quinta-feira, 17 de junho de 2010

2158) O sal de Salinger (6.2.2010)



Existe todo um ritual da imprensa em torno de escritores reclusos, que não dão entrevistas, esnobam os repórteres, não atendem o telefone, não conversam com ninguém, e em geral só se comunicam através de prepostos. Thomas Pynchon, Rubem Fonseca, B. Traven, Dalton Trevisan, Raduan Nassar... O recentemente falecido J. D. Salinger fazia parte dessa galera esquiva e às vezes antipática. O sucesso precoce de “The Catcher in the Rye” parece ter esgarçado sua paciência ao ponto da rutura. Tem indivíduos que se aborrecem quando são elogiados demais. Em geral é porque sentem (e muitas vezes têm razão) que os outros estão elogiando as coisas erradas, e deixando de enxergar aquelas que, para eles, realmente importam.

Li Salinger na idade certa, aos 19 anos, quando devorei ao longo de poucas semanas as traduções de O Apanhador no Campo de Centeio e Nove Histórias. Nunca mais os reli, nem cheguei a ler os outros livros seus que saíram aqui. Holden Caulfield, o protagonista do “Apanhador”, é um adolescente arquetípico, e sua voz narrativa, que ao fim e ao cabo é a principal coisa do livro, influenciou milhares de escritores que vieram depois. Caulfield é tímido, arisco, desconfiado, inseguro, agressivo, auto-depreciativo, hipercrítico. Tem um olho infalível para a hipocrisia e a máscara dos adultos. Seu trajeto é o de alguém perceptivo e com vontade de ser honesto, mas que a cada ano que passa percebe estar se encaminhando para um pesadelo: ou se torna igual aos adultos que despreza, ou explode.

Um golpe cruel sofrido por Salinger deve ter sido o de saber que o assassino de John Lennon estava com seu livro embaixo do braço na noite em que explodiu o peito do roqueiro com cinco tiros à queima-roupa. Se fosse com um livro, meu, será que eu sobreviveria a um tal desgosto? Esse episódio é emblemático dos perigos que cercam a Contracultura e sua recusa à cultura “phony” que a sociedade industrial-bélico-capitalista-judaico-cristã (como se dizia na época) tentava impor aos jovens. A vontade de recusar aquela palhaçada cruel era tão grande que um mero cantor ou um mero romancista eram tratados (a contragosto) como profetas. E sofriam a violência insensata de rapazes e moças desarvorados que, metaforicamente, os agarravam pelas lapelas e imploravam a Resposta. “Eu não tenho resposta, cara”, dizia Lennon aos descompensados que iam bater à sua porta, “eu sou como você, estou fazendo perguntas”. Alguns se sentiam traídos e reagiam à altura.

Salinger era, visivelmente, um sujeito a quem a convivência social era dolorosa. Não era (como Pynchon ou Rubem Fonseca) um sujeito normal e bem-humorado que simplesmente não quer aparecer, e prefere conviver somente com quem lhe interessa. Salinger certamente era recluso por ser emocionalmente inseguro. Não publicava há 40 anos. Fala-se agora em pilhas de manuscritos inéditos, e parece que vai começar uma imensa farra editorial sobre seus despojos.

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