“Existe o tempo de apertar o pavio da vela”, diz o Eclesiastes, “e o tempo de acender.”
Não, o Eclesiastes não diz especificamente
isto, mas a verdade é que os tempos se sucedem em função de uma lei causal, não
em função de nossa conveniência. O regimento interno do mundo tem um artigo dizendo
que cada coisa na vida vem, ou deveria idealmente vir, o que dá no mesmo, no
momento certo para a gente desfrutar.
Isto
é tudo que conseguimos saber, e uma pequena parte do que deveríamos.
Em vista disto, proponho meu axioma número um: “O tempo
certo para o Natal é a nossa infância”. Como diria Sinhozinho Malta,
chacoalhando a joalharia: “Tô certo ou tô errado?”.
Na infância, até o mais
salafrário dos futuros raparigueiros é a pureza em pessoa. Ele acredita que o
algodão é neve, e acreditaria que crediário é dinheiro, se alguém se dispusesse
a lhe explicar. Acredita na existência de Papai Noel, e se alguém lhe mostrasse
o quanto é improvável esse “plot” envolvendo Lapônia, renas, trenó, tempo hábil
de deslocamento e distribuição logística de cargas, ele retrucaria com o mais
invulnerável dos argumentos, um fato: a caixa com o sonhado PlayStation
reluzindo ao pé do pinheirinho piscante.
A infância é o tempo do Natal, de rasgar sofregamente o
papel estampado, quase arrebentar a tampa de papelão que se ergue como
Derradeiro Obstáculo à Visão Beatífica... E o que sai lá de dentro? Uma
divindade refulgente? Não, apesar do tributo pago ao bezerro de ouro: um sonho
impossível tornado realidade.
O sonho de fazer teletransportar, mediante
anseios, meios-pedidos, sugestões, melancolias inexplicáveis, dedos
hesitantemente correndo sobre uma página de revista e indicando um produto ao
olho presciente e calculista de um adulto, enfim: teletransportar por meios psico-econômico-científicos
desconhecidos (mas certamente eficazes) um objeto que estava numa vitrine lá no
centro da cidade para uma caixa de papelão aqui no meu colo, e não é por outro
motivo que ainda hoje vou às lágrimas quando ouço Luís Bordón – A Harpa e a Cristandade.
Corramos um véu sobre as chantagens, as alianças
espúrias, as delações premiadas, os subornos imperceptíveis, as guinadas
morais, as vergonhas-alheias, os inesperados triunfos, as imprevistas responsabilidades,
tudo o que a infância nos obriga a executar para virar gente. O fato é que, quando abrimos os olhos, ela se
foi de repente. Negociamos tanto para sair dela, e agora a porta dela se fechou
e é só para a frente que podemos saltar.
E vamos parar na famosa juventude. Ponho de novo a coroa-de-louros de profeta e
anuncio o axioma número dois: “O tempo certo para o Carnaval é a juventude”.
Pense
numa festa e num período pra darem certo que só caçuá em bêsta! A juventude é uma doença infantil da vida
humana. A gente pensa que de agora em diante tudo vai ser gratificação
dionisíaca, com breves intervalos de poesia apolínea para acalmar os batimentos
cardíacos. E o Carnaval nos serve como uma luva de carne.
Não há melhor época para entender a essência do Carnaval do
que a febre hormonal dos vinte e tantos anos. Diante daquela coorte de deusas eufóricas,
de odaliscas lantejouladas, de huris de vinho em punho, de hetaíras ressumantes,
o sujeito olha para a câmera ou a quarta-parede imaginária, diz: “Se eu gritar
por socorro não me salve”, e pula. É Carnaval; todos pulam. Todos pularam. Eu também
pulei.
Carnaval tem uma coisa interessante que é o desabrochar
de carismas nas circunstâncias em que aparentemente todos se nivelam em torno
do canto do bode. E eu já fui testemunha, protagonista e coadjuvante em mil
cenas onde o carisma salvador brotou do ator menos provável, do papel menos
favorável, do arranjo menos ad-hoc.
Vi noitadas de farra em que o talento que mais brilhou foi o talento inconteste
celebrado por todos, e vi noitadas em que um talento obscuro se ergueu e o
eclipsou a ponto de fazê-lo bater palmas com os demais e louvar a divindade da Lua,
a deusa que muda todo mês, mais esperta e mais safa do que o Sol, que só muda de
luz quando Ela atravessa o seu caminho.
Não posso me alongar sobre o Carnaval sem reviver aquelas
horas que eram como correntinhas-de-clipes, intermináveis, reiterativas, sempre
parecidas e sempre diferentes, variações barrocas em torno de uma tema gozoso
que nos aprisionava em chuva, suor e cerveja.
Quem brincou um Carnaval já foi
jovem, mesmo que tenha estreado nesse ramo com mais de setenta. Quem quiser que
reclame. O fato é que quem estava acendendo cigarro com fogo e bebendo álcool éramos
nós, mas curiosamente, historicamente, estatisticamente, quando alguém tocava
fogo no mundo não era um de nós, em geral, era um deles.
Muito bem. Chega de acondicionar com circunlóquios o
Inefável. E para a velhice, a madureza (dirá o leitor), qual a festa que mais
se enquadra? E eu vos direi: o São João.
São João não é necessariamente uma festa
de velhos, mas é pra quem já deu voltas no circuito e sabe o formato da pista.
O formato envolve plantio, colheita, consumo e plantio. O formato envolve gozo,
sofrimento, morte e ressurreição. O formato envolve, neste caso específico, fogo e inverno.
O Natal é uma festa voltada para o Futuro (“tudo sempre vai ser
bonito assim, acredite, é para sempre”), o Carnaval para o Presente (“nada será
como antes amanhã”), mas o São João é uma festa voltada não propriamente para o
Passado, mas para o Passar.
A lenha, o fogo, a cinza.
O fogo, a cinza, a terra.
A
cinza, a terra, a lenha.
A terra, a lenha, o fogo.
A lenha, o fogo, a cinza.