Borges afirmou, num ensaio célebre, que cada autor cria seus próprios precursores, quando cristaliza um estilo ou um universo temático, e com isto agrega a si obras dispersas de autores que o antecederam, que ninguém lembraria em conjunto se não fosse por ele. Hoje há muitos “precursores de Kafka”, mas se Kafka não tivesse existido e criado uma obra tão forte nós não nos aperceberíamos deles, ou daquela peculiar inclinação presente em suas obras. Um precursor é, de certa forma, um eco que precede o som. Esta teoria é um das muitas que Borges elaborou para dizer que o Presente e o Futuro modificam o Passado. O Passado não é intocável, porque ele é Linguagem. Só existe quando é citado, referido, exibido, e ao fazermos isto podemos interferir nele. George Orwell dizia algo semelhante em 1984, sobre o modo como as ditaduras reescrevem a História em seu próprio benefício.
Ariano Suassuna tem um divertido parágrafo no Romance da Pedra do Reino (Folheto LXXVII), quando o poeta católico-ibérico Samuel Wandernes afirma: “Sou nacionalista, e, podendo, pilho os estrangeiros o mais que posso! Para mim, Manoel Odorico Mendes é o autor dos originais da ‘Ilíada’ e da ‘Eneida Brasileira’: Homero e Virgílio são, apenas, os tradutores grego e latino dessas obras dele! Castilho é o autor do ‘Fausto’ e do ‘Dom Quixote’, assim como José Pedro Xavier Pinheiro é o verdadeiro autor da ‘Divina Comédia’ que Dante traduziu para o italiano!”
Como em todas as galhofas de Suassuna, esta tem um curioso fundo de verdade, se não com relação aos nomes citados, mas no que diz respeito à dinâmica da recriação das obras. Traduzir é apossar-se de um texto alheio, dando-lhe uma forma nova que pode, às vezes, ser atribuída mais ao tradutor do que ao autor. No idioma inglês, a Bíblia traduzida por ordem do Rei Jaime I criou modelos linguísticos tão fortes a partir do século 17 que acabou tendo tanta influência literária quanto influência espiritual; o mesmo pode ser dito da tradução alemã de Lutero. Quem traduz, cria um objeto novo. Vemos isto o tempo todo na música. “My Way”, o grande sucesso de Frank Sinatra, é na verdade uma canção francesa (“Comme d’habitude”) que teve versão em inglês feita por Paul Anka. Ninguém lembra disto. Todo mundo acha que o original é em inglês.
Os norte-americanos têm feito nos últimos anos numerosas refilmagens de filmes estrangeiros que fizeram sucesso mediano: Três solteirões e um bebê, Vanilla Sky, Desperado, todos são traduções que na cabeça de muita gente se tornaram “the real thing”, o filme original, e o outro uma cópia antecipada. “Traduzir” um filme é diferente de traduzir um texto, mas a mecânica básica é a mesma. Se alguém me pedir para traduzir Guerra e Paz de Tolstoi, está me pedindo para ler um livro em russo e escrever um livro em português dizendo as mesmas coisas, até onde for possível. É uma obra que não existia antes na língua portuguesa; é um livro novo.
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