A imprensa tem comentado um filme russo recente, O Mestre e Margarida, que está fazendo
grande sucesso popular, e inquietando os censores do governo de Vladimir Putin.
É mais uma adaptação cinematográfica (há várias) do
famoso romance de Mikhail Bulgakov, que se não me engano já tem mais de uma
tradução no Brasil.
Nunca o li. É um romance fantástico, muito elogiado, e
está naquela lista de “500 Livros Que Preciso Ler, Nem Que Seja Depois De
Morrer”.
Houve uma sincronicidade interessante porque vi o anúncio
desse filme mais ou menos ao mesmo tempo em que estava começando a rabiscar
umas notas sobre o disco Beggars Banquet
(“O Banquete dos Mendigos”, 1968) dos Rolling Stones, um dos meus preferidos na
extensa obra da banda.
O Banquete dos
Mendigos (“Beggars Banquet”, 1968) foi um disco-porrada que os Stones
lançaram na segunda metade da década de 1960, quando essa hidra-de-70-cabeças
chamada “rock” brotava por toda parte.
Para mim, é um dos melhores discos deles, junto com Between the Buttons, Let It Bleed, Exile on Main Street, Flowers,
Some Girls e certamente mais algum título inesquecível que estou esquecendo
agora.
Os Stones sempre foram mais identificados com rockão
pesado do que os Beatles, por exemplo. Eram metal-quente, e parede
estremecendo. Junto deles, os Beatles eram o Trio Esperança, e o que os
“salvava” era a riqueza melódica, a harmonia vocal, o imenso repertório de
estilos musicais (graças principalmente a MacCartney, que cresceu ao lado de um
pai músico, escutando tudo). E as letras, de Rubber Soul em diante; e o carisma sorridente.
O lado “musicalmente beatle” dos Stones ficava por conta
do multi-instrumentista Brian Jones, que morreu cedo; uma perda tão grande para
o rock quanto as de Jimi Hendrix e Jim Morrison.
Lembro que o primeiro choque que Beggars Banquet produziu em mim e na minha turma na Paraíba foi que
não era tão “rockão pesado” assim, se descontarmos “Street Fightin’ Man”. Era
um cardápio variado de ritmos e sonoridades, que fazia a gente escutar de cenho
franzido, pensando: “Que troço estranho. Isso é rock? Onde foram achar isso?
Que troço legal.”
A começar, é evidente, pela faixa que abre o disco,
“Sympathy for the Devil”. Reza a lenda que as primeiras “levadas” da música
surgiram quando os Stones vieram pegar uma areia ensolarada em Arembepe e
outros lugarejos baianos, e de vez em quando tiravam um som com os moradores
locais.
O famoso e hipnótico “Uh-uuh!...”, que pontua a canção do começo ao fim,
não foi trazido da Bahia, como pensei por muito tempo; foi meio que improvisado
pelo produtor Jimmy Miller durante a gravação, e incorporado pela banda. Todo
mundo entrou no balanço. Não duvido que
Mick Jagger e Keith Richards tenham explicado, muito convictos, aos técnicos de
som: “É samba”.
“Sympathy for the Devil” junta-se à capa interna do disco
para explicar o diapasão mental que afinava o rock daquele tempo: luxo, decadência,
esbanjamento e devassidão. O Diabo, que se apresenta nos versos, é “um homem de posses e de bom gosto”, um
aristocrata. E ao mesmo tempo um conspirador dos salões e dos gabinetes, um
instigador de conflitos. Ele se vangloria de estar por trás da Revolução Russa,
da Blitzkrieg nazista, da morte dos
Kennedys...
E é aí que entra a sincronicidade com O Mestre e Margarida, o livro de
Bulgakov, porque Mick Jagger sempre afirmou que “Sympathy for the Devil” tinha
se inspirado nesse livro, escrito por Bulgakov entre 1928 e o ano de sua morte,
1940. A tradução inglesa, lançada em 1967 pela Grove Press, e em seguida por
outras editoras, teve uma influência direta na canção dos Stones, cuja letra
fala em nome do Diabo:
Estou rondando por aqui há muitos anos
roubei a alma e a fé de muitos homens.
Estava por perto quando Jesus Cristo
teve o seu momento de dor e de dúvida;
e me certifiquei de que Pilatos
lavasse as mãos e selasse o seu destino.
O confronto entre Pilatos e Cristo é uma das linhas
narrativas de O Mestre e Margarida, e
Jagger o transpôs diretamente para a canção.
Jagger e os Stones nunca foram propriamente satanistas,
ao que eu saiba. Pegaram um pouco de fama por causa dessa música. Quem teve
pela vida toda um flerte com o Ocultismo e os seres-de-umbral foi gente como
Jimmy Page, morador numa mansão que foi de Aleister Crowley. Os Stones
intitularam um disco Their Satanic
Majesties Request, mas o disco
lembra mais um passeio no Mundo Imaginário do Dr. Parnassus do que uma visita
ao Hades.
(Their Satanic Majesties Request)
O Diabo (dizia Guimarães Rosa) não existe: existe é o
homem humano. O homem de posses e de bom gosto, apreciador de uma boa debaucheria,
e que é o próprio Mick Jagger e seus ajudantes. E o disco ganhou um dos
melhores títulos e uma das melhores capas internas da história do rock.
Nessa capa interna e na faixa de abertura está
concentrado o espírito de dissipação e auto-indulgência do rock daquela época. Uma
farra meio surrealista promovida por alguns jovens milionários: o mais velho
dos Stones, o baixista Bill Wyman, tinha 32 anos, mas os demais estavam na
faixa de 25-27 anos.
