sábado, 6 de fevereiro de 2010

1618) O dominó de John Mayall (20.5.2008)



Depois de ver o show de Bob Dylan em março, fui agora ver John Mayall & The BlueBreakers no Canecão (eu agora só vejo artistas da terceira idade). Começa o show. Mayall entra no palco empunhando sua guitarra demolidora? Coisa nenhuma. Entra tocando em pé, atrás de um tecladinho-yamaha igualzinho ao que Dylan tocou em seu show. O que me sugere que o teclado é o instrumento dos ex-guitarristas velhinhos. Uma espécie de dominó-na-praça para aposentados de pijama.

O que não é bem o caso. Mayall (que vi ao vivo pela primeira vez) não é mais aquele guitarrista feroz de cabelos longuíssimos e barbicha-de-bode. Estava de calça branca, camisa estampada, óculos de grau iguais aos meus, e uma discreta e ondulada cabeleira branca que em alguns momentos o tornava parecido com Jomard Muniz de Britto. A voz não tem mais a mesma potência de outrora, mas vai crescendo e se encorpando ao longo do show. Ele toca teclado com competência, guitarra com dedos levemente enferrujados. É na gaita que ele dá um verdadeiro baile, em “Burnin’ Bridges” (acho que é esse o título) e outras canções. Aos 74 anos (fará 75 em novembro) ele transborda alegria de viver e de tocar.

Gerações inteiras de guitarristas cresceram sob a supervisão de Mayall, entre eles Eric Clapton e Mick Taylor. Se cada ex-discípulo seu fosse convocado para um show, os três dias de Woodstock não teriam agenda que os coubesse. Ele é menos um grande instrumentista do que um formador de grandes instrumentistas, e nesta última função se assemelha a músicos como Hermeto Pachoal. O sujeito entra para a banda dele vestibulando, e sai PhD.

É o caso de Buddy Whittington, o guitarrista barrigudinho e de cavanhaque que é o ponto alto do show de Mayall. Toca com concentração, seriedade, emoção e fluência. Sem fazer muitas caras e bocas, tem nas pontas dos dedos toda a sensibilidade do blue. Vê-lo tocar é fascinante, porque acompanhamos seus solos longos, velozes, complexos, uma progressão sinuosa e surpreendente de melodias que nunca vão por onde esperamos mas sempre retornam ao caminho por onde vinham, levando-nos com elas. No fim de cinco minutos de solo, se a gente passar um corretor ortográfico vai ver que não faltou uma nota sequer. É de arrepiar ouvir Whittington cantando (e solando) “Help me through the day, help me through the night… Babe, you make me realize you’re my woman”.

O blues é tristeza negra concentrada, e altivez negra mais concentrada ainda. Uma forma de música cadenciada, implacável, que nos adverte do caráter irrevogável de cada gesto na vida, e de que é preciso estar à altura das nossas próprias conquistas e das nossas tragédias. Aceitação estóica do sofrimento e busca também estóica dos lampejos de felicidade a que qualquer um tem direito. O blues é como o petróleo, algo que está se auto-destilando há dez milhões de anos, e que de repente brota não se sabe de onde, e começa a arder em nossas mãos.

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