As contas de
somar e de multiplicar são o único exemplo, em todo o Universo, de uma situação
em que “a ordem dos fatores não altera o produto”. (Ok, sei que não são o único, mas é de outra
coisa que vou falar, isto aqui é mero pretexto.)
Se você estuda
literatura, cinema, teatro, quadrinhos, qualquer arte narrativa, você aprende
que “a ordem dos fatores é a principal maneira de alterar o produto”, sendo
“produto” no caso a impressão produzida na mente do público.
Ordem é tudo. Não
“ordem” no sentido de “coisa organizada, toda arrumadinha, sem mexer uma
pestana”. Ordem no sentido da “sucessão temporal das experiências”: a sucessão
das palavras, dos sons, das imagens.
As escolas de
cinema mostram aos alunos o Experimento Kulechov, de um cineasta russo. Ele
pegou o mesmíssimo plano de um ator e o mostrou a três turmas. Na primeira,
após a imagem do ator vinha a de um prato de comida. Na segunda, um revólver.
Na terceira, uma criança brincando. Os três grupos descreveram a expressão do
ator (que, aliás, tinha sido filmado sem olhar para nada específico) como de
“fome”, “ameaça” e “ternura”. (Os
numerosos relatos sobre o experimento mudam sempre os exemplos – mas o
princípio é o mesmo.)
Toda a teoria de
montagem nasceu dessa teoria da justaposição e sequência dos planos. Desde os pioneiros do cinema norte-americano
como Griffith e Chaplin, até a vanguarda russa, o expressionismo alemão, todo o
alicerce do cinema nasceu desse princípio básico.
Toda narração, e
por extensão toda sequência, é uma sintaxe. O que vem antes influencia o que
vem depois.
Alguem há de
lembrar o famoso Capítulo XXXIII das Memórias
Póstumas de Brás Cubas, onde Machado de Assis faz o seu narrador conhecer
uma jovenzinha linda, Eugênia – linda e vivendo seus últimos anos de inocência,
inocência da qual o valoroso Brás a ajuda a se desvencilhar. Acontece que
Eugênia é coxa de uma perna, o que leva o narrador, enquanto lhe desfruta de
leve os atributos, a chamá-la de “Vênus Manca”, e a se consumir em filosofias
insones:
O pior é que era coxa. Uns
olhos tão lúcidos, uma boca tão fresca, uma compostura tão senhoril; e coxa!
Esse contraste faria suspeitar que a natureza é às vezes um imenso escárnio.
Por que bonita, se coxa? por que coxa, se bonita? Tal era a pergunta que eu
vinha fazendo a mim mesmo ao voltar para casa, de noite, sem atinar com a
solução do enigma.
Como sempre, a
arte de Machado está na maneira de arrumar verbalmente os fatos e as idéias. “Por
que bonita, se coxa? Por que coxa, se bonita?”.
A primeira
pergunta nos faz pensar: “Que diabos, por que desperdiçar beleza numa criatura
que puxa duma perna? Por que a Natureza ou a Providência Divina não a fizeram
logo feia, para que nós, os rapazes sedutores que vivem de rendas, sem
trabalhar, não perdêssemos tempo tentar roubar-lhe um beijo, e o que vem depois
do beijo?”
Mas Brás Cubas, sem
conseguir pegar no sono, também pensa: “Por que coxa, se bonita?” Se a menina é
bonita, a boniteza talvez lhe seja um atributo mais essencial, mais genético,
do que o defeito físico. Por que então, Senhor, dar a ela essa marca de Caim,
esse argueiro que impede a apreciação tranquila da beleza? Por que obrigar, com
esse defeito, que o próprio Brás Cubas, tão disposto a conquistas, se demorasse
nesta apenas um fim de semana?
O que vem antes
influi, condiciona, impõe um viés ao que vem depois, e que será necessariamente
assimilado à luz do que foi lido primeiro.
Um conhecido
poema de Bertolt Brecht usa esse recursos para nos fazer pensar na contradição
insolúvel entre as soluções individuais para problemas coletivos e as soluções
coletivas para problemas individuais. (A tradução é minha, da versão inglesa de
George Rapp).
UMA CAMA PARA PASSAR A NOITE
Ouvi dizer que em Nova York
na esquina da Rua 26 com a
Broadway
há um homem que fica, durante
os meses do inverno,
pedindo aos transeuntes que
passam por ali
um lugar para os sem-teto
dormirem.
Isso não vai mudar o mundo.
Isso não vai melhorar as
relações entre os homens.
Isso não vai abreviar a era da
exploração;
mas
alguns homens vão ter uma cama
onde passar a noite;
naquela noite, pelo menos, o
vento não vai maltratá-los,
e a neve destinada a eles vai
cair na calçada vazia.
Não abaixe o livro quando ler
isto, leitor.
Alguns homens vão ter onde
passar a noite;
naquela noite, pelo menos, o
vento não vai maltratá-los,
e a neve destinada a eles vai
cair na calçada vazia;
mas
isso não vai mudar o mundo.
Isso não vai melhorar as
relações entre os homens.
Isso não vai abreviar a era da
exploração.
Lendo isso,
ficamos como os fantasmas de Tim Powers, que se deixam hipnotizar por
palíndromos porque não conseguem parar de lê-los da frente pra trás e de trás
pra frente.
O otimismo da
solução individual (estrofe 2) nos anima, porque somos indivíduos, e quem já
dormiu ao relento em noite fria porque não tinha opção sabe o quanto é
importante ter um lugar quente onde dormir numa noite de inverno.
O pessimismo da
ausência de solução coletiva (estrofe 4) também nos anima, porque há indivíduos
que, quando conseguem finalmente um lugar quente onde dormir numa noite de
inverno, deitam-se, cobrem-se com a manta, apagam a luz, aconchegam-se ao
travesseiro, mas nesse instante abrem os olhos e pensam: “E os outros?”.
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