Há discos que ouvi muitíssimo na época do LP mas que não consigo encontrar em CD, ou porque não foram lançados neste formato, ou porque o foram através de selos com pouca penetração no mercado, sendo assim virtualmente invisíveis. Isto força a gente a recorrer a colecionadores, que tiram cópias digitais das suas preciosidades de arquivo. (Não, amigos: isto NÃO É pirataria.) Tenho meu fornecedor de rock, meu fornecedor de forró, meu fornecedor de MPB... Há pouco, consegui botar as mãos numa raridade.
Os Afro-Sambas, de Baden Powell e Vinicius de Moraes, é um disco gravado nos primeiros dias de janeiro de 1966, com produção de Roberto Quartin e arranjos de Guerra Peixe. São apenas oito canções, mas pelo que sei o impacto que elas produziram ainda não parou de ressoar. Em seu livro Chega de Saudade, Ruy Castro comenta que nessa época Vinicius e Baden resolveram se trancar num apartamento no Rio para compor, levando consigo várias caixas de uísque. Os afro-sambas se devem em partes iguais a eles e ao médico que os manteve vivos durante o ininterrupto pileque.
No texto de contracapa (datado de fevereiro de 1966), Vinicius afirma que sua parceria com Baden já datava de quatro anos atrás, e que já desde aquela época gostavam de ouvir gravações ao vivo de cantos do candomblé e do samba-de-roda baiano, enviadas por Carlos Coqueijo. Dessa época surgiram sambas de temática africana como “Berimbau” e “Samba da Bênção”, que bem poderiam ter sido também incluídos neste disco, porque musicalmente pertencem ao mesmo ciclo. Imagino que tenha sido este o primeiro disco em que Vinicius aparece como intérprete do começo ao fim, mesmo secundado pelo Quarteto em Cy. Os arranjos e da gravação têm uma qualidade um tanto artesanal. E, por trás de tudo, o violão de Baden Powell, costurando a melodia com os baixos (“Canto de Xangô”), com lapadas percussivas (“Canto de Ossanha”), ou sublinhando a melodia lindíssima de “Canto de Iemanjá”.
Os “afro-sambas” tiveram uma bela gravação recente por Mônica Salmaso, mas esta gravação original com Baden e Vinicius tem a força primitiva e imediata daquelas canções que valem, mais do que pela roupagem musical que recebem, pela novidade bruta do material poético e melódico com que trabalham. O disco surgiu num momento em que a classe média urbana e intelectualizada começou a enxergar a cultura popular, negra, rural, com olhos de curiosidade e respeito. Dizem alguns estudiosos, não sei se com razão, que grande parte da nossa cultura resulta de releituras populares das idéias, das formas e dos temas produzidos na cultura erudita. Se for assim, maior ainda a importância de uma releitura erudita das idéias, formas e temas que surgem da cultura popular. O próprio termo “afro-samba” é elucidativo, por reconhecer que o samba já era àquela altura algo assimilado e exercido pela cultura urbana e branca, e era necessário injetar nele um pouco de África e de memória negra.
3 comentários:
Esse disco existe em CD também. Está incluso numa caixa gigantesca do Baden, lançada há coisa de cinco anos, e fantástica.
O LP sempre será para mim algo único, daria tudo para ter este em minha coleção tão pobre!
Parabéns pelo artigo, essa frase define muito bem sobre o que se trata esse disco: "tem a força primitiva e imediata daquelas canções que valem, mais do que pela roupagem musical que recebem, pela novidade bruta do material poético e melódico com que trabalham." Tenho curiosidade em saber quem detém os direitos autorais dessa obra hoje.
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