segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

1475) Ser crítico (5.12.2007)




As palavras tendem a se nivelar por baixo, como a farinha de um farinheiro quando a gente lhe dá umas batidinhas laterais com a mão. (Esta metáfora é visualmente eficaz. É falsa, porque a mecânica das palavras é muito mais complexa do que isso; mas me serve no presente caso.)

Uma palavra como “criticar”, por exemplo, deveria significar algo como “exercer a capacidade de discernir entre o bom e o ruim”, mas acabou se acomodando num nível inferior, e significando, na linguagem cotidiana, “falar mal de”.

Cada crítico literário exerce este nobre ofício de acordo com (perdão, leitor) suas idiossincrasias. Ou seja: seus cacoetes, suas venetas, suas nove-horas. Todos aspiram à objetividade total, mas aspirar a isto é um pouco como aspirar ao Reino dos Céus. Pode-se até chegar lá um dia – mas ninguém fica sabendo.

Quando Orson Scott Card mantinha na revista Fantasy and Science Fiction uma coluna intitulada “Books to Look For” (algo como “Livros para ficar de olho”), alguns leitores reclamaram do tom elogioso com que ele comentava todos os livros, e perguntaram se todos eram mesmo bons.

Card respondeu que a coluna tinha como assunto os livros que valia a pena procurar e ler, e os livros ruins que ele lia eram automaticamente descartados. Muitos críticos usam esse tipo de abordagem: “eu falo do que gosto, o que não gosto não vale a pena”.

Todo autor gosta de ser elogiado, mas melhor do que ser elogiado é ter uma obra revelada, descoberta, trazida à luz.

Melhor do que ler uma resenha cheia de adjetivos elogiosos é ver alguém pegar um texto que a gente escreveu e examiná-lo por todos os lados, revelando detalhes que a gente não tinha percebido, criticando falhas que nos deixam constrangidos, estabelecendo ligações com outras obras de que não tínhamos o menor conhecimento, mostrando em nosso próprio trabalho uma riqueza de aspectos – ainda que uma riqueza problemática, uma riqueza com equívocos – que tinham nos escapado até então.

Um artista comentou certa vez, referindo-se à imprensa: “Eu não quero elogios, quero ser levado a sério”. Criticar é levar a sério. Implica em reconhecer num trabalho, apesar dos eventuais defeitos, valor suficiente para ser trazido a público e discutido. Uma crítica negativa pode muitas vezes ser a melhor coisa que aconteça a um autor, se esse autor tiver discernimento bastante para perceber que o que está em questão ali é um diálogo de duas mentes em torno de um objeto ou de um tema.

Crítico e artista estão em posições muito próximas. O artista não é um sujeito que está com sua obra embaixo do braço, protegendo-a, e o crítico não é um cara que está à distância, falando bem ou mal dela. A obra, depois que se desprende do seu autor, ganha vida própria, é como um balão de gás solto no céu. Crítico e autor estão aqui embaixo, no chão, olhando o rumo que o balão toma e trocando idéias sobre sua aparência, a altitude a que pode subir, a direção que está tomando.





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