quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

3115) O lutador de Bandeira (21.2.2013)




("Êxtase de Santa Teresa", de Bernini)


Manuel Bandeira refere-se também, a respeito dos seus poemas feitos pelo inconsciente, a “Lutador”, soneto que aparece no livro Belo Belo (1948). Diz ele que a idéia surgiu de uma conversa com sua prima Maria do Carmo do Cristo Rei, monja carmelita, que lhe contou uma viagem feita por umas amigas dela a Ávila, onde viram o coração transverberado da santa local. O poeta impressionou-se com essa palavra, “transverberado” (=trespassado, atravessado) e passou o dia com esta palavra na cabeça, mas sem tentar compor nenhum poema. Diz ele: 

“No dia seguinte de manhã acordo com o soneto pronto na cabeça, com título e tudo. ‘Believe it or not’. Não sei até hoje quem seja o lutador. O primeiro quarteto não permite supor que se trate de Cristo: aplica-se, sim, a Beethoven, cuja biografia escrita por Romain Rolland li e reli comovidíssimo aos vinte e tantos anos. Tanto este soneto como a “Palinódia” [em Libertinagem, 1930] são coisas que tenho que interpretar como obra alheia”.

Eis o soneto: 

Buscou no amor o bálsamo da vida, 
não encontrou senão veneno e morte. 
Levantou no deserto a roca-forte 
do egoísmo, e a roca em mar foi submergida! 

Depois de muita pena e muita lida, 
de espantos caçar de toda sorte, 
venceu o monstro de desmedido porte 
a ululante Quimera espavorida! 

Quando morreu, línguas de sangue ardente, 
aleluias de fogo acometiam, 
tomavam todo o céu de lado a lado, 

e longamente, indefinidamente, 
como um coro de ventos sacudiam 
seu grande coração transverberado!.

Impressionante o cara compor dormindo um soneto que eu não faria nem duplamente acordado. Os versos “levantou no deserto a roca-forte do egoísmo, e a roca em mar foi submergida” são titânicos, uma mistura de Gustave Doré com El Greco. E essa “ululante Quimera espavorida” não é menor que Goya ou (mais obviamente) Géricault. (Relendo o trecho percebo que só me ocorreram comparações com pintores, não com poetas; a forte visualidade das imagens, domesticada por decassílabos quase perfeitos, mostra o duplo nível de criação e elaboração que resultou em “Lutador”).

O coração “transverberado” de Sta. Teresa foi retratado na famosíssima escultura de Bernini em que um anjo atravessa seu coração com uma seta; é a escultura que foi chamada de “o santo orgasmo”, pela intensa expressão de êxtase da santa. Na memória inconsciente de Bandeira, fundiram-se talvez a prima, Beethoven, a escultura de Bernini, a sexualidade sublimada, as imagens extremadas e delirantes de paixões reprimidas. Libido sublimada em imagens, imagens sublimadas em versos. Quem é poeta mesmo, é poeta 24 horas por dia, queira ou não queira.


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