(foto: Dantinhas Vilar)
E lá fui eu mais uma vez parar em São José do Egito (PE),
para a Festa do Rei, que celebra a data de nascimento do cantador Lourival
Batista, o famoso “Louro do Pajeú”. Este ano o mote da festa foi: “102 anos de
Louro / e 100 de Zezé Lulu”. Não cheguei a conhecer pessoalmente este último,
cujos versos aparecem em todas as antologias, mas fui amigo de Louro, vi-o
cantar pelo Brasil afora numa excursão, e muitas vezes nos bares de Campina
Grande.
Louro era chamado o Rei do Trocadilho, pela sua obsessiva
mania de desmontar e remontar palavras, refazendo-lhes o som e o sentido. Um
dos seus versos mais famosos diz:
Você diz que eu sou
pobre
isso é desgraça
perene
mas tire o P, bote
um N
e eu acabo sendo
nobre...
Troque por C, fica
cobre;
cobre é parente de
ouro;
botando um T fica
touro
como a carne e
vendo a pele;
o T sem o traço é L
e eu fico mesmo por
Louro.
Isso é da mesma família dos “doublets” ("dublês"), as mutações
verbais praticadas por Lewis Carroll (o de Alice
no País das Maravilhas), onde ele
transformava GOOD em EVIL trocando uma letra por vez (e cada palavra resultante
tem que ser obrigatoriamente uma palavra de verdade, de uso corrente). Augusto
de Campos adaptou essa brincadeira para o português, produzindo séries como BEM
/ sem / som / sol / sal / MAL, etc.
Acho que é o mesmo jogo a que Vladimir Nabokov (“Pale
Fire”, na nota à linha 812 do poema) se refere como “Word Golf”, onde se
transforma HATE em LOVE em três estágios, e LIVE em DEAD em cinco (“com LEND no
meio”). Uma arte que no Brasil teve também entre seus praticantes o poeta
Augusto de Campos:
("doublets" de Augusto de Campos)
Mas enfim. Lá me fui para São José do Egito na
confortável carona de Leimar de Oliveira e Maria Inês, comparsas fiéis de várias
décadas. No trajeto Campina-São José fomos vendo a caatinga esturricada. Entre
o Natal e o Ano Novo caiu um dia de chuva em Campina, e bastou isso para que a vegetação
na estrada para o Sertão estivesse verde pela metade.
Lancei na festa meu livro Cantoria: Regras e Estilos, volume 1 da série "Arte e Ciência da Cantoria de Viola" (Ed. Bagaço, Recife), o que só aconteceu
graças à insistência de Amaro Filho e Cláudia Moraes, da Página 21 (que produz
o evento) e à acolhida sempre carinhosa da família Marinho, descendentes de
Louro, tendo à frente Antonio Marinho, meu parceiro em outros trabalhos. (O
nome de Lourival era Lourival Batista Patriota; a família usa artisticamente o
sobrenome Marinho, da linha materna, que descende do grande Antonio Marinho, o
primeiro cantador que Ariano Suassuna viu cantar, quando era menino.)
Reencontrei Zé de Cazuza, o homem-gravador, paraibano véi
que é a memória viva de cantoria, e com 87 anos sabe tanto verso que se fosse
recitar tudo ia precisar de outro-tanto de prazo. Me recitou versos fesceninos,
sonetos de Rogaciano Leite, repentes geniais de cantadores cujo nome nunca
ouvi.
Aqui, um pequeno vídeo sobre Zé, pela TV Itararé de
Campina Grande:
Reencontrei Dedé Monteiro, o poeta de Tabira que
recentemente foi reconhecido como “Patrimônio Vivo de Pernambuco” pela
Fundarpe, poeta do coração grande, do gesto elegante e da palavra precisa.
Aqui, um vídeo de Dedé recitando um dos seus poemas mais conhecidos, “Fim de
Feira”:
Direis agora: é uma festa da velha guarda? Sim, mas a jovem guarda também pisa no palco.
Vi apresentação de bandas heavy metal de São José homenageando um jovem
integrante falecido no ano passado, Carlinhos Veras, cantando metal em inglês
mas também um belo e vigoroso arranjo para “Assum Preto” de Gonzaga e Humberto
Teixeira. (Furar os olhos dum passarinho pra ele cantar melhor. Tem coisa mais
heavy metal do que a letra dessa música?!).
