sexta-feira, 4 de julho de 2025

5188) O conto de mistério e suas variantes (4.7.2025)



 
Uma coisa é conto de mistério, e outra coisa é conto de crime. O que chamamos “conto policial” é a convergência entre os dois. Uma coisa não depende literariamente da outra. Há milhares de exemplos de ótimos contos (ou romances) onde aparece apenas um dos dois. 
 
Quando a gente vai ler em inglês, contudo, o romance policial aparece quase sempre sob a rubrica “Mystery”. Cada pessoa tem suas simpatias: eu simpatizo mais com o conceito de Mistério do que com os conceitos de crime, polícia, suspense, espionagem, investigação... 
 
Qualquer manual de escrita criativa ou de roteiro que a gente folheia irá nos dizer que o que empurra uma narrativa para diante é o Conflito. Ou seja: para que a narrativa tenha impulso, motivação, tensão psicológica, e force o leitor a ficar virando as páginas, sem conseguir soltar o livro, é preciso haver Conflito. O personagem quer algo, mas há uma porção de forças (pessoas, instituições, leis, etc.) tentando impedir: Conflito. Ou então o personagem não quer algo, e as mesmas forças tentam impor esse algo sobre ele: Conflito. 
 
Eu concordo com a importância do Conflito, mas faço algumas ressalvas. A primeira é: pelos resultados que vejo por aí, as pessoas traduzem “conflito” por “briga, agressão mútua, guerra”. Conflito, para elas, significa troca de socos ou de tiros, perseguições, ameaças, duelos violentos. Ou então personagens brigando entre si o tempo todo. 
 
A segunda ressalva é que há milhões de narrativas importantes, na literatura, no cinema, no teatro, em que há elementos muito mais importantes do que o conflito, e na verdade os conflitos que se estabelecem nessas histórias são um efeito secundário do tema principal. 



 
Peço licença aos partidários do Conflito para sugerir que um motor igualmente possante para uma narrativa é o Mistério. Ou seja: a tensão e o equilíbrio entre o conhecido e o desconhecido. Podemos graduar o microscópio até o nível mais elementar de definição: o “mistério” jaz exatamente nessas centenas de páginas que não lemos ainda, quando abrimos o livro no famoso “Capítulo 1”. Todo livro é um mistério à nossa espera. 
 
Como esse nível é o mais óbvio, nem vou me demorar nele. Lembro, porém, que toda narrativa de ficção consiste no desdobramento gradual de informações, revelações, iluminações de todos os tipos. Isto acontece através da ação, que nos conduz ao longo de surpresas, peripécias, suspenses e desfechos, puxadas de tapete, “plot twists”. São os personagens, que evoluem e se modificam (ou se revelam) ao longo da história. É o próprio ambiente, que nos traz revelações inesperadas (aqui penso especialmente nas histórias fantásticas que transcorrem em mundos bizarros). 
 
Quando não conseguimos largar um livro e ficamos virando página, virando página, é porque um Mistério se ergueu à nossa frente, para nos atrair; e ele vai sendo revelado de-pouquinho, para manter essa atração. 
 
Eu uso de vez em quando, para abordar contos de mistério (em qualquer gênero literário) dois conceitos que chamo de “Protocolo da Resposta” e “Protocolo da Pergunta”. São conceitos opostos, que podem até vir misturados numa mesma narrativa, mas convém examinar cada um em separado. 
 
O Protocolo da Resposta é uma espécie de pacto, entre o autor e o leitor, de que os mistérios apresentados ao longo do livro têm uma resposta, elaborada pelo autor, e essa resposta será fornecida ao leitor no final, no interior da própria narrativa. 
 
Como se o autor avisasse: “Fique tranquilo. Sei que parece tudo confuso, ou sem pé nem cabeça, mas tudo isso vai ter uma explicação no fim.” 



 
O exemplo mais comum desse protocolo é o conto de detetive -- onde há um crime misterioso, cheio de pistas enigmáticas ou contraditórias, mas no final o detetive apresenta uma solução satisfatória para toda essa confusão. O leitor vai dormir tranquilo. O mistério foi respondido. 
 
Já o Protocolo da Pergunta é uma espécie de pacto em que o autor não promete nada ao leitor além da formulação de perguntas, de mistérios, de enigmas. A função dessas histórias não é esclarecer mistérios, mas deixá-los flutuando no ar, enquanto autor e leitor, de braços cruzados, os observam, perguntando-se: “E agora?...” 
 
Há quem deteste histórias assim. Há quem goste, e muito (eu, por exemplo). Os romances de Franz Kafka. A maioria dos filmes de David Lynch. Os contos de Robert Aickman. 
 
Por que? Talvez porque na vida real a quantidade de perguntas não-respondíveis seja muito grande, e a gente precise “engrossar o couro”, como se diz popularmente, para poder lidar com elas. Tornar-se calejado.  Não se deixar abater pelo Desconhecido. Ele faz parte da experiência humana. 
 
E é por esse mesmo motivo, claro, que as histórias com o Protocolo da Resposta nos são tão bem vindas, parecem tão confortáveis, como uma água de coco em dia de muita sede. 
 
Mas enfim – a natureza da experiência literária é que seja variada, divergente, contraditória, complementar... Cada história cumpre uma função diferente num momento diferente. E cada leitor escolhe o que lhe convém. 
 
Algumas semanas atrás, ministrei um curso online sobre a narrativa policial, A Narrativa de Mistério e Crime, pelo Instituto Caminhos da Palavra, capitaneado pelo imbatível Henrique Rodrigues. 


 
Foram quatro aulas muito proveitosas, e surgiu o pedido para uma expansão – que vem agora, pelo mesmo Instituto, nos dias 8, 15, 22 e 29 de julho (sempre às terças-feiras), e vai se intitular “O Conto de Mistério e Suas Variantes”. 
 
Vamos examinar contos de mistério de diferentes formatos: mistério detetivesco, mistério sobrenatural, mistério psicológico, mistério fantástico... Os rótulos não importam muito, mas com essa pequena amostra (quatro aulas, doze contos apenas!) é possível ter uma idéia das variações possíveis para esse tipo de conto. 
 
Que dependem, sempre, da criatividade e imaginação do autor – e da receptividade e imaginação do leitor, que precisa entender qual o protocolo que rege aquele conto, e aceitá lo numa boa.  
 
Informações e inscrições aqui:
Link: https://caminhosdapalavra.com.br/Cursos/o-conto-de-misterio-e-suas-variantes-com-braulio-tavares/
Mail: contato@caminhosdapalavra.com.br
Fone: (21) 98816-7955