quarta-feira, 18 de setembro de 2024

5103) "Paisagens do Fim": quando o mundo acaba (18.9.2024)



 
Paisagens do Fim é um filme recente do crítico Carlos Alberto Mattos, “Carmattos”. Um ensaio cinematográfico que evoca nossa fascinação pelas ruínas, pelos cenários de destruição, pelos espaços onde vida e morte coletivas se entrelaçam naquela mistura inseparável das lacunas do que se foi com os pedaços do que restou.  
 
Eu tenho fascinação por essas coisas, e a coloco na mesma prateleira do meu interesse por lugares abandonados, cidades fantasmas, prédios desertos, os chamados “espaços liminares” de que vez por outra estou falando aqui neste blog. Tudo isto habita o mesmo universo simbólico do que Victor Burgin chamou de “imagens catastrográficas”, como lembra Carmattos. 
 
A primeira meia hora de Paisagens do Fim é ocupada por cenas de filmes de guerra, da devastação provocada pelo próprio ser humano. Dá um certo calafrio rever em filmes como Alemanha Ano Zero ou Paisà as tomadas aéreas de Berlim ou de Florença consumidas pelos bombardeios, os edifícios reduzidos a cacos pontudos que apontam para o céu. 



(Paisà -- Roberto Rossellini)


A expressão “filme de guerra” traz instintivamente à nossa lembrança imagens de bombas explodindo, soldados de infantaria, cargas de baioneta, aviões despejando napalm... Existe, contudo, um tipo mais arrepiante de “filme de guerra”, e é o que conta o que acontece depois da guerra – os habitantes dos escombros, nas cidades agora pacificadas onde não se dispara um tiro de revólver sequer, mas onde é preciso descobrir onde existe pão, onde existe água de beber, onde é possível achar um colchão para dormir, uma bacia onde lavar roupa. E não se acha. 
 
Esse é o tipo mais inquietante de filme-de-guerra, porque não mostra a destruição, mostra a ruína.  Durante a destruição, tudo que interessa é o impulso pânico de escapar à morte. Já nas ruínas, a tarefa é mais complicada e mais a longo prazo – o que fazer com a vida. E isso vira uma dor permanente e sem esperança, uma dor que não dorme. 

Como lembra o poema do tcheco Miroslav Holub:


CINCO MINUTOS DEPOIS DO ATAQUE AÉREO

(trad. BT)

 

Em Pilsen,

na Estrada da Estação, número 26,

ela subiu ao terceiro andar

onde as escadas eram tudo que restava

da casa inteira.

Abriu a porta de par em par

e contemplou o céu,

de pé sobre a borda.

Pois foi naquele lugar

que o mundo acabou.

Depois

trancou tudo com muito cuidado

para que alguém não roubasse

Sírio

ou Aldebarã

da sua cozinha;

desceu para o térreo

e se acomodou

para esperar

que a casa se erguesse de novo

que o marido ressurgisse das cinzas

e que as mãos e os pés das crianças fossem de novo postos no lugar.

Foi achada de manhãzinha,

dura como pedra, 

pardais bicando suas mãos.






(Terra da esperança – Sion Sono)


No filme japonês Terra da Esperança (de Sion Sono), pessoas recusam-se a deixar a cidade que está sendo evacuada, assim como em La Soufrière de Werner Herzog alguns moradores da encosta do vulcão aferram-se ao seu lugar, mesmo com a erupção iminente. O que é isto? Talvez o poder hipnótico que tem, sobre nós, a morte em grande escala, a morte catastrófica, a morte apocalíptica – a morte que surge como uma revelação final, mas nunca tardia, de que nossa vida individual conta muito pouco ou quase nada em termos da nossa espécie ou do nosso mundo. 

Augusto dos Anjos se referia a “esta necessidade do horroroso que é talvez propriedade do carbono” – ou seja, a fascinação pelo Terrível, pelo Medonho, pelo Monstruosamente Sublime – um poder primal que arrebata a alma de todas as criaturas vivas. 
 
Quando vemos os cenários de terremotos e inundações, a destruição parece não somente inevitável, mas também uma parte da vida. O mundo mexe-se, respira, arfa, o mundo se contrai e se distende, e nesse movimento típico de todas as coisas que contém mudanças, ele rebenta nossas represas, nossos muros, bota abaixo nossos arranha-céus, consome em chamas nossos jardins e plantações. 
 
Como dizia o poeta Shelley, “a Terra troca de pele, como uma serpente”. 
 
