quarta-feira, 3 de junho de 2009

1069) Hipocrisia com boas intenções (19.8.2006)



Freud dizia que uma ocorrência típica do “Unheimlich” (o estranho, o sinistro, o assustador) é quando um símbolo adquire as funções e o significado da coisa simbolizada. O nome de algo perigoso é evitado porque contém o perigo daquilo que representa. Os primitivos não dizem o nome do Diabo, preferindo referir-se a ele por circunlóquios: O-Não-Sei-Que-Diga, O-Coiso, O-Cão... Nossos médicos e enfermeiros, representantes da Ciência, também evitam dizer “câncer”, preferindo dizer “C. A.”, e assim por diante. Chamamos a isto “pensamento mágico”: tocar no nome é tocar na coisa.

Um circunlóquio parecido ocorre hoje com a Rede Globo, que evita dizer o nome PCC (Primeiro Comando da Capital), preferindo dizer “a facção criminosa”, ou “a facção que controla os presídios paulistas”. Já vi alguém argumentando que usar o nome seria de certa forma oficializar a existência do PCC (como se ele precisasse disto para agir). Faz um certo sentido. Quando um novo governo chega ao poder, ainda mais se chegou por vias não-democráticas, pede para ser oficialmente reconhecido pelos outros. Há ditaduras que estão no poder há décadas e não foram reconhecidas pela comunidade internacional. Reconhecer que uma entidade existe é, de certa forma, admitir sua existência, concordar com sua existência.

Faz sentido, sim, mas somente dentro dos jogos de linguagem da Diplomacia, que algum espirituoso já definiu como “a hipocrisia com boas intenções”. Um bom diplomata sempre sabe que não se pode ser totalmente franco, dizer as coisas como as coisas são, ou como achamos que elas são. É sempre necessário usar eufemismos, circunlóquios, perífrases, aproximações, ambiguidades. A Globo se recusa a dizer PCC porque “só existe o que sai na Globo” – um pensamento corrente em vários setores da emissora, e do qual grande parte da própria população brasileira compartilha. Acho que William Bonner só vai olhar para a câmara e dizer essa sigla quando for uma notícia assim: “Uma delegação de representantes do PCC foi recebida no Ministério da Justiça, para dar início às reuniões de reforma do Código Penal...” Chega me dá um calafrio.

O seqüestro de dois funcionários da Globo e a veiculação no ar de uma mensagem da facção podem ser considerados, em conjunto, um episódio decisivo dos tempos atuais. A última vez que isso aconteceu foi em 1969 quando a guerrilha urbana seqüestrou o embaixador norte-americano Elbrick. O PCC, assim como o Comando Vermelho e todos os grupos congêneres, é o filho bastardo do crime comum com o crime ideológico, e foi concebido no presídio da Ilha Grande, onde a falta de inteligência da ditadura militar colocou guerrilheiros e bandidos para conviver. No tempo da ditadura, a gente não podia citar Karl Marx num jornal, tinha que dizer “um filósofo barbudo”, ou coisa equivalente. Como se bastasse não dizer o nome para que a Coisa deixasse de existir.

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