quinta-feira, 30 de julho de 2015

3880) O ator que ninguém vê (31.7.2015)



Não é que a gente não o veja, se bem que em algum caso muito específico possa chegar a isso. É que a gente não o enxerga a ponto de poder reconhecê-lo de cara limpa. Os atores que interpretam papéis como o de Freddy Kruger em A Hora do Pesadelo ou o de Jason em Sexta Feira 13 têm as caras dos seus personagens. Sempre que vi a foto desses atores, seus rostos se diluíram em redundância e anonimato. Nem sei como se chamam; para mim são vidas humanas destinadas a animar arquétipos malignos.

Lembrei agora de Darth Vader, um daqueles vilões cujos rosto nunca vimos, a não ser em alguns segundos de um terrível clímax. Pouca gente sabe que o ator que emprestou voz e movimentos a Lord Vader é aquele mesmo coadjuvante marombado que, em Laranja Mecânica de Kubrick, empurra a cadeira de rodas do escritor inválido, Patrick McGee, depois deste ser espancado pela gang de Alex. O nome dele está perto e longe, a dois cliques de distância. Trabalhou em dois grandes sucessos do século, e a maioria das pessoas não sabe que o viu duas vezes.

Jason e Vader não se revelam porque usam máscaras, mas alguns efeitos são ainda mais radicais. Quem é aquele ator que faz o Gollum de O Senhor dos Anéis, de Peter Jackson? Não faço idéia, embora tenha lido extensas matérias descrevendo as trucagens utilizadas para dar movimento ao personagem. O ator ganha ingressos para a première do filme, e tudo o mais, mas não sei se os moleques dele são capazes de apontar: “Lá está papai!”.

Quando vi pela primeira vez O Homem Elefante de David Lynch eu já tinha visto alguns filmes com John Hurt, ator de quem sempre gostei. Ninguém faz melhor do que ele o papel de um underdog, um escorraçado, um cagado-da-coruja, um cara cuja razão de vir ao mundo é passar por algo terrível: ele é o Winston do 1984 de Michael Radford, é o cientista em cujo peito explode o Alien em O 8o. Passageiro. Não o reconheci como o homem elefante do título por causa do bolo-de-noiva de maquilagem que foi obrigado a receber. Por mim, qualquer outro ator teria produzido o mesmo resultado. (Sim sei que não; mas sentimos a ausência de um rosto.)

Em casos assim o ator serve ao personagem desaparecendo dentro dele, deixando que somente o personagem seja visto e aplaudido, como um Homem da Meia Noite que percorre as ladeiras de Olinda sem que a multidão se pergunte quem carrega aos ombros aquela marmota. O ator tem às vezes a humildade de sumir nos corredores e nos sótãos do personagem, perder-se ali, mas encontrar o lugar secreto onde é possível, esquecido de todos, percebido por ninguém, tocar as emoções do personagem como quem toca um piano num terraço escuro.


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