O mundo, neste sentido, é quase um ser biológico; a gente sente um certo impulso de acreditar cegamente nas hipóteses de “Gaia”. O planeta é uma criatura viva? Tudo bem, ele tem processos próprios de auto-equilíbrio e redistribuição de energia, mas ele sabe o que está lhe acontecendo? O mundo sente? O mundo reage? 
 
Carmattos recorta cenas cruciais dos filmes, imagens que mostram, geralmente em planos afastados, essa imensidade dos processos geológicos ou climáticos, e a insignificância física de um ser humano. Nada é tão minúsculo quanto um ser humano diante do movimento de grandes massas de fogo, de água, de terra ou de ar.  Dos quatro elementos arquetípicos da natureza. 
 
E ao mesmo tempo somos significantes, por que não? Nossa vida pode não ser grande coisa para o planeta, mas dane-se o planeta, é uma grande coisa para nós, que não temos outra. Mesmo que todo o nosso significado não passe de um esforço de recitar Shakespeare no meio do deserto, numa cidade-fantasma tomada pela areia, como no filme dinamarquês O Rei Está Vivo. 



(O rei está vivo -- Kristian Levring)

 
A consciência ecológica tem por vezes a face sorridente e iluminada da cultura new age. Graças a ela descobrimos, meio de repente, que somos como notas musicais de um vasto concerto cósmico, ou fios de uma tapeçaria. Existem uma Ordem, e fazemos parte dela. 
 
O reverso da moeda é algo parecido com a revelação arrepiante do Roquentin, o protagonista de A Náusea de Jean-Paul Sartre. De repente ele se dá conta da existência das coisas fora da consciência dele. Roquentin olha para a raiz de uma árvore e percebe que essa raiz não está ali por causa dele, não está lhe dizendo nada. A raiz existe independentemente dele. Não pensa, não sente, não percebe a existência dele e não precisa dele para existir. 
 
Basta um estalo de dedos para percebermos que essa raiz é a Natureza inteira, é o planeta Terra, que não passa recibo de nossa presença aqui. As poucas centenas de milhares de anos da efêmera passagem humana pelo planeta não deixarão muitas marcas. Não somos mais importantes do que os vulcões ou as minhocas. 
 
Blaise Pascal comentou, numa frase famosa, que “o silêncio eterno desses espaços infinitos me apavora”.  Acho que nos apavora ainda mais quando entendemos que não é um silêncio de recusa, e sim de ignorância. O universo não está se negando a falar conosco: o universo simplesmente não sabe que existimos, porque não é dotado de consciência. 



(Acqua Movie -- Lírio Ferreira ]

 
Paisagens do Fim é o relato alternadamente angustiante e resignado da presença desta humanidade no planeta, esta fagulha que ao mesmo tempo ilumina e se consome. É preciso o olho esperto e o corte preciso do cineasta para montar o quebra-cabeças deste ensaio fílmico, mostrando as mil e uma formas que esta obsessão adquire ao ser transposta para a tela. 
 
“Destruição e tradição se confundem”, diz a narração a certa altura. O que chamamos de Tradição, ou de História, ou de Memória Cultural ou o que quer que seja, é apenas o que sobreviveu a todos os cataclismos: as guerras, os incêndios, os pogroms, as limpezas étnicas, as escravizações, os bombardeios.  E também os tsunamis, os terremotos, as desertificações, as pragas da lavoura, as epidemias. 



(Quando a Terra Treme -- Walter Salles) 


A Tradição é o que resta depois de todos estes extermínios. O que chamamos de “teatro grego” são as peças que sobreviveram aos milênios e por uma via ou outra chegaram até nós. Toda tradição é amputada, incompleta, parcialmente obliterada não somente pela destruição violenta mas pelo esquecimento, a deterioração, o acaso. 
 
Um verso de Caetano Veloso queixa-se do Brasil dizendo que “aqui tudo ainda é construção e já é ruína”, mas o sentido maior do verso pode se estender ao mundo inteiro, a essa nossa passagem meteórica, mesmo que tentemos deixar para trás pirâmides, zigurates, templos, muralhas, torres gêmeas. E tudo vai passar, tudo vai virar pó. 
 
O filme de Carmattos pode ser visto de graça no Vimeo:
https://vimeo.com/1005118046
 
Em paralelo com ele, o autor mantém um blog/livro com textos mais longos a respeito de todas as obras comentadas: http://paisagensdofim.com  Vale um demorado passeio.  



(La Jetée – Chris Marker)
                






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