Nos poemas de Alguma
Poesia (1930), o livro de estréia de Carlos Drummond de Andrade, este aqui
faz parelha, ou faz grupo, com “Infância”, “Cidadezinha qualquer”, “Família”, “Iniciação
amorosa”... São as descrições da rotina familiar que não muda, a rotina
modorrenta, naquele cansaço de não fazer nada, em que paisagem, família,
adultos, crianças, criadas e animais parecem se nivelar num mesmo estado de
sonambulismo.
A “poesia de infância” de Drummond, em seus primeiros
livros, vagueia o tempo todo entre a saudade afetuosa de um “tempo bom” e a
ironia cáustica dos modernistas contra qualquer manifestação de sentimentalismo
água-com-açúcar. Ter saudade de uma infância feliz é um sentimento singelo que
deveria estar protegido pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, mas o
fato é que a nossa poesia do século 19 (de Gonçalves Dias a Casimiro de Abreu)
carregou um pouco nas tintas. Era preciso um antídoto.
O Modernismo de 1922 forneceu esse antídoto, e ele veio
muitas vezes dentro da ampola da crítica social, uma poderosa
medicação-de-choque contra a nostalgia adocicada. Drummond mostra isso
repetidamente, e seus poemas sobre “a família mineira” são misturas nem sempre
sutis entre a lembrança boa e a crítica contaminada de sarcasmo.
Não podemos esquecer que estes poemas (do livro Alguma Poesia, 1930) são poemas de um
rapaz de 28 anos, momento de ingresso na vida adulta, em que a palavra infância
não traz muito saudosismo. Ela é apenas um contratempo que foi enfrentado e
vencido, como a catapora e os dentes-de-leite. Na velhice, a partir da série Boitempo (Boitempo, 1968; Menino Antigo,
1973; Esquecer Para Lembrar, 1979), o
poeta se descontraiu. Tratou o sentimentalismo como um chinelo velho e
confortável, e ao mesmo tempo não perdeu o gume da observação.
“Sesta” é dedicado a Martins de Almeida (1903-1983),
companheiro de geração de Drummond, a geração de poetas de A Revista. Nascido em Leopoldina, fazia parte do grupo de rapazes belorizontinos
encantados com a literatura francesa de sua época. Numa reminiscência de coluna
de jornal (Tribuna da Imprensa,
26-10-1977, p. 9) Hermenegildo de Sá Cavalcante descreve a chegada de um livro
de Marcel Proust à Livraria Francisco Alves, do livreiro Kneipp, ponto de
encontro dos jovens e entusiasmados poetas:
No primeiro desembarque de 1920, chegara o Prêmio Goncourt do ano
anterior. (...) O bando atacou o caixote. Empunhava martelo e pé-de-cabra o
risonho Francisco Martins de Almeida. Iniciada a operação salta um pacote que
vai tombar aos pés de um moço de olho vivo e ar tímido, mas atilado leitor e
hábil tipógrafo. Era Eduardo Frieiro. Rápido, apanha-o e sobraçando o embrulho
sai correndo para o fundo da loja. Mal aberto, grita: -- É o Goncourt, pessoal!
Mais quatro moços atiraram-se em seu encalço e arrebataram os exemplares:
Milton Campos, Pedro Nava, Carlos Drummond de Andrade e Alberto Campos.
O relato completo está aqui:
https://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=154083_03&pagfis=29222
Foi nesse clima de busca-do-tempo-perdido e de zoeira
inofensiva que Drummond foi se descobrindo poeta, e foi compilando seu livro de
estréia.
“Sesta” é esse retrato afetuoso e meio debochado da “família mineira”,
instituição tão primordial quanto os elementos químicos. A expressão “família
mineira” é usada quatro vezes, com insistência proposital. Está aqui a fala
coloquial que o Modernismo impôs à sensibilidade greco-romana dos parnasianos e
simbolistas: “quentando”, “pereba”, “corta ele, pai”. Aqui está o mundinho
provinciano, fechado em si mesmo: “Os olhos se perdem / na linha ondulada / do
horizonte próximo / (a cerca da horta). / A família mineira / olha para
dentro.”
Existia nesses jovens a necessidade de ruptura com o Passado, peso que continuava
asfixiando o presente.
Sesta
A Martins de Almeida
A
família mineira
está
quentando sol
sentada
no chão
calada
e feliz.
O
filho mais moço
olha
para o céu,
para
o sol não,
para
o cacho de bananas.
Corta
ele, pai.
O
pai corta o cacho
e
distribui pra todos.
A
família mineira
está
comendo banana.
A
filha mais velha
coça
uma pereba
bem
acima do joelho.
A
saia não esconde
a
coxa morena
sólida
construída,
mas
ninguém repara.
Os
olhos se perdem
na
linha ondulada
do
horizonte próximo
(a
cerca da horta).
A
família mineira
olha
para dentro.
O
filho mais velho
canta
uma cantiga
nem
trite nem alegre,
uma
cantiga apenas
mole
que adormece.
Só
um mosquito rápido
mostra
inquietação.
O
filho mais moço
ergue
o braço rude
enxota
o importuno.
A
família mineira
está
dormindo ao sol.
Numa das reminiscências do livro Confissões de Minas (1944), “Recordação de Alberto Campos” (com a
anotação de ter sido escrita em 1933), Drummond lembra desses amigos de
juventude e comenta:
Um recuo de dez anos projeta no presente esse grupo que em 1923
procurava o caminho, e no qual a presença dele [Alberto Campos] operava como um elemento de crítica vivaz e
mordente. (...) Mas não éramos felizes. Fomos as primeiras vítimas da nossa
própria ironia, e, impiedosos com o próximo, não nos perdoávamos a nós mesmos nenhuma
fragilidade. O nosso compromisso, que era o de não assumirmos nenhum, impunha-nos
disciplinas severas. A voluptuosa disponibilidade deixava de ser uma condição
edênica para constituir fonte contínua de angústias.
Era uma geração sofrida, reflete Drummond, que não teve “o respeito aos mestres nem a ilusão dos
discípulos”.
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