vivem de rendas, sem trabalhar, não perdêssemos tempo tentar roubar-lhe um beijo, e o que vem depois do beijo?”

Mas Brás Cubas, sem conseguir pegar no sono, também pensa: “Por que coxa, se bonita?” Se a menina é bonita, a boniteza talvez lhe seja um atributo mais essencial, mais genético, do que o defeito físico. Por que então, Senhor, dar a ela essa marca de Caim, esse argueiro que impede a apreciação tranquila da beleza? Por que obrigar, com esse defeito, que o próprio Brás Cubas, tão disposto a conquistas, se demorasse nesta apenas um fim de semana?

O que vem antes influi, condiciona, impõe um viés ao que vem depois, e que será necessariamente assimilado à luz do que foi lido primeiro.

Um conhecido poema de Bertolt Brecht usa esse recursos para nos fazer pensar na contradição insolúvel entre as soluções individuais para problemas coletivos e as soluções coletivas para problemas individuais. (A tradução é minha, da versão inglesa de George Rapp).

UMA CAMA PARA PASSAR A NOITE

Ouvi dizer que em Nova York
na esquina da Rua 26 com a Broadway
há um homem que fica, durante os meses do inverno,
pedindo aos transeuntes que passam por ali
um lugar para os sem-teto dormirem.

Isso não vai mudar o mundo.
Isso não vai melhorar as relações entre os homens.
Isso não vai abreviar a era da exploração;
mas
alguns homens vão ter uma cama onde passar a noite;
naquela noite, pelo menos, o vento não vai maltratá-los,
e a neve destinada a eles vai cair na calçada vazia.

Não abaixe o livro quando ler isto, leitor.

Alguns homens vão ter onde passar a noite;
naquela noite, pelo menos, o vento não vai maltratá-los,
e a neve destinada a eles vai cair na calçada vazia;
mas
isso não vai mudar o mundo.
Isso não vai melhorar as relações entre os homens.
Isso não vai abreviar a era da exploração.

Lendo isso, ficamos como os fantasmas de Tim Powers, que se deixam hipnotizar por palíndromos porque não conseguem parar de lê-los da frente pra trás e de trás pra frente.

O otimismo da solução individual (estrofe 2) nos anima, porque somos indivíduos, e quem já dormiu ao relento em noite fria porque não tinha opção sabe o quanto é importante ter um lugar quente onde dormir numa noite de inverno.


O pessimismo da ausência de solução coletiva (estrofe 4) também nos anima, porque há indivíduos que, quando conseguem finalmente um lugar quente onde dormir numa noite de inverno, deitam-se, cobrem-se com a manta, apagam a luz, aconchegam-se ao travesseiro, mas nesse instante abrem os olhos e pensam: “E os outros?”. 





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