Shows com bandas jovens como Em Canto e Poesia (dos
irmãos Antonio, Greg e Miguel Marinho), Vozes e Versos (que fez uma bela
recriação do meu “Caldeirão dos Mitos”), As Severinas (uma das melhores bandas
femininas de forró que se pode encontrar por aí), e até do Spock Quinteto, do
Recife, trazendo frevo e ciranda para a festa do Sertão.
Teve uma mesa de glosa cheia de suspense e bem conduzida por Jorge Filó; teve a projeção de filmes sobre o universo da cantoria, com destaque para "Maria" de Carol Correia e "O silêncio da noite é que tem sido testemunha das minhas amarguras" de Petrônio Lorena, sobre a dama-da-noite Severina Branca, musa de muitos poetas boêmios de São José, hoje octogenária e bem humorada, sentada na fila da frente.
Teve uma mesa de glosa cheia de suspense e bem conduzida por Jorge Filó; teve a projeção de filmes sobre o universo da cantoria, com destaque para "Maria" de Carol Correia e "O silêncio da noite é que tem sido testemunha das minhas amarguras" de Petrônio Lorena, sobre a dama-da-noite Severina Branca, musa de muitos poetas boêmios de São José, hoje octogenária e bem humorada, sentada na fila da frente.
Tive também a alegria de receber a visita de Dantas
Suassuna e Dantinhas Vilar, que estavam em Taperoá e queimaram o chão quando
souberam que eu estava em São José, porque temos projetos em comum que serão anunciados
no momento propício.
E para que isto aqui não fique parecendo uma enorme
coluna social, um pouquinho de reflexão. A festa de Louro é uma festa que
celebra velhos poetas centenários, mas também é uma festa realizada por jovens.
Jovens como eu fui um dia, curiosos de conhecer não apenas o andar térreo do
mundo, que é o presente, mas todos os demais andares daí pra cima, que são os
séculos acumulados no arranha-céu do Tempo.
Porque só o Passado existe. O presente é uma luz
estroboscópica piscando entre o instante, a memória e a imaginação. Tudo que
existe de material e imaterial no mundo pertence ao passado. O tênis que estou
calçando, o café que tomo, o pão quente que estou comendo agora, tudo isto foi
feito no passado. O futuro é uma aposta, uma suposição de fé.
Uma vez eu discutia com um amigo punk sobre “essa mania
que os nordestinos têm de cultuar o passado”. Passado para ele, naquela conversa específica, eram os
Beatles. Perguntei: “Quem é o presente, então?”. Ele disse “Os Ramones”. Eu
disse: “Rapaz, os Ramones são passado também, aliás, se for fazer uma
estatística, no cemitério já tem mais Ramone do que Beatle.”
Tudo é passado. A música do século 18, o cinema do século
20, o rock de 2016 e o jornal de ontem são passado. A epopéia de Gilgamesh, as
lendas do Rei Artur, tudo são partes do passado, mas se mantêm vivas no
presente, graças a nossa memória e nossa recriação.
Sim: na memória, que mantém vivos tanto os Beatles quanto os
Ramones. Lá, os dois são contemporâneos de Dedé Monteiro e Zé de Cazuza, são
contemporâneos de Lewis Carroll e de Lourival Batista.
O passado que continua acontecendo agora, através de
alguém, é tão presente quanto as coisas que acabam de brotar pela primeira vez. Na
frase famosa de William Faulkner, “o passado não morreu, ele nem terminou de
passar ainda”. Podemos dizer também que não existem o passado, o presente e o
futuro. Só existem dois tempos: o Passado e o Passando.
E dou a cara a bofete se na festa dos 200 anos de Louro
não houver rock, forró, cantoria, mesa de glosa, cerveja em lata e
churrasquinho no espeto de pau (porque ninguém é de ferro).
4 comentários:
Nem o espeto. Show de memórias.
Relato bem ralatado
Que eu li atentamente
Se li, está no passado
Mas quando li, foi presente.
Valeu o reencontro, poeta véi...
Relato bem ralatado
Que eu li atentamente
Se li, está no passado
Mas quando li, foi presente.
Valeu o reencontro, poeta véi...
Valeu o reencontro, Jorge Filó. Ficou faltando aquelas duas horas de mesa, cerveja e conversa comprida, mas está sempre em aberto na agenda. :-)
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