segunda-feira, 30 de outubro de 2023

4997) Drummond: "Sesta" (30.10.2023)




Nos poemas de Alguma Poesia (1930), o livro de estréia de Carlos Drummond de Andrade, este aqui faz parelha, ou faz grupo, com “Infância”, “Cidadezinha qualquer”, “Família”, “Iniciação amorosa”... São as descrições da rotina familiar que não muda, a rotina modorrenta, naquele cansaço de não fazer nada, em que paisagem, família, adultos, crianças, criadas e animais parecem se nivelar num mesmo estado de sonambulismo. 
 
A “poesia de infância” de Drummond, em seus primeiros livros, vagueia o tempo todo entre a saudade afetuosa de um “tempo bom” e a ironia cáustica dos modernistas contra qualquer manifestação de sentimentalismo água-com-açúcar. Ter saudade de uma infância feliz é um sentimento singelo que deveria estar protegido pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, mas o fato é que a nossa poesia do século 19 (de Gonçalves Dias a Casimiro de Abreu) carregou um pouco nas tintas. Era preciso um antídoto. 
 
O Modernismo de 1922 forneceu esse antídoto, e ele veio muitas vezes dentro da ampola da crítica social, uma poderosa medicação-de-choque contra a nostalgia adocicada. Drummond mostra isso repetidamente, e seus poemas sobre “a família mineira” são misturas nem sempre sutis entre a lembrança boa e a crítica contaminada de sarcasmo. 
 
Não podemos esquecer que estes poemas (do livro Alguma Poesia, 1930) são poemas de um rapaz de 28 anos, momento de ingresso na vida adulta, em que a palavra infância não traz muito saudosismo. Ela é apenas um contratempo que foi enfrentado e vencido, como a catapora e os dentes-de-leite. Na velhice, a partir da série Boitempo (Boitempo, 1968; Menino Antigo, 1973; Esquecer Para Lembrar, 1979), o poeta se descontraiu. Tratou o sentimentalismo como um chinelo velho e confortável, e ao mesmo tempo não perdeu o gume da observação. 
 
“Sesta” é dedicado a Martins de Almeida (1903-1983), companheiro de geração de Drummond, a geração de poetas de A Revista. Nascido em Leopoldina, fazia parte do grupo de rapazes belorizontinos encantados com a literatura francesa de sua época. Numa reminiscência de coluna de jornal (Tribuna da Imprensa, 26-10-1977, p. 9) Hermenegildo de Sá Cavalcante descreve a chegada de um livro de Marcel Proust à Livraria Francisco Alves, do livreiro Kneipp, ponto de encontro dos jovens e entusiasmados poetas: 
 
No primeiro desembarque de 1920, chegara o Prêmio Goncourt do ano anterior. (...) O bando atacou o caixote. Empunhava martelo e pé-de-cabra o risonho Francisco Martins de Almeida. Iniciada a operação salta um pacote que vai tombar aos pés de um moço de olho vivo e ar tímido, mas atilado leitor e hábil tipógrafo. Era Eduardo Frieiro. Rápido, apanha-o e sobraçando o embrulho sai correndo para o fundo da loja. Mal aberto, grita: -- É o Goncourt, pessoal! Mais quatro moços atiraram-se em seu encalço e arrebataram os exemplares: Milton Campos, Pedro Nava, Carlos Drummond de Andrade e Alberto Campos. 
 
O relato completo está aqui:
https://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=154083_03&pagfis=29222
 
Foi nesse clima de busca-do-tempo-perdido e de zoeira inofensiva que Drummond foi se descobrindo poeta, e foi compilando seu livro de estréia. 
 
“Sesta” é esse retrato afetuoso e meio debochado da “família mineira”, instituição tão primordial quanto os elementos químicos. A expressão “família mineira” é usada quatro vezes, com insistência proposital. Está aqui a fala coloquial que o Modernismo impôs à sensibilidade greco-romana dos parnasianos e simbolistas: “quentando”, “pereba”, “corta ele, pai”. Aqui está o mundinho provinciano, fechado em si mesmo: “Os olhos se perdem / na linha ondulada / do horizonte próximo / (a cerca da horta). / A família mineira / olha para dentro.” 
 
Existia nesses jovens a necessidade de ruptura com o Passado, peso que continuava asfixiando o presente. 
 
Sesta
A Martins de Almeida
 
A família mineira
está quentando sol
sentada no chão
calada e feliz.
O filho mais moço
olha para o céu,
para o sol não,
para o cacho de bananas.
Corta ele, pai.
O pai corta o cacho
e distribui pra todos.
A família mineira
está comendo banana.
A filha mais velha
coça uma pereba
bem acima do joelho.
A saia não esconde
a coxa morena
sólida construída,
mas ninguém repara.
Os olhos se perdem
na linha ondulada
do horizonte próximo
(a cerca da horta).
A família mineira
olha para dentro.
O filho mais velho
canta uma cantiga
nem trite nem alegre,
uma cantiga apenas
mole que adormece.
Só um mosquito rápido
mostra inquietação.
O filho mais moço
ergue o braço rude
enxota o importuno.
A família mineira
está dormindo ao sol.
 
 
Numa das reminiscências do livro Confissões de Minas (1944), “Recordação de Alberto Campos” (com a anotação de ter sido escrita em 1933), Drummond lembra desses amigos de juventude e comenta: 
 
Um recuo de dez anos projeta no presente esse grupo que em 1923 procurava o caminho, e no qual a presença dele [Alberto Campos] operava como um elemento de crítica vivaz e mordente. (...) Mas não éramos felizes. Fomos as primeiras vítimas da nossa própria ironia, e, impiedosos com o próximo, não nos perdoávamos a nós mesmos nenhuma fragilidade. O nosso compromisso, que era o de não assumirmos nenhum, impunha-nos disciplinas severas. A voluptuosa disponibilidade deixava de ser uma condição edênica para constituir fonte contínua de angústias.
 
Era uma geração sofrida, reflete Drummond, que não teve “o respeito aos mestres nem a ilusão dos discípulos”
 

 


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