quarta-feira, 3 de junho de 2009

1068) Iluminismo e ilusionismo (18.8.2006)





Um repórter da Rede Globo foi seqüestrado em São Paulo pelo PCC (Primeiro Comando da Capital). Os bandidos condicionaram sua libertação à divulgação, na TV, de um vídeo-manifesto protestando contra o Regime Disciplinar Diferenciado, em prática nos presídios paulistas. Houve um detalhe que a imprensa divulgou mas não discutiu, ao que eu saiba. Na terça-feira, o jornal O Globo comparou o texto do manifesto do PCC com o texto de um documento que o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária havia divulgado em abril de 2003.

Vejam os dois textos. O do Conselho diz, a certa altura: “(...) o Regime Disciplinar Diferenciado agride o primado da ressocialização do sentenciado, vigente na consciência mundial desde o iluminismo e pedra angular do sistema penitenciário nacional (...)” Diz o manifesto lido pelo representante do PCC: “O Regime Disciplinar Diferenciado agride o primado da ressocialização do sentenciado vigente na consciência mundial desde o ilusionismo e pedra angular do sistema penitenciário”. Há outros trechos quase iguais, mas o que me interessa é este.

Onde se lia “Iluminismo”, lê-se “ilusionismo”. Houve quem desse risada, vendo nisto uma prova no analfabetismo e da desinformação dos bandidos. Coitados! Nunca ouviram falar no Iluminismo, no “Enlightenment”, na Idade das Luzes, que deu origem à Revolução Francesa e à Declaração Universal dos Direitos do Homem. Foi uma fase (na filosofia, nas ciências exatas, nas ciências sociais e jurídicas) comparável ao que o Renascimento representou nas artes da Europa.

Freud dizia (e se não o disse assim, digamos que o tivesse dito) que todo erro revela uma verdade oculta. Todo esquecimento, todo equívoco, toda troca involuntária de palavras, revela uma informação que estava doida para aparecer, estava pronta para ser trazida à luz, e que acabou escapando pela primeira brecha aberta à sua frente.

O Iluminismo acreditava no poder da Razão para mediar o contato entre o Homem e o Universo. A Racionalidade era a luz que vinha afastar as trevas e as superstições da Idade Média. Infelizmente, não conseguiu. A Razão pode muito, mas não pode tudo. Freud, produto avançado do Iluminismo, foi quem trouxe a este a amarga notícia. E o erro dos bandidos do PCC revela uma verdade dolorosa sobre as democracias de hoje. Porque elas não são governadas pela Razão, como se queria no século 18, e sim através do Ilusionismo: a manipulação das massas pelas telecomunicações, a distribuição de riquezas inexistentes através do capitalismo financeiro, a distorção da arte e do entretenimento através da hipertrofia de ficções manipuláveis como “fama” e “sucesso”, a cuidadosa eliminação de referências (quando não a perseguição explícita) a quem é do contra. O Ilusionismo, que aparece erradamente no manifesto dos bandidos, é a melhor descrição da sociedade que os produziu – e que agora não consegue destruí-los porque tem muita gente olhando.


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