Detesto escrever obituários. Quando morre um ditador ou um cabra safado qualquer, me limito a ler a notícia, saborear, por um momento fugaz e pecaminoso, o gostinho de dizer “bem feito”, e desejar que daí em diante a Justiça Divina se encarregue dos trâmites de praxe. (Caso não haja Justiça Divina, como agnosticamente me vejo forçado a admitir, menos mal: o assunto já se encerra ali mesmo) Mas quando morre alguém que admiro me sinto no dever de dizer algo.
A cultura clássica nos acostumou com um poderoso arquétipo humano: o Herói Que Não Triunfa. Moisés, que conduz os hebreus à Terra Prometida mas morre antes de pisar nela. Roosevelt, que lidera os EUA na Segunda Guerra e morre antes da vitória. Tancredo Neves, que é eleito mas não é empossado. Os Cavaleiros da Távola Redonda que galopam metade do mundo sem nunca encontrar o Santo Graal. E assim por diante.
No futebol, o arquétipo se encarna em seleções unanimente consideradas “o melhor time do mundo”, mas que não ganham a Copa. Os exemplos mais claros são a Hungria de 1954, a Holanda de 1974 e o Brasil de 1982, dirigido por Telê Santana. Curiosamente, não eram times de onze craques. Ainda hoje o Brasil se pergunta o que faziam, na Seleção de Telê, jogadores como Valdir Peres ou Serginho Chulapa; mas não importa. Como no caso da Távola Redonda ou dos Doze Pares de França, o pouco talento ou o pouco carisma de alguns contribuía, como fator de equilíbrio, para a perfeição do grupo.
Li na imprensa, de ontem para hoje, que a morte de Telê anuncia o fim de uma era. Eu acho que a gente devia evitar esses rasgos melodramáticos. Telê procurava equilibrar a disciplina tática do conjunto e a liberdade criativa do craque. Suas seleções (a de 82 e a de 86) perderam por aquilo que nossa imprensa chama hoje de “erros pontuais”, e que bem poderia chamar de erros específicos, ou isolados. Uma seleção muito menos brilhante, a de 1994, ganhou porque não deu nenhuma dessas pisadas-na-bola fatídicas.
Não acho que a morte de Telê seja o fim de uma era, porque não se tratava de sua presença física – afinal de contas ele já estava aposentado há um bom tempo. No futebol, como na Arte, as grandes obras são atemporais. Uma vez incorporadas à memória cultural de um povo, elas se tornam indeléveis, enquanto os sujeitos que as criaram se dissolvem na poeira dos séculos. A morte de Telê, claro, entristece a nós todos, ainda mais por sabermos o quanto ele era (coisa rara hoje) um técnico de futebol educado, cortês, sério, e de comportamento profundamente ético. Choremos o cidadão Telê, tão simpático em sua circunspecção mineira, tão meninamente apaixonado pela beleza do jogo de bola. Mas... fim de uma era? O futebol-arte está vivo, embora não predomine. Está vivo no quadrado ou pentágono mágico de nossa atual Seleção, em garotos que cresceram vendo “o time de Telê” jogar, fosse ele a Seleção de Zico e Sócrates ou o São Paulo de Raí e Toninho Cerezo.
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