(As brancas jogam, e dão mate em dois lances)
Quem não é aficionado de xadrez pensa que um problema de
xadrez é a mesma coisa que uma partida de xadrez, mas não é. Uma partida é um jogo entre adversários. Como
em qualquer jogo, parte de uma situação inicial sempre a mesma, e vai
refletindo a disputa de forças que passa a acontecer. Um problema de xadrez é outra coisa. É uma situação imaginária, proposta numa
revista ou jornal. Envolve poucas peças, e o desafio: “As brancas dão
xeque-mate em três lances”, ou “as pretas deixam o jogo empatado com dois
lances”, coisas assim.
A graça do problema é você saber, pelo enunciado, que
existe, sim, uma combinação de jogadas que conduz ao resultado anunciado. Fogo é encontrar, porque às vezes é preciso
um raciocínio meio não-convencional para achar a resposta. No problema, aliás, isso é até mais fácil de
acontecer, porque não houve toda uma partida cheia de peripécias e de intenções
não-alcançadas, para chegar até ali.
Numa partida de verdade é mais fácil ficar preso à narrativa que aquele
momento do jogo está propondo. Num
problema, não: chega-se emocionalmente zerado ao que na verdade é um desfecho.
Nos romances de Raymond Chandler, um dos hobbies do
detetive Philip Marlowe é o xadrez, mas não me lembro de nenhuma história em
que Marlowe dispute uma partida com quem quer que seja. Ele volta para casa à noite (mora sozinho),
toma banho, ouve música no rádio, prepara comida, come, depois pega o tabuleiro
e arma um problema, ou reconstitui uma partida inteira entre dois mestres do
passado, como um pianista que volta a tocar um Noturno para não se esquecer.
Um problema é uma pequena obra de ficção enxadrística. Como no romance, imaginamos a existência de
uma imensa teia de narrativas prévias, não-contadas, que desaguam naquele texto
que começamos pelo “Capítulo 1”. Um
romance é uma história que vai acontecer, e um problema de xadrez é uma
história de que não vimos o começo mas vamos ter que adivinhar seu possível
fim. Teoricamente seria possível
prolongar indefinidamente aquela partida, mas a certeza da existência de uma
solução radical, uma guilhotina instantânea, leva o jogador a não descansar
enquanto não a encontra.
4 comentários:
Embora o Millôr Fernandes achasse que "o xadrez desenvolve a capacidade de jogar xadrez", o jogo é sempre inspirador. Duas brilhantes provas são os seguintes livros policiais focados no xadrez: 1) O Quadro Flamenco, fascinante história detetivesca, duas tramas em uma. http://www.travessa.com.br/o-quadro-flamenco/artigo/46d1457d-7c88-4558-953a-8c3fee0e70ec
2) A Variante Lüneburg, história mix do jogo com perseguição nazi.
Ambos imperdíveis, Braulio. Abração!
Raciocínio meio não-convencional tipo uma torre se entregar para um peão?
Mate em dois.
Não precisa dizer que as brancas jogam.
...
Os problemas de mate em dois me reportam a discussão entre suspense e susto.
O mate em dois é o suspense do xadrez, você sabe que está lá, mas como encontrá-lo?
Vocês escolheu um belo problema.
A trama vai se desenrolando enquanto você estuda os movimentos e contra-movimentos.
Spoiler a seguir:
A história desse problema, onde o sacrifício de uma peça nobre permite ao plebeu peão ganhar a partida é elegante.
Mesmo que o sacrifício não seja completo, pois para o adversário uma jogada que despreza o sacrifício mas ainda perde a partida é possível, ele sempre existe como solução ideal.
Mate em dois são como contos, que tem pouco tempo para contar a história.
Qual será a necessidade da presença do bispo no problema?
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