quinta-feira, 2 de julho de 2009

1141) A Deusa Película (9.11.2006)




O Canal Multishow da Net tem um programa chamado “Inside the Actor’s Studio”, em que James Lipton entrevista atores, diante dos estudantes daquela famosa escola de interpretação de Nova York. 

O programa já rola há alguns anos, e nele vi entrevistas notáveis. É sempre uma discussão de atores para atores, dissecando os bastidores da interpretação, o modo de fazer filmes, os recursos de criação de personagem, etc. Claro que cada entrevista tem o perfil do entrevistado. Michael Caine reavalia sua vida e carreira com fleuma britânica. Robin Williams faz palhaçadas e improvisa diálogos imaginários o tempo todo.

Vi há pouco Tom Hanks nesse programa. Perguntaram-lhe sobre algum aspecto da arte da interpretação e ele disse: 

“Tudo isto está nas mãos de Película. Sabem quem é Película? É a deusa do cinema e dos cineastas, a deusa da Sétima Arte. É Película quem faz o trânsito se abrir para que você chegue ao estúdio na hora combinada. Película faz com que você esteja num café quando entra aquele produtor que está precisando justamente de um ator de cabelo castanho, parecido com você. É ela quem faz com que o ator principal de um filme brigue com o diretor, seja demitido, e você ganhe o papel. E é ela a responsável pela magia do cinema, que faz com que a gente veja o rosto enorme de Ingrid Bergman em Casablanca, simplesmente escutando um cara tocar piano, e aquilo seja uma obra de arte. Vamos render nosso culto a Película, porque ela nos conhece tão bem quanto nós mesmos”.

Note-se que em inglês a palavra “película” não é uma palavra de uso corrente como é em português. E mesmo em nossa língua é uma palavra que perdeu terreno na nomenclatura cinematográfica. Quando eu tinha dez anos, a gente lia no jornal: “Psicose é o nome da nova película dirigida por Alfred Hitchcock...” Hoje em dia, ninguém diz mais isto, assim como no futebol ninguém chama gol de “tento”. 

Em vez de película, dizemos “filme”, ou seja, consagramos a palavra inglesa que designa uma camada muito fina de alguma coisa (de celulóide translúcido, no caso).

Também vi na TV, num programa dedicado a Sigmund Freud, um psicanalista definindo assim a consciência humana: “A consciência é uma película separando algo que a organiza e algo que a tumultua”. 

É uma imagem verbal poderosa, e que pode se aplicar também ao cinema. De um lado do filme virgem, no interior da câmara, está o diretor que escolhe para onde a câmara deve ser apontada; do outro lado, estão as imagens cuja luz refletida irá incidir sobre os sais de prata, fazendo-os ferver quimicamente, guardando a impressão indelével daquelas luzes e sombras. 

A Deusa Película preside este processo que ocorre (de forma tão semelhante) no negativo de celulóide, nas retinas do espectador e na consciência de quem assiste cinema, faz cinema ou passa a madrugada em claro perguntando a si próprio o que diabo, afinal, é o cinema.







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