(Viridiana)
O fotógrafo do disco, Michael Joseph, comenta que a idéia
da foto do banquete foi do diretor de arte Mike Peters, e que este teria sido
influenciado pela famosa foto do “banquete dos mendigos” de Viridiana (1961) de Luís Buñuel, numa
versão satírica da Última Ceia de
Leonardo da Vinci.
Quase toda a comida que aparece na foto é artificial, com
exceção de algumas bandejas com frutas. O local da sessão foi no norte de Londres,
na mansão de Sarum Chase, em Hampstead. O supervisor da casa perguntou se na
foto apareceriam mulheres nuas. “Não,” disse o fotógrafo, “vai ser somente a
banda. Por que?” E ele: “Se a foto
incluir mulheres nuas, cobramos 10 libras a mais.”
Ao ler isto, lembrei de um amigo meu, em Campina, olhando
a capa do Banquete: “Tem bebida pra
caramba, tem comida, tem porco, galinha, marreco... e não tem mulher nua. Isso
é lá farra!” O que não nos impedia de correr o olho pela foto, catando
detalhes; ou pela reprodução feita em Campina Grande pelo saudoso Roberto
Coura, então com 16 anos, reproduzindo essa foto do banquete em nanquim sobre
cartolina, em 1 metro x 2,5, e que foi parar na sala de Jakson e Marcos Agra.
O banquete era uma síntese entre a vulgaridade e a
sujeira dos mendigos de Buñuel, e (aqui é uma conjetura minha) a famosa capa do
Bringin’ It All Back Home (1965) de
Bob Dylan. Capa cuja intenção, nesta foto montada, era conferir a Dylan (que
tinha uma origem rústica, de Minnesota, origem de cantor folk) a imagem sofisticada de cantor agora novaiorquino.
A foto de Daniel Kaufman o mostra numa sala, diante de
uma lareira, com um gato no colo, por entre objetos descuidadamente/cuidadosamente
jogados em torno: uma revista Time,
um disco de Robert Johnson, uma placa de “abrigo nuclear”... e uma mulher,
vestida, mas linda, em pose relaxada e promissora (é a ex-modelo Sally
Grossman, a esposa do empresário de Dylan).
Tenho a mais tranquila certeza de que os Stones, além de
ouvirem muito esse disco, examinaram muito essa capa, e três anos depois
tiveram a chance de dar a resposta. A resposta não era a Dylan, na verdade, era
ao jet-set londrino que no começo os
esnobou tanto quanto o jet-set de
Nova York esnobou Dylan; mas o sucesso doura qualquer pílula, e ambas as capas
parecem estar dizendo: Fodam-se, nós
agora somos ricos também.
Nem tudo eram banquetes: o fotógrafo dos Stones lembra
que na noite anterior à sessão de fotos a casa de Brian Jones tinha sido
invadida pela polícia, em busca de drogas (não acharam nada), e ele, sempre o
mais emocionalmente instável da banda, estava ainda abalado.
O repertório do disco, curiosamente, não fica batendo na
tecla da ostentação. Há várias canções quase totalmente acústicas, fugindo às
muralhas de som do heavy-metal
nascente.
“Factory Girl” é uma homenagem às garotas que trabalham
em fábricas, cantada pelo sujeito que a espera do lado de fora (quase um “Três
Apitos” de Noel Rosa), uma garota “com joelhos gordinhos, com um lenço em vez
de chapéu, e uma roupa com um zíper quebrado atrás”.
“Salt of the Earth” é outra canção proletária, se se pode
dizer isto. A banda ergue um brinde “aos humildes de berço... aos que trabalham
duro... ao soldado raso que se mata de trabalhar, à sua esposa e filhos que
acendem fogos e aram a terra... vamos beber a esses milhões de pessoas que
precisam de líderes, mas só lhes chegam especuladores...” Aqui, os ecos se
propagam até “Working Class Hero”, da carreira solo de John Lennon.
Ou seja: por mais que fossem milionários recentes os
Stones não cortavam seu cordão umbilical de classe, das origens não-milionárias
de cada um. E mesmo quando decolavam num dos seus rocks mais pesados e rebeldes
dessa fase, “Street Fighting Man”, eles perguntam:
Mas afinal, o que pode um rapaz pobre fazer
a não ser cantar numa banda de rock?
Porque nesta sonolenta cidade de Londres
não há lugar para guerreiros de rua.
E depois, em versos que parecem pedidos-emprestados a
“Sympathy for the Devil”:
Então... o meu nome é Distúrbio,
eu vou gritar e ulular
eu vou matar o rei
e passar o rodo nos seus servidores.
Keith Richard comenta que a rapaziada inglesa de então
(lembrem-se, o ano era 1968) via com certa inveja as agitações estudantis
francesas que fecharam a Sorbonne e pararam Paris no mês de maio. Richard lembra que as frases iniciais
desta música (“Ev’rywhere I hear the
sound of marching charging feet, boy..”) se baseia na sirene de
duas-notas dos carros de polícia franceses. Uma inspiração semelhante à que teve John Lennon ao compor “I Am The
Walrus” (“Mister-City-p’liceman-sittin’-pretty-little-p’liceman-in a row...”).
Comparada à Paris de Daniel Cohn-Bendit e de Jean-Luc
Godard, Londres devia parecer uma grande Boston. Talvez por isso mesmo a banda
tenha convidado Godard para filmar a gravação de “Sympathy for the Devil” no
estúdio – parafraseando Chico Buarque e dizendo: “pra ver se o fogo deles,
guardado em ti, nos contagia um pouco”.
2 comentários:
Que texto Flórida!
WOW!!!!!!!
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