sábado, 6 de março de 2010

1752) Machado: “Habilidoso” (22.10.2008)

A crítica já identificou na obra de Machado de Assis o tema do Artista Frustrado, o sujeito cheio do desejo de criar mas a quem a criação é vedada por um motivo ou por outro. Muitos são poetas e escritores; alguns são músicos; este contozinho obscuro (Gazeta de Notícias, 1885) nos mostra um pintor. Machado nunca nos fala de gênios incompreendidos, nunca de um Van Gogh deitando pérolas aos porcos. Os tipos que descreve são frustrados por suas próprias limitações, seja de ambição, seja de talento mesmo. Tudo neles é pequeno, menos o sonho de ser grande. O autor nos leva pela mão desde a abertura do conto: “Paremos neste beco. Há aqui uma loja de trastes velhos, e duas dúzias de casas pequenas...” A loja é de João Maria, que tem trinta e seis anos e parece ter mais, tamanha a pobreza em que vive com a mulher e um filho doente. Quando era pequeno, começou a desenhar e esculpir por impulso próprio. Chamaram-lhe “habilidoso” e ele assanhou-se. Decidiu tornar-se pintor: “Um dia aconteceu-lhe ir à exposição anual da Academia das Belas-Artes, e voltou de lá cheio de planos e ambições. Engenhou logo uma cena de assassinato, um conde que matava a outro conde; rigorosamente, parecia oferecer-lhe um punhal”. Crente no próprio talento, como tantos, João Maria “aborrecia a técnica, era avesso ao aprendizado”. A primeira obra que lhe parece bem acabada é levada a uma casa de espelhos e gravuras na Rua do Ouvidor. Depois de muita insistência o dono aceita expor o quadro. Todo dia, João Maria toma café às pressas e corre para lá. As pessoas têm visto o quadro? Têm gostado? Têm falado alguma coisa? Os caixeiros não agüentam mais tanta pergunta. João Maria não esmorece, pinta outras telas, distribui-as pelas vitrines, mas não lhe chega nenhum feed-back, nenhum comentário: “Os jornais não diziam palavra. João Maria não podia entender semelhante silêncio, a não ser intriga de um antigo namorado da moça com quem estava para casar”. Parece familiar. Quantas vezes a gente publica um conto, um poema, uma coluna de jornal, e vai dormir palpitando, à espera dos cumprimentos! No dia seguinte, toca o telefone e damos um pulo, para receber os parabéns: é o telemarketing oferecendo um cartão de crédito. Assim era a vida de João Maria, vítima dessa droga benéfica e terrível, o elogio ouvido na infância, que nos desperta a fome por doses cada vez maiores. Na última cena do conto, João Maria, resignado ao anonimato, mas ainda em busca da perfeição, retoca um retrato de Nossa Senhora diante de quatro moleques que se acocoram à sua porta, no beco onde reside. “Não lhe lembra a panela ao fogo, nem o filho que lá vai doente com a mãe. Todo ele está ali. Não tendo mais que avivar nem que retificar, aviva e retifica outra vez, amontoa as tintas, decompõe e recompõe, encurva mais este ombro, estica os raios àquela estrela. (...) Que este é o último e derradeiro horizonte de suas ambições: um beco e quatro meninos”.

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