sábado, 24 de janeiro de 2009

0777) A armadilha do jabá (14.9.2005)



Como trabalho em casa, passo a tarde com a TV ligada, acompanhando as CPIs. Para um sujeito avoado como eu, que vive pesquisando a Idade Média ou a vida em outros planetas, é um saudável antídoto, uma overdose de vida real. O mundo é isto que estamos vendo: indivíduos engravatados, de fisionomias sórdidas e discursos monotonamente patrióticos, praticando uma absurda promiscuidade financeira numa busca incansável por dinheiro, dinheiro, dinheiro. Eu ando com tanta raiva de dinheiro que toda vez que pego numa nota a vontade que eu tenho é tocar fogo, e só um restinho de bom-senso me dissuade.

Existe uma curiosa semelhança entre as falcatruas que estão sendo expostas na República e uma outra indústria-do-golpe que nós, músicos e compositores, conhecemos há muitos anos. Trata-se da indústria do “jabá”, o suborno pago aos donos de programas ou de emissoras de rádio para que determinadas músicas sejam executadas. É a mesma relação que ocorre entre burocratas do Governo e empresários que buscam ganhar concorrências e contratos.

Tudo começou aos poucos. Num “antigamente” remoto, os discos eram enviados para as emissoras, e no meio das centenas de discos recebidos os titulares dos programas escolhiam aqueles de quem gostavam, e passavam a tocá-los. Era um processo aleatório, baseado no gosto individual de cada radialista. As gravadoras enviavam os discos, e cruzavam os dedos, esperando que alguém gostasse e tocasse, para que a música “pegasse” junto ao público e o disco fosse comprado.

Ora, cruzar os dedos e esperar não é uma atitude muito pragmática. As gravadoras começaram a telefonar, oferecer mimos e vantagens, dar ingressos de graça, viagens de graça, e assim por diante. Daí a coisa passou para a gorjeta, a propina, o numerário, o mensalão. As gravadoras ficaram inebriadas de poder: “Até que enfim, podemos obrigá-los a tocar o que queremos! Basta comprá-los!” Só que o tempo passou e a coisa foi mudando. Os radialistas descobriram que estavam aceitando regras alheias num jogo que era, afinal de contas, no campo deles e com a bola deles. Eram as gravadoras que precisavam das rádios, e não o contrário. E a situação se inverteu. Os radialistas passaram a ditar as regras do jogo: em vez de aceitar suborno, passaram a exigir suborno, dentro de condições ditadas por eles.

As duas situações coexistem hoje; há lugares onde as gravadoras são mais fortes, e lugares onde as rádios mandam. Porque trata-se, na verdade da boa e velha Lei do Mais Forte. É difícil convencer essas pessoas de que um processo tão crucial deve ser deixado ao deus-dará, às venetas pessoais de quem escolhe a programação. A situação hoje em dia está tão envenenada que tornar-se disco-jóquei é objetivo de indivíduos que nem sequer gostam de música, mas querem estar diante de um microfone para poder cobrar propina. O capitalismo é um Rei Midas: tudo que toca transforma em ouro. E tudo que é vivo, e que vira ouro, morre.

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