quarta-feira, 13 de junho de 2012

2895) Longe muitas léguas (13.6.2012)


A vida de um migrante sofre uma fratura que nunca mais desaparece. É como um vidro trincado: pode não ter perdido nenhum pedaço, mas aquela rachadura vai ficar visível para sempre. A tragédia dele começa pelo fato de que vai embora a contragosto: falta de trabalho, falta de oportunidades, guerra, catástrofes naturais (a seca, etc.)...  Vejam que estou excluindo dessa lista o sujeito que simplesmente decide ir embora do lugar onde nasceu, pelo simples prazer de conhecer lugares diferentes, ter novas experiências. Esse não é propriamente um migrante – é um viajante, um aventureiro, um cara que foi tentar a vida noutro país ou cidade. O migrante é o que migra a contragosto, o cara que, pela sua vontade, nunca sairia daquele lugar.

Na terra alheia, começa o processo de endeusamento e mitificação do lugar que foi abandonado. Ele pensa: “Nada do que eu vejo se compara ao que eu já vi”. O migrante sonha com uma Era de Ouro que é geográfica, em vez de histórica.  Uma Era de Ouro situada no espaço e não no tempo, na distância e não no passado.  Teoricamente, uma Era de Ouro à qual ele pode voltar um dia – basta ver o açodamento e a euforia com que voltam tantos.  Porém, toda viagem no espaço é também uma viagem no tempo, e quando o migrante retorna percebe que seu lugar de origem mudou, que seu pé de serra sofreu interferências, que sua Era de Ouro está toda azinhavrada.

Este é o motivo pelo qual tantos migrantes preferem não voltar.  Não querem passar pela decepção do protagonista de “Viagem aos Seios de Duília” de Aníbal Machado, um sujeito de meia idade que retorna à cidade natal para rever os seios de sua namorada adolescente, o que resulta num desfecho pra lá de previsível.  Nenhum par de seios resiste à ausência de quem os avistou uma vez, e nenhuma terra natal se preserva intacta e disponível, eternamente, à espera do migrante que a abandonou por motivos de força maior.

Melhor não voltar, e deixar que a memória fique tirando fotos de si mesma. Melhor deixar que essa memória seja contaminada pela imaginação, o que é mais embelezador do que contaminá-la de realidade. Na memória só muda o que nosso desejo ordena.  Todo migrante faz do lugar de onde partiu a sua nova “terra do sonho distante”; torna-se um migrante ao contrário, que todos os dias abandona o presente e foge na direção de um passado onde tudo acontece de acordo com seu desejo e nostalgia. E todo migrante é feliz porque a Era de Ouro de sua memória nunca foge, nunca se perde, nunca se deteriora. Pelo contrário: todos os dias é aperfeiçoada, burilada por esse retorno incessante de quem criou uma miragem maior e mais duradoura do que os desertos